Oito horas da manhã. A cerração ainda envolve tudo. Do lado da terra, mal se enxergam as partes baixas dos edifícios próximos; para o lado do mar, então, a vista é impotente contra aquela treva esbranquiçada e flutuante, contra aquela muralha de flocos e opaca, que se condensa ali e aqui em aparições, em semelhanças de coisas. O mar está silencioso: há grandes intervalos entre o seu fraco marulho. Vê-se da praia um pequeno trecho, sujo, coberto de algas, e o odor da maresia parece mais forte com a neblina. Para a esquerda e para a direita, é o desconhecido, o Mistério. Entretanto, aquela pasta espessa, de uma claridade difusa, está povoada de ruídos. O chiar das serras vizinhas, os apitos de fábricas e locomotivas, os guinchos de guindastes dos navios enchem aquela manhã indecifrável e taciturna; e ouve-se mesmo a bulha compassada de remos que ferem o mar. Acredita-se, dentro daquele decoro, que é Caronte que traz a sua barca para uma das margens do Estige...
Atenção! Todos perscrutam a cortina de névoa pastosa. Os rostos estão alterados; parece que do seio da bruma vão surgir demônios...
Não se ouve mais a bulha: o escaler afastou-se. As fisionomias respiram aliviadas...
Não é noite, não é dia; não é o dilúculo, não é o crepúsculo; é a hora da angústia, é a luz da incerteza. No mar, não há estrelas nem sol que guiem; na terra, as aves morrem de encontro às paredes brancas das casas. A nossa miséria é mais completa e a falta daqueles mudos marcos da nossa atividade dá mais forte percepção do nosso isolamento no seio da natureza grandiosa.
Os ruídos continuam, e, como nada se vê, parece que vêm do fundo da terra ou são alucinações auditivas, A realidade só nos vem do pedaço de mar que se avista, marulhando com grandes intervalos, fracamente, tenuemente, a medo, de encontro à areia da praia, suja de bodelhas, algas e sargaços.
Aos grupos, após o rumor dos remos, os soldados deitaram-se pela relva que continua a praia. Alguns já cochilam; outros procuram com os olhos o céu através do nevoeiro que lhes umedece o rosto.
O cabo Ricardo Corado dos Outros, de refle à cintura e gorro à cabeça, sentado numa pedra, está de parte, sozinho, e olha aquela manhã angustiosa.
Era a primeira vez que via a cerração assim perto do mar, onde ela faz sentir toda a sua força de desesperar. Em geral, ele só tinha olhos para as alvoradas claras e purpurinas, macias e fragrantes; aquele amanhecer brumoso e feio, era uma novidade para ele.
Sob o fardamento de cabo, o menestrel não se aborrece. Aquela vida solta da caserna vai-lhe bem n'alma; o violão está lá dentro e, em horas de folga, ele o experimenta, cantarolando em voz baixa. É preciso não enferrujar os dedos... O seu pequeno aborrecimento é não poder, de quando em quando, soltar o peito.
O comandante do destacamento é Quaresma que talvez consentisse...
O major está no interior da casa que serve de quartel, lendo. O seu estudo predileto é agora artilharia. Comprou compêndios; mas, como sua instrução é insuficiente, da artilharia vai à balística, da balística à mecânica, da mecânica ao cálculo e à geometria analítica; desce mais a escada; vai à trigonometria, à geometria e à álgebra e à aritmética. Ele percorre essa cadeia de ciências entrelaçadas com uma fé de inventor. Aprende uma noção elementaríssima após um rosário de consultas, de compêndio em compêndio; e leva assim aqueles dias de ócio guerreiro enfronhado na matemática, nessa matemática rebarbativa e hostil aos cérebros que já não são mais moços.
Há no destacamento um canhão Krupp, mas ele nada tem a ver com o mortífero aparelho; contudo, estuda artilharia. É encarregado dele o Tenente Fontes, que não dá obediência alguma ao patriota major. Quaresma não se incomoda com isso; vai aprendendo lentamente a servir-se da boca de fogo e submete-se à arrogância do subalterno.
O comandante do "Cruzeiro do Sul", o Bustamante da barba mosaica, continua no quartel, superintendendo a vida do batalhão. A unidade tem poucos oficiais e muito poucas praças; mas o Estado paga o pré de quatrocentas. Há falta de capitães, o número de alferes está justo, o de tenentes quase, mas já há um major, que é Quaresma, e o comandante, Bustamante, que, por modéstia, se fez simplesmente tenente-coronel.
Tem quarenta praças o destacamento que Quaresma comanda, três alferes, dois tenentes; mas os oficiais pouco aparecem. Estão doentes ou licenciados e só ele, o antigo agricultor do "Sossego", e um alferes, Polidoro, este mesmo só à noite, estão a postos. Um soldado entrou:
— Senhor comandante, posso ir almoçar?
— Pode. Chama-me o cabo Ricardo.
A praça saiu capengando em cima de grandes botinas; o pobre homem usava aquela peça protetora como um castigo. Assim que se viu no mato, que levava à sua casa, tirou-as e sentiu pelo rosto o sopro da liberdade.
