Miguel estava pálido, que assustava; os lábios trêmulos não podiam pronunciar uma palavra. Conhecia-se o esforço que ele empregava para conter o ímpeto de sua cólera.
Afonso ficara confuso; e com os olhos vagos e o gesto constrangido, cogitava um pretexto para retirar-se; mas nem um lhe acudia.
Foi Berta quem primeiro recobrou-se do sossôbro.
— Que anda fazendo, Miguel?
— Vim procurá-la. Em casa estão todos com cuidado.
— Não tenha susto que eu não me perco! replicou a menina sorrindo.
— Você não vem, Berta? perguntou Afonso.
— O senhor não veio só? Pode voltar do mesmo modo.
Aproveitou Afonso a despedida para afastar-se desse lugar onde em verdade não estava a gosto. Ainda indeciso, parando de instante em instante, à espera dos outros, encaminhou-se para a casa.
Berta, ficando só com Miguel, contemplava o semblante abatido do mancebo, e condoia-se da mágoa que tinha involuntariamente causado.
— Que tem você, Miguel?
— Ainda pergunta, Inhá?
— É porque eu quero bem a Afonso?
— Não carece dizer; eu já sabia.
— Mas eu também lhe quero! disse Berta com encantadora singeleza.
— Como a ele? perguntou vivamente Miguel.
Corou Inhá, lembrando-se do beijo dado na face de Afonso, o que ela nunca se animaria a fazer com o filho de nhá Tudinha, apesar de ser este seu colaço.
Tornou Miguel com um modo sentido e grave:
— Não se pode querer bem assim, Inhá, senhão a uma pessoa: aquela que se escolheu para marido.
Berta soltou uma risada zombeteira:
— Como Linda quer a você, não é?
— Tantas vezes que lhe tenho pedido para não repetir esse gracejo! Mas como sabe que ele mortifica-me, por isso mesmo não o esquece.
— Você é um ingrato, Miguel! disse Berta com a voz queixosa e um suspiro que partia do íntimo d`alma. Não para o amor que lhe tem!
— E sou eu só o ingrato?
— Se soubesse o bem que Linda lhe quer. Ainda hoje estava tão tristezinha por sua causa, pensando que você não gosta dela!... Mas eu consolei aquele coraçãozinho, e prometi-lhe que você havia de confessar...
— Fez mal, Inhá, muito mal.
— Não tem pena daquela santinha?
— E de mim? Alguém tem pena?
— Tenho eu, que hei de fazer tudo para que você gosto só e só de Linda.
— Não era mais fácil gostar um bocadinho de mim, que lhe quero tanto, Inhá?
— Gosto muito; e por isso mesmo o quero dar à minha Lindazinha.
Fitou Miguel no semblante de Berta um olhar surpreso. As palavras da menina lhe pareciam remoques; e, todavia, era a voz repassada de tanto afeto e sinceridade!
Mais surpreso ficou vendo a efusão de meiguice e ternura que havia no rosto gentil, salpicado quase sempre de graciosa malícia.
— Obrigado, murmurou Miguel afastando-se com despeito.
— Escute, Miguel, disse Inhá pousando a mão carinhosa no ombro do moço para retê-lo. Você há de gostar de Linda!... Me promete, sim? Você já gosta dela... Há quem possa resistir àqueles olhos tão doces, que estão bebendo a alma da gente. E a boquinha?... É um torrãozinho de açúcar escondido em uma rosa! Quando ela ri-se, faz cócegas no coração! Do corpinho, nem se fala. Que cinturinha de abelha! E um ar tão engraçado, um andar tão faceiro, que encanta!
Este esboço, Inhá o fazia ao vivo, e não só com a palavra cintilante, mas com o gesto animado, e o requebro do talhe esbelto. Era ela a própria cera, da qual a sua mímica ia esculpindo a estátua famosa de Linda, com as doces inflexões das formas, o terno volver dos olhos e o desbroche do mimoso sorriso.
Miguel fascinado, rendido, já não resistia com efeito; e nesse momento, pelo menos, ele sentia que amava Linda; mas essa Linda que ali tinha diante dos olhos, e não a outra que vira ao natural, tímida, com as pálpebras cerradas, o lábio trêmulo, e o gesto constrangido.
A mulher que ele adorava nos sonhos de sua juventude, o tipo de sua ardente imaginação, realizava-se naquela moça que vazara a inefável ternura de Linda na graça e gentileza de Berta; e não era uma nem outra, mas a transfusão dessas duas almas em uma beleza sedutora.
Preso dos olhos ao lindo semblante da menina, e suspenso de seu lábio gazil e mimoso, foi Miguel seguindo-a, sem consciência do que fazia.
Próximo à casa ouviu Berta uns risos e cochichos por trás da folhagem; e disfarçando para não despertar as suspeitas de Miguel, aproximou-se da ramada, donde ela pressentira que a estavam espreitando.
E não se enganava. Linda, impaciente com a ausência de Berta, não vendo chegar Afonso que fora em busca da travessa, tinha saído de casa a pretexto de passeio, com o fito de descobrir alguma coisa.
Em caminho encontrou o irmão, que recobrado já do acanhamento, ardia por dar expansão ao gênio alegre, por um instante sufocado. Escondeu-se o folgazão do Afonso com Linda para espreitar o que diziam Berta e Miguel.
Tão embevecido estava este na magia do sorriso da companheira, que apesar de caçador, não percebeu o farfalhar das folhas agitadas pelo buliçoso rapaz e o sussurro dos segredinhos de Linda no ouvido do irmão.
Então, disse Berta para Miguel: confesse, você gosta de Linda?
— Gosto! respondeu o moço com um sorriso.
— Muito?
— Muito!
Voltou-se Berta rapidamente e afastada a ramagem exclamou alegre, descobrindo o vulto de Linda:
— Não lhe disse, Linda? Veja que não a enganei.
Linda corou; e Miguel nesse momento acreditou que a amava, pois a via ainda através do sorriso fascinador de Inhá.
Dirigiram-se todos à casa. Berta com o braço passado à cintura de Linda, achava meio de aproximar a amiga a cada instante de Miguel, entrelaçando as mãos de ambos.
O Afonso com suas estrepolias aumentava a doce confusão de que se aproveitava Berta para estabelecer o contato das duas almas, que ela queria unir.
Assim chegaram à casa, onde já se aprestava o suntuoso banquete.