O teatro representa a mesma cena do primeiro ato.

BARÃO, só.

BARÃO (Lendo o Jornal do Commercio.) - "Aluga-se... Vende-se..." É célebre! Estas folhas do Rio de Janeiro não trazem nada de importante! Em São Paulo lê-se o Correio Paulistano e faz gosto ver as notícias curiosas que traz aquele jornal. (Virando a folha do jornal, lê): "No dia 6 foram sepultados... Julião Praxedes da Cunha, de fistrites, quistrites, entre coletes ou colites." Isto é erro de imprensa. "Antônio Gervásio de Araújo, idem, Luciano Pimentel, idem... idem... idem..." Cá está o tal implicante idem. É - a fantasma - que me persegue nesta maldita terra! Noutro dia fui consultar um médico e ele disse-me que era moléstia contagiosa! Os sintomas são terríveis: dilatação do nariz... (Apalpando o nariz.) Felizmente o meu ainda está do mesmo tamanho; afecção nervosa pela circunferência do crânio, estremecimento de orelhas, terminando por cair o indivíduo de quatro pés e entregar-se a um furor infrene. Oh! há de ser uma morte horrível! Logo que sentir o primeiro estremecimento de orelhas, estou marchando para São Paulo. (Virando a folha do jornal, lê): "O Doutor Carlos de Brito dá consulta todos os dias úteis das 9 horas às 10 da manhã." E o pelintra que anda fazendo roda à pequena e que, segundo me disseram, está hoje senhor de boas patacas. (Tirando o relógio e vendo as horas.) E esta! Há quase meia hora que estou aqui e ainda ninguém veio falar-me! É célebre! Tenho reparado que há um mês para cá esta gente já não me recebe como dantes; a velha já não manda o carro buscar-me todas as tardes e ultimamente sempre que aqui venho aparece-me de nariz torcido, depois de meia hora de espera. Ontem falei-lhe para marcar quanto antes o dia do casamento e a maldita respondeu-me que por ora nada podia fazer, porque ainda se está preparando o enxoval. Maldito enxoval, que demora-me o casório! (Suspirando.) Ai, ai; muito padece quem ama!

CENA II

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O MESMO e GASPARINO

GASPARINO (Entrando vestido de luto, à parte.) - Oh! o Barão! Que maçante! (Alto.) Bons dias, senhor Barão.

BARÃO - Oh! meu caro amigo, como vai? Há muito tempo que o não vejo. Por onde tem andado? Já não quer aparecer por aquela sua casa.

GASPARINO - Depois da morte da minha cara Porfíria... (Tirando o lenço e levando-o aos olhos.) Oh! não posso lembrar-me daquele anjinho sem derramar copiosas lágrimas. Foi uma fatalidade!

BARÃO (Também enxugando os olhos.) - Também a minha burra branca morreu. São decretos da Providência!

GASPARINO - Ontem fui ao cemitério e depositei sobre a sua sepultura uma capela de saudades.

BARÃO - A minha jaz na Cutia, dormindo o sono dos inocentes. Era mesmo uma inocente criatura! Como marchava aquele animal, Senhor Gasparino, era uma rede!

GASPARINO - Deixemos aqueles que repousam na mansão dos justos (Mudando de tom.) Vossa Excelência já fixou o dia do seu casamento?

BARÃO - Até agora nada está decidido.

GASPARINO (À parte.) - E creio que nada arranjarás.

BARÃO - Se o senhor pudesse interceder por mim... Eu não tenho jeito para essas coisas. Se não fosse o senhor talvez que a Senhora Dona Ana ignorasse até as minhas intenções.

GASPARINO - Veremos, senhor Barão. Hei de fazer tudo que estiver no círculo de minhas forças. (À parte.) Conta comigo, meu lorpa.

BARÃO (Tirando o relógio, à parte.) - Cinco e meia: há mais de meia hora que estou aqui e ainda ninguém! Que maçada! (Alto) Ora diga-me cá, Senhor Gasparino: o senhor que é um moço de inteligência e de saber, poderá explicar-me uma coisa extraordinária que observo há perto de um mês?

GASPARINO - Já sei: quer falar-me do cometa que aparece as noites?

BARÃO - Não; não é isso. Em São Paulo aparecem muitos, mesmo de dia; mas como não devo nada a ninguém, não tenho medo dos cometas.

GASPARINO (À parte.) - Je ne le comprends pas, mais c'est la même chose.

BARÃO - Quero que o senhor me explique a razão por que a Senhora Dona Ana de Lemos trata-me presentemente com tanta frieza.

GASPARINO (À parte.) - Felizmente já reparou. (Alto.) Nada mais fácil de explicar-se, senhor Barão. Outrora era Vossa Excelência uma pessoa importante e de cerimônia, cujas relações era preciso firmar com carinhos e um tratamento condigno com a sua posição; hoje Vossa Excelência não é mais do que um filho da casa, um amigo dedicado e fiel, para quem morrem essas regras banais e frívolas da etiqueta.

BARÃO (Apertando a mão a Gasparino.) - Oh! meu amigo, obrigado. Quando estou ao pé do senhor é que reconheço a minha estupidez. Já não me lembrava que eu era um filho da casa e que não devia reparar nessas coisas. E a pequena ainda consagra-me aquele afeto?

GASPARINO - Oh! Ela ama-o como uma insensata!

BARÃO - Não me diga isso que enlouqueço.

GASPARINO (À parte.) - Este homem não se conhecerá?

BARÃO (Segurando no chapéu.) - Eu vou aqui à casa do Comendador Lisboa fazer uma visita e depois virei cumprimentar a minha futura costela. É um anjinho! Se falar com a Senhora Dona Ana de Lemos, não se esqueça do meu pedido.

GASPARINO - Já disse a Vossa Excelência que hei de fazer tudo o que puder.

BARÃO (Apertando a mão de Gasparino.) - Obrigado, meu amigo. Até logo. (Sai pelo fundo.)

CENA III

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GASPARINO, só.

GASPARINO - Quelle béte. Até agora ainda não compreendeu que esta família o repele e pede-me que interceda por ele na fixação do dia do casamento, quando a Senhora Dona Ana de Lemos, confiada na perspicácia que me caracteriza suplicou-me que o despedisse quanto antes desta casa da maneira a menos escandalosa. Na realidade a missão é um pouco difícil, mas enfim é preciso cumpri-la porque tenho cá meus cálculos. Concordo que a Senhora Dona Ana de Lemos, prometendo a mão da menina a esse lorpa, ele tenha um justo motivo para revoltar-se, sofrendo agora uma repulsa; mas também ninguém poderá deixar de concordar que uma fortuna de mil contos não é uma fortuna de quinhentos. Ora, o Senhor Doutor Carlos de Brito, que parecia ser um mau moço, mas que hoje vejo que é um moço de excelentes qualidades, possui com a morte de um tio uma fortuna de mil contos; logo, deve ser preferido ao Barão da Cutia, que possui quinhentos. Isto é lógico e não pode sofrer refutação. Uma fortuna de mil contos! Parbleu que já é um belo capital. (Sentando-se no sofá e suspirando.) Ai, ai! Se eu possuísse tanto dinheiro não estava, decerto, crivado de dívidas. Logrado por aquela velha, a quem o destino ligou-me por três meses, e que o mundo dizia possuir as minas da Califórnia, poderia hoje fazer uma brilhante figura, se a maldita não possuísse unicamente uns miseráveis trinta contos, metade dos quais empreguei no pagamento de algumas dividas minhas e se ela não tivesse a extravagante idéia de deixar a sua terça a irmandades e obras pias. Mas em compensação fiz-lhe também uma obra pia e de caridade, mandando-a para outro mundo da maneira a mais fácil possível. (Levantando-se.) É um meio pronto e eficaz que recomendo a todos aqueles que se casarem com velhas ricas. Tornei-me sócio de todos os bailes que por aí há, assinante de todos os teatros e por toda a parte levava a velha comigo sempre apertada de colete e trajando os melhores vestidos que figuravam nas vidraças do Wallerstein. Se estava suada oferecia-lhe um sorvete para refrescar-se; se se queixava dos vestidos apertados, convencia-a de que era muito ridículo andar uma menina de vestidos largos: ceias todas as noites para prevenir indigestões; banhos de água fria depois de um passeio pelo campo para dar vigor ao corpo; fogos de artifício etc., etc. Com tal receita pode qualquer dar o passaporte a uma velha desta para a melhor dentro de três meses. Oh! Se eu não tivesse sido logrado, poderia hoje ser o homem mais feliz do mundo! (Pensando.) Mas enfim não convém desesperar. A Senhora Dona Ana de Lemos tem alguma coisa... julga-me sem dúvida senhor de uma boa fortuna com a morte da velha... a menina casa-se com mil contos... fica este bolo em casa... Silêncio, minhas esperanças fagueiras! Aí vem ela.

CENA IV

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O MESMO e D. ANA

D. ANA (Entrando pela direita.) - Ansiosa esperava a sua chegada. Já sei que esteve aqui com o Barão.

GASPARINO - É verdade.

D. ANA - Então?

GASPARINO - Por ora não lhe disse nada de positivo.

D. ANA - Senhor Gasparino, é um favor que lhe peço: veja se me enxota quanto antes aqui de casa aquela bisca.

GASPARINO - Hei de empregar os meios, minha senhora, mas convém não dar escândalo.

D. ANA - É um toleirão, um malcriado que vem todos os dias aborrecer a menina e maçar-me a paciência contando-me histórias da sua burra branca, falando-me das vantagens da garapa de Santo Amaro, da farinha de milho, de sua fazenda e de tudo que lhe vem à boca. Não acha, Senhor Gasparino, que é um homem sem polidez, sem educação?

GASPARINO - É minha opinião de há muito, minha senhora. (À parte.) É preciso adular a velha.

D. ANA - Veja se pode haver comparação entre o Doutor Carlos e aquela figura de jarro de louça: é um homem até feio, noutro dia estive reparando.

GASPARINO - E além disso não está na posição em que se acha o Doutor Carlos de Brito!

D. ANA - Justamente. O Senhor Carlos é um moço inteligente e estudioso, que tem diante de si um futuro brilhante e se não é, como o primeiro, um Barão, possui um título ainda mais nobre, porque adquiriu-o à custa de sacrifícios e trabalhos. Além disso os títulos hoje compram-se e com uma fortuna de mil contos não há ninguém que deixe de ser Barão.

GASPARINO - Com mil contos eu seria até Imperador da China.

D. ANA - Demais, devemos respeitar as primeiras inclinações. O Senhor Carlos foi o primeiro moço por quem palpitou o coração de Mariquinhas: cortar a felicidade desses dois inocentes seria matá-los.

GASPARINO - A felicidade? E um sonho dourado que não se realiza na terra.

D. ANA - Descrê da felicidade, Senhor Gasparino? Tem razão, com a perda que acaba de sofrer...

GASPARINO - É uma perda irreparável, minha senhora!

D. ANA - Não descreia. Na posição em que está, talvez encontre brevemente alguém que possa fazer a ventura de seus dias.

GASPARINO (À parte.) - Esta mulher está me desafiando.

D. ANA - E se tiver de dar pela segunda vez esse passo, ouça os conselhos de uma pessoa experiente e que o estima. Escolha uma mulher sisuda, já gasta das ilusões do mundo e deixe as mocinhas da moda, essas cabecinhas de avelã, em cujo seio só poderá encontrar a desgraça.

GASPARINO (À parte.) - Não há dúvida: é mesmo uma provocação!

D. ANA - Essas nunca poderão ser boas consortes, nem tampouco boas mães de família, porque, não tendo discernimento bastante para compreender a força desta palavra santa e sublime: amor; falam com o coração e o coração as atraiçoa! Mas o que tem, Senhor Gasparino? Está incomodado? (À parte.) Sem dúvida já compreendeu tudo.

GASPARINO - Não tenho nada, minha senhora. Vossa Excelência fala-me em coisas tão tocantes, que é impossível deixar de comover-me.

D. ANA - Feliz daquela que possuir um coração tão sensível!

GASPARINO (À parte.) - Isto já é muito positivo! Vou declarar-me. (Alto.) Minha senhora, uma vez que Vossa Excelência pinta-me com cores tão vivas a felicidade de um estado que tanto amei, e do qual tão cedo vi-me privado, é justo que eu também abra o meu coração a Vossa Excelência, manifestando um sentimento que nele germina apenas há um mês, mas que é toda a minha vida. (À parte.) Ainda não compreendeu?

D. ANA (À parte.) - Será possível?

GASPARINO - E se uma senhora, nas condições que Vossa Excelência apresenta, quisesse preencher esse vácuo...

CENA V

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OS MESMOS e CARLOS

CARLOS (Entrando pelo fundo vestido de luto.) - Desculpem se venho interromper a conversação.

D. ANA Chegou muito a propósito, doutor; há pouco falávamos na sua pessoa.

GASPARINO (Oferecendo urna cadeira a Carlos.) - Não quer sentar-se, doutor?

CARLOS - Aceito: muito agradecido. (Sentam-se todos.)

D. ANA - Ontem tinha prometido vir jantar conosco e no entretanto logrou-nos. Pois não sabe o que perdeu: jantou aqui o Senhor Gasparino e tivemos um belo jantar.

CARLOS - Só o que sinto é não ter gozado duma tão amável companhia.

GASPARINO - O doutor foi quem não quis proporcionar-nos este prazer.

D. ANA - Mariquinhas sentiu bastante a sua ausência. Ai vem ela. (Entra Mariquinhas.)

CENA VI

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OS MESMOS e MARIQUINHAS

CARLOS - Como tem passado, Dona Mariquinhas?

GASPARINO (Fazendo uma cortesia.) - Minha senhora...

D. ANA - Há duas horas que está-se vestindo, doutor. Quando espera pelo senhor não quer sair do espelho. Veja como está bonitinha!

MARIQUINHAS - Mamãe...

GASPARINO - Em compensação traz uma elegante toalete.

CARLOS - E muito natural que uma moça na idade de Dona Mariquinhas, possuindo tantos encantos, ame aos espelhos.

MARIQUINHAS (Rindo-se.) - Mas o que não é natural é que o Senhor Doutor Carlos seja tão lisonjeiro para comigo.

CARLOS - Lisonjeiro, porque disse a verdade.

D. ANA (Para Gasparino.) - Olhe como estão ternos! Nem ao menos respeitam a presença de uma mãe para renderem-se finezas. Vamos dar um passeio pelo jardim, Senhor Gasparino, para não perturbar a felicidade destes dois anjinhos. Lá continuaremos aquela conversação tão bela que foi interrompida.

GASPARINO (À parte.) - Está mesmo me desafiando. Vou acabar a declaração. (Dá o braço a D. Ana.)

D. ANA - Vamos dar um passeio pelo jardim: até já. (Saem pelo fundo.)

CENA VII

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CARLOS e MARIQUINHAS

MARIQUINHAS - Realizou-se enfim toda a nossa ventura, Carlos!

CARLOS - E verdade, Mariquinhas, mas, se não te adorasse como um anjo, nunca a aceitaria por um tal preço! Outrora eu era um simples doutorzinho em medicina, cuja fortuna consistia em um diploma, um desgraçado que freqüentava a tua casa, e se não era maltratado por tua mãe, era muitas vezes recebido com indiferença. Hoje trocaram-se as cenas e o Doutor Carlos de Brito toma o lugar do estúpido Barão pelos motivos que tu bem sabes e que meus lábios não devem pronunciar. Tua mãe especula com a tua mão, tua mãe calca aos pés a virtude e a dedicação para ajoelhar-se diante do ídolo da época, tua mãe é...

MARIQUINHAS - É minha mãe, Carlos.

CARLOS - Tens razão, é tua mãe. Perdoa este desvario.

MARIQUINHAS (Risonha.) - Está perdoado. Agora só o que te peço é que não sejas tão mau e que freqüentes esta casa.

CARLOS - Para quem vem disposto a solicitar hoje mesmo tua mão, esse pedido é inútil.

MARIQUINHAS - Oh! eu te agradeço, Carlos. O coração vaticina-me que havemos de ser muito felizes. Mas o que me dói e que mais me amofina, é ver minha mãe zombar assim desse pobre homem a quem prometeu a minha mão sem consultar minha vontade e desprezando todas as considerações, quando devia ser a primeira a desenganá-lo. Tenho pena dele, Carlos.

CARLOS - Não te incomodes: tua mãe há de sair deste embaraço da melhor maneira possível.

MARIQUINHAS - E é o Senhor Gasparino, o mesmo que lisonjeava o seu amor próprio e que um papel tão indigno representou entre mim e ele, que se incumbe de despedi-lo desta casa.

CARLOS - Não me dizias que o Senhor Gasparino era um moço de educação? (Barão aparece no fundo.)

MARIQUINHAS - Julgava-o apenas uma cabeça leviana. mas nunca o tive por um homem infame!

CENA VIII

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OS MESMOS e BARÃO (No fundo.)

BARÃO (À parte.) - Ela chamou-o de infame!

CARLOS - É um homem da época.

MARIQUINHAS - Mas o que é verdade é que eu tenho pena do Barão, porque vejo que é um pobre homem.

BARÃO (À parte.) - Oh! ela fala em meu nome! Vou livrá-la das garras daquele malvado. (Avançando para a cena.) Ora viva!

CARLOS (Fazendo uma cortesia.) - Senhor Barão.

BARÃO - Deixemo-nos de cumprimentos. O senhor é um homem infame, e eu não cumprimento a infames.

CARLOS - Como, senhor Barão? Tenha a bondade de repetir.

MARIQUINHAS (À parte.) - Este homem enlouqueceu!

BARÃO - Abusar da inocência de uma menina para fazer-lhe propostas inconvenientes...

CARLOS - Senhor Barão...

MARIQUINHAS - Dê-me o seu braço, Senhor Carlos. Vamos chamar minha mãe para vir cumprimentar o senhor Barão.

CARLOS (Dando o braço) - Se não estivesse ao pé de uma senhora a quem respeito e a quem o senhor devia respeitar por todos os títulos, dar-lhe-ia uma resposta conveniente. (Carlos e Mariquinhas saem conversando baixo.)

CENA IX

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BARÃO, só.

E esta! Querem-na mais clara, deitem-lhe água. Chama-o de infame e sai de braço com ele a conversar muito amigavelmente! Os diabos levem quem for capaz de entender uma mulher! Há três meses que gosto desta menina e até ao presente não me disse coisa com coisa. Ora não me vem logo falar porque está com dor de cabeça; ora desculpa-se com trabalhos de costura; umas vezes recebe-me com muita alegria; outras vezes trata-me mal... enfim o diabo que a entenda. Já estou arrependido de me ter metido em semelhante alhada. Não podia estar eu na Cutia muito à minha vontade! Vir a esta terra endiabrada cheia de carros, de lama e de calor, para deixar-me apaixonar nesta idade por uma menina que é um demônio de saia balão! Sou na verdade bem desgraçado! (Senta-se.)

CENA X

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O MESMO, D. ANA e GASPARINO

D. ANA (Entrando com Gasparino pelo braço.) - Oh! havemos de ser muito felizes! Silêncio! Eis aí o Barão. E preciso desenganá-lo de uma vez. Senhor Barão...

BARÃO - Até que afinal tenho o prazer de vê-la.

GASPARINO (Baixo para D. Ana.) - Vou desenganá-lo já. (Para o Barão.) Saiba Vossa Excelência que...

D. ANA (Para Gasparino.) - Espere que eu o despeço em poucas palavras. (Para o Barão.) Saiba Vossa Excelência que...

BARÃO (Interrompendo.) - Já sei: Vossa Senhoria quer desculpar-se por não me ter aparecido há mais tempo. Eu sei o que são essas coisas; a minha defunta Inês muitas vezes não aparecia às visitas porque tinha de preparar garapa.

D. ANA - Ora, senhor Barão, essas conversações para uma sala...

GASPARINO - Eu também acho-as impróprias.

BARÃO - Garapa não é coisa indecente.

D. ANA - Não duvido, senhor Barão: mas há certas conversações que São impróprias de uma sala.

BARÃO (À parte.) - E esta!

D. ANA (Para Gasparino.) - Agora vai tudo de uma vez. Saiba Vossa Excelência que a menina...

BARÃO (Interrompendo.) - Já sei, minha senhora, eu já a vi: não pôde aparecer logo que eu cheguei, porque está ocupada com o enxoval. Eu não reparo nestas coisas.

D. ANA (Para Gasparino.) - O homem faz-se de tolo.

GASPARINO (Baixo.) - Não senhora, é mesmo muito estúpido: eu o conheço.

D. ANA - Pois senhor Barão, Vossa Excelência há de permitir...

BARÃO - Sem mais incômodo, minha senhora.

CENA XI

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OS MESMOS, CARLOS e MARIQUINHAS

MARIQUINHAS (Entrando pelo fundo de braço com Carlos.) - Já andei à sua procura pelo jardim, mamãe.

D. ANA - Eu passeava pela chácara com o Senhor Gasparino.

BARÃO (À parte.) - E ainda me aparece de braço com o tal pelintra. Vou deslindar toda esta alhada. (Alto, para D. Ana.) Minha senhora, desejava dirigir algumas palavras unicamente à senhora e à sua filha.

D. ANA - Os nossos negócios foram sempre públicos, senhor Barão; nunca tive segredos com Vossa Excelência.

BARÃO (À parte.) - E ela tem razão, porque o casamento é um ato público. (Alto.) Então posso dizer aqui mesmo na vista destes senhores?

D. ANA - Se não for alguma coisa que ofenda as regras da decência...

BARÃO - Nada, não senhora. Somente quero que Vossa Excelência designe positivamente o dia do casamento.

D. ANA - Mariquinhas é quem poderá dizê-lo.

MARIQUINHAS (Baixo para Carlos.) - Vê em que apuros me põe mamãe, Carlos.

BARÃO (Para Mariquinhas.) - O que decide, Sinhá? (À parte.) Como palpita-me o coração.

MARIQUINHAS - Eu...

D. ANA - Esta menina há dias para cá...

GASPARINO - A Senhora Dona Mariquinhas, senhor Barão, ama a outra pessoa e é impossível realizar-se este casamento.

BARÃO - Ama a outra pessoa!

MARIQUINHAS - Nunca o escolhi para intérprete de meus sentimentos, Senhor Gasparino; agradeço-lhe o interesse que toma por mim, senhor Barão: o meu coração nunca poderia pertencer a um homem a quem sempre respeitei e tratei com toda a consideração, mas que nunca me inspirou esse sentimento inexplicável, que deve fazer a felicidade do estado conjugal. O Senhor Doutor Carlos de Brito já solicitou a minha mão: é ele o único que pode tornar-me feliz.

GASPARINO (À parte.) - Afinal está tudo decidido!

D. ANA - Já vê, portanto, senhor Barão, que não posso ir de encontro à vontade de minha filha. Além disso, o Senhor Doutor Carlos está em tal posição...

BARÃO - No que é que a posição do senhor aqui é melhor que a minha? E o meu título de Barão? e as minhas duas fazendas? e os meus dois sítios?

GASPARINO - Isso é nada em relação a uma fortuna de mil contos!

BARÃO - Ah! agora tudo compreendo; e é por causa disso que me desprezam? Eu já devia sabê-lo antes de pisar nesta terra! (Para D. Ana.) A senhora é uma mulher falsa e fingida que põe preço à mão de sua filha e que não duvida comprometer a sua palavra só por causa do dinheiro.

MARIQUINHAS (Para Carlos.) - Ele insulta a minha mãe, Carlos.

CARLOS - E com razão, Mariquinhas.

BARÃO - A senhora será até mesmo capaz de saltar por cima das considerações da honra e da dignidade...

D. ANA - Senhor Barão...

BARÃO - Não receio ameaças porque, se a minha linguagem é de um homem estúpido e sem isso o que a senhora chama educação e que eu chamarei antes a máscara que oculta uma alma corrompida, tenho ao menos a franqueza e a lealdade que caracteriza um homem de província. Antes me falasse com essa linguagem no dia em que pedi a mão de sua filha do que obrigar-me a representar um papel tão indigno! A senhora adulava-me e chegou mesmo a tomar para si uma declaração que era para sua filha, porque tinha em vista lucrar com a minha entrada nesta casa. Eu não encontro até mesmo palavras para dizer o que a senhora é...

D. ANA - Senhor Barão, lembre-se que está no seio de uma família.

BARÃO - Onde estou sei eu: é no seio da corrupção e da miséria!

GASPARINO - E melhor retirar-se, senhor Barão, para não dar escândalos.

BARÃO - E é o senhor que fala em escândalos!

GASPARINO (À parte.) - Ei-lo comigo.

BARÃO - O senhor que é talvez a causa de tudo isto! O senhor que especulou também com este negócio, servindo de correio de meus amores, para exigir depois o pagamento de algumas dívidas que sua mulher não quis pagar! O senhor, que pela entrega de uma carta esfolou-me trezentos mil réis.

GASPARINO (À parte.) - Que escândalo!

BARÃO - O senhor é um homem vil, ordinário e infame!

GASPARINO - O silêncio é a arma de que me sirvo para responder aos insultos.

BARÃO - Vou-me embora quanto antes. O ar que aqui se respira é venenoso e eu quero entrar na Cutia tão puro e tão limpo como de lá saí. (Para D. Ana e Gasparino.) Vivam! (Para Carlos e Mariquinhas.) Que sejam muito felizes, é o que desejo. Vivam! (Sai pelo fundo sem chapéu.)

CENA XII

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GASPARINO, CARLOS, MARIQUINHAS, D. ANA e depois BARÃO

GASPARINO - O homem saiu vraiment furioso!

D. ANA - Agora posso respirar mais livremente.

CARLOS (Para D. Ana.) - Minha senhora, solicitando a mão de sua filha, permita-me que faça-lhe uma pequena observação. Não é o interesse, nem uma esperança de lucros que me liga a este protótipo de virtudes, mas sim um sentimento que Vossa Excelência desconhece e que na época atual desafia o epigrama. Como simples doutor em medicina sei que a mão de sua filha me seria negada: Vossa Excelência queria um título ainda mais nobre; esse título a fortuna mo deparou. Não é o Doutor Carlos de Brito que hoje vem fazer parte da sua família: é um milionário, um capitalista que vem realizar as ambições de Vossa Excelência.

D. ANA - Não faça injustiça aos meus sentimentos, doutor. Pode avaliar-se os feitos de uma paixão quando a sentimos também no peito.

BARÃO (Entrando.) - O meu chapéu. (Procurando o chapéu.)

D. ANA - E para prova disso apresento-lhe o Senhor Gasparino de Mendonça, que de hoje em diante fará parte da nossa família com o doce nome de meu esposo.

BARÃO - Ah! Casam-se. Que boa peça lhe cai em casa! Já estou vingado. Cá está o chapéu. (Sai pelo fundo.)

MARIQUINHAS (Para Carlos.) - Nunca consentiremos que nossa mãe case-se com semelhante homem, Carlos.

CARLOS - É ainda uma ambição fatal que a cega: cumpra-se o seu castigo na terra.

(Cai o pano.)

FIM