O comandante chegou à janela. A cerração se ia dissipando. Já se via o sol que brilhava como um disco de ouro fosco.
Ricardo Coração dos Outros apareceu. Estava engraçado dentro do seu fardamento de caporal. A blusa era curtíssima, sungada; os punhos lhe apareciam inteiramente; e as calças eram compridíssimas e arrastavam no chão.
— Como vais, Ricardo?
— Bem. E o senhor major?
— Assim.
Quaresma deitou sobre o inferior e amigo, aquele seu olhar agudo e demorado:
— Andas aborrecido, não é?
O trovador sentiu-se alegre com o interesse do comandante:
— Não... Para que dizer, major, que sim... Se a coisa for assim até ao fim, não é mau... O diabo é quando há tiro... Uma coisa, major; não se poderia, assim, aí pelas horas em que não há que fazer, ir nas mangueiras, cantar um pouco...
O major coçou a cabeça, alisou o cavanhaque e disse:
— Eu, não sei... É...
— O senhor sabe que isto de cantar baixo é remar em seco... Dizem que no Paraguai...
— Bem. Cante lá; mas não grite, hein?
Calaram-se um pouco; Ricardo ia partir quando o major recomendou:
— Manda-me trazer o almoço.
Quaresma jantava e almoçava ali mesmo. Não era raro também dormir. As refeições eram-lhe fornecidas por um "frege" próximo e ele dormia em um quarto daquela edificação imperial. Porque a casa em que se acantonara o destacamento, era o pavilhão do imperador, situado na antiga Quinta da Ponta do Caju. Ficavam nela também a estação da estrada de ferro do Rio Douro e uma grande e bulhenta serraria. Quaresma veio até à porta, olhou a praia suja e ficou admirado que o imperador a quisesse para banhos. A cerração se ia dissipando inteiramente.
As formas das coisas saíam modeladas do seio daquela massa de névoa pesada; e, satisfeitas, como se o pesadelo tivesse passado. Primeiro surgiam as partes baixas, lentamente; e por fim, quase repentinamente, as altas.
À direita, havia a Saúde, a Gamboa, os navios de comércio: galeras de três mastros, cargueiros a vapor, altaneiros barcos à vela - que iam saindo da bruma, e, por instantes aquilo tudo tinha um ar de paisagem holandesa; à esquerda, era o saco da Raposa, o Retiro Saudoso, a Sapucaia horrenda, a ilha do Governador, os Órgãos azuis, altos de tocar no céu; em frente, a ilha dos Ferreiros, com os seus depósitos de carvão; e alongando a vista pelo mar sossegado, Niterói, cujas montanhas acabavam de recortar-se no céu azul, à luz daquela manhã atrasada.
A neblina foi-se e um galo cantou. Era como se a alegria voltasse à terra; era uma aleluia. Aqueles chiados, aqueles apitos, os guinchos tinham um acento festivo de contentamento.
Chegou o almoço e o sargento veio dizer a Quaresma que havia duas deserções.
— Mais duas? fez admirado o major.
— Sim, senhor. O cento e vinte e cinco e o trezentos e vinte não responderam hoje a revista.
— Faça a parte.
Quaresma almoçava. O Tenente Fontes, o homem do canhão, chegou. Quase nunca dormia ali; pernoitava em casa, e, durante o dia, vinha ver as coisas como iam.
Uma madrugada, ele não estava. A treva ainda era profunda. O soldado de vigia viu lá, ao longe, um vulto que se movia dentro da sombra, resvalando sobre as águas do mar. Não trazia luz alguma: só o movimento daquela mancha escura revelava uma embarcação, e também a ligeira fosforescência das águas. O soldado deu rebate; o pequeno destacamento pôs-se a postos e Quaresma apareceu.
— O canhão! Já! Avante! ordenou o comandante. E, em seguida, nervoso, recomendou:
— Esperem um pouco.
Correu a casa e foi consultar os seus compêndios e tabelas. Demorouse e a lancha avançava, os soldados estavam tontos e um deles tomou a iniciativa: carregou a peça e disparou-a.
Quaresma reapareceu correndo, assustado e disse, entrecortado pelo resfolegar:
— Viram bem... a distância... a alça... o ângulo... É preciso ter sempre em vista a eficiência do fogo.
Fontes veio e sabendo do caso no dia seguinte riu-se muito:
— Ora, major, você pensa que está em um polígono, fazendo estudos práticos... Fogo para diante!
E assim era. Quase todas as tardes havia bombardeio, do mar para as fortalezas, e das fortalezas para o mar; e tanto os navios como os fortes saiam incólumes de tão terríveis provas.
Lá vinha uma ocasião, porém, que acertavam, então os jornais noticiavam: "Ontem, o forte Acadêmico fez um maravilhoso disparo. Com o canhão tal, meteu uma bala no 'Guanabara'." No dia seguinte, o mesmo jornal retificava, a pedido da bateria do cais Pharoux que era a que tinha feito o disparo certeiro. Passavam-se dias e a coisa já estava esquecida, quando aