É a Revista Militar, aqui publicada sob a direção do estado-maior brasileiro, que nos depara, no seu fascículo de maio, um quadro notável do exército chileno em 1898, magistralmente feito por um oficial alemão outrora empregado ali no corpo de instrutores.

Tudo o que ali se descreve com os dados mais precisos e nos traços mais pinturescos poderia condensar-se na síntese pream­bular a esse trabalho. “Amiudadamente se tem chamado ao Chile”, escreve o autor, “a Prússia da América do Sul; e, com efeito, quem hoje tiver ocasião de ver tropas chilenas em Valparaíso, ou Santiago, julgará ver tropas alemãs. Ali marcham à frente pífanos e tambores, depois a banda do regimento com os nidos de golondrinas prusianos aos ombros, e após a tropa, vestindo ao modelo alemão dos pés à cabeça. Se a farda fosse mais escura, a ilusão seria completa. Os oficiais, com palas, porta-espadas e cinturões à alemã, têm exatamente o aspecto dos da nossa terra. Antes de tudo, há uma circunstância especial, que infunde admiração ao forasteiro: a irrepreensível disciplina de marcha, que na tropa domina, e que se não alcançou, até hoje, em estado nenhum da América do Sul, nem provavelmente jamais se alcançará. Na verdade o Chile pode estar orgulhoso da obra dos últimos anos, e, se algum dia, na realidade, tocarem as cornetas e tambores, desde a cordilheira dos Andes, chamando os combatentes em torno das bandeiras até esta hora nunca vencidas, a expectativa do mundo inteiro acompanhará admirada o vôo do condor chileno, e logo se dirá dele como de sua irmã, a águia alemã — nec soli cedis”!

A que deve aquela organização militar essa aprimorada cultura, essa invejável robustez, essa perfeição capaz de emular com os melhores exércitos europeus? À obra paciente de um grande educador, ao trabalho sistemático de uma vigorosa individualidade, à confiança da nação num estrangeiro, habilmente escolhido e revestido pelo bom senso chileno de soberana autoridade na execução da sua tarefa. A sólida intuição daquele povo nunca se deixou embelegar, a esse respeito, do ridículo nacionalismo, que tem sido e há de ser a miséria de outros.

O primeiro diretor a quem se confiou, logo depois da emancipação nacional, sob o governo de O’Higgins, a escola militar por ele recém-criada, foi um francês de merecimento, o capitão Georges Beauchef, que guerreara nas campanhas do império sob Napoleão I. Tempos mais tarde era a um oficial do mesmo posto, buscado nas fileiras da Alemanha, que o governo de Valparaíso confiava a criação do seu poder marcial. Nesse empenho trabalha desde 1880 o europeu, que ali ocupa atualmente o posto de chefe do estado-maior, o general Körner; e à supremacia, à ditadura moral e técnica, em que nesse ramo da defesa nacional o investiu a confiança do povo se deve a presteza dessa maravilha, o assombro da rivalidade atual desse exército com o seu grande padrão europeu.

Trinta oficiais alemães, dos quais cinco ainda hoje ali colaboram, saíram do serviço germânico, para vir formar, no seio da heróica nação transandina, os soldados admiráveis, que presentemente a honram. Não é que faltassem à pátria de Arturo Prat e Riquelme tradições militares. Nenhuma nacionalidade americana as possuía mais gloriosas do que aquela. Mas o instinto das suas virtudes austeras lhe ensinava a evitar esses lados mesquinhos de amor-próprio, que seqüestram das fontes vivas do progresso as raças pequeninas, desvanecidas na sua mediocridade e condenadas por isso a dela morrerem.

Não sabemos de que modo se sairia da sua temeridade o desgraçado, que ousasse propor, entre nós, o chamamento de trinta militares estrangeiros, para organizarem e instruírem as nossas forças. Entretanto, quando a esse expediente recorreu o governo chileno, mui superior era a importância das suas à das brasileiras neste momento; porque, na luta com o Peru e a Bolívia, ultimada em 1883 com a vitória para o Chile, dispunha este, ainda após a campanha, de 54.000 homens.

O Chile não aboliu os cadetes: educou-os. Em três anos, principiando aos quinze, e findando aos dezoito, percorrem os alunos o curso, habilitando-se a deixá-lo pelo exame que os inscreve entre os oficiais. “Divididos então em companhias, os cadetes fazem em um ano o curso de instrução do soldado alemão. Sumamente dóceis, fisicamente ágeis e muito interessados na sua hierarquia, estes jovens têm adquirido no Chile especial fama militar. Como imitam em tudo, ainda fora de serviço, os seus instrutores, costumam chamar-lhes ironicamente os alemães.”

A cultura superior, que ali recebe a mocidade militar, não podia deixar de atrair para ela os melhores elementos da sociedade. “A Escola tem subido tanto na opinião pública, que ultimamente as melhores famílias do país enviam seus filhos às fileiras dos cadetes. Naturalmente uma tal seleção de oficiais não podia deixar de exercer influência sobre a oficialidade inteira. Vão, pois, anualmente quatro ou cinco cadetes ao regimento e aí permanecem fiéis à sua educação. Como estão inteiramente instruídos à alemã, são consultados nos corpos, em caso de dúvida, sobre o novo regulamento do exército, e mostram os tipos dos movimentos, os tempos, as marchas etc. É fácil imaginar quanto isso contribui para revigorar a própria confiança moral dos jovens oficiais. Atualmente todos os segundos-tenentes passaram pela Escola Militar reorganizada, e pode-se dizer que todo oficial chileno, moço, é não só excelente instrutor, mas ainda completo e pundonoroso cavaleiro. Quantas vezes”, prossegue o narrador alemão, “quantas vezes não estivemos sentados na Praça d’Armas, nós outros alemães de Santiago, deleitando-nos à noite, durante o concerto da banda, com o porte dos nossos jovens oficiais! Elegantemente vestidos, de luvas brancas e gorro alemão, circulavam lestos por entre o povo, e muitos velhos chilenos os seguiam com a vista, contemplando-os sorridentes e orgulhosos.”

Com uma preparação aprimorada e polida nesses altos exemplares da ciência, da arte e do valor a vocação marcial se desbasta da sua aspereza, da sua truculência, da sua brutalidade, para concentrar e apurar em si as qualidades mais robustas e nobres do tipo humano. A inteligência, a generosidade e a graça irradiam na força, e cativam o espírito, em vez de o repelir.

Como os que lhe estão acima, os oficiais inferiores recebem também metodicamente a impressão de um cunho intelectual. Em sua quase totalidade são produtos da Escola de Classes de Santiago. “Só uma fração mínima sai da própria tropa. Forma um batalhão a Escola de Classes, cujo comandante é um oficial alemão. Nessa instituição tão boa é a instrução militar, que esse oficial obteria aplausos excepcionais em qualquer campo de exercícios alemães.”

Essa reprodução germânica, não pedantesca e fútil, mas inteligente, séria e regenerativa, abrange além-Andes toda a vida militar, assinalando-se em todas as suas aparências e em todas as suas realidades. O militar chileno é alemão dos pés à cabeça: no gorro, no vivo bordado do voluntário, no azul da farda, tirante ao do guarda a cavalo da Saxônia, na divisa estrelada, no uniforme de infanteria, a Brandeburgo, no fitilho, ou nas franjas das calças, no fuzil, na baioneta, no equipamento, no conduzir da barraca, do capote, dos bornais, na perfeição da continência militar. A infanteria instrui-se pelo regimento germânico. O ensino de tiro obedece ao mesmo modelo. Da artilheria montada, composição, equipamento, armamento, tudo copia o mesmo original. Nas revistas de recrutas a instrução se faz exatamente como nas margens do Reno. “À moda alemã é feito atualmente todo o serviço do exército chileno.” Julgará estar entre praças alemãs quem se achar entre aquelas praças, entre oficiais alemães quem tratar com aqueles oficiais. Tão fundo, em suma, penetrou nessa imagem americana do mais belo dos exércitos europeus a alma do tipo reproduzido, que “até os antigos chistes de quartel, há muito sumidos na Alemanha, celebram deste lado do oceano, em tradução espanhola, a sua ressurreição”. Por outro lado, a tal eminência se elevou esse desenvolvimento nos seus aspectos superiores, que os meios de reunir, distribuir e utilizar, ao primeiro reclamo, todos esses elementos se acham estudados, previstos, dispostos rigorosamente numa formação de guerra, num plano de mobilização, dizem que admirável, confiado ao estudo, à guarda e ao aperfeiçoamento de um estado-maior digno da Alemanha.

Pelo que toca ao Chile, é isso o exército. Do argentino bastará dizer que os seus compatriotas o presumem capaz de rivalizar com ele vitoriosamente. Vivendo muito tempo ali, o autor destas linhas teve freqüentes ocasiões de admirá-lo, naquilo em que aos olhos do espectador ordinário se pode afirmar a superioridade de forças militares: na seleção, vigor e bizarria dos homens, na igualdade, coesão e luzimento dos batalhões, na rapidez, segurança e precisão dos movimentos, na facilidade, correção e pureza dos exercícios, na segurança, esmero e nitidez da manobra, no rigor, firmeza e excelência da disciplina, no brio, desgarre e elegância do porte. Formosos regimentos esses, que lá vimos desfilar, tantas vezes, pelas ruas da soberba capital, desfraldando, aos sons da música heróica, o azul da bandeira de maio.

É de um general desse exército, verdadeiramente europeu como o outro, que vamos ter a visita. Formidável juiz, portanto, aquele que vai receber a continência das nossas armas. Oxalá possamos arrostar a prova sem receio, e sair dela com lustre. Noblesse oblige. Temos de mostrar aos nossos antigos aliados que a nossa geração contemporânea não decaiu do direito aos louros conquistados de parceria com os soldados de Mitre, provando, ao mesmo tempo, que não necessitávamos de ir à escola alemã, com a Argentina e o Chile, com o Sr. Körner e o Sr. Cardevilla, para aparecer bem perante os Andes e o Prata.

A nossa marinha apenas terá, para brilhar, a sua Escola, um punhado de oficiais sem navios e alguns restos da sua maruja trucidada.

Será mais feliz o nosso exército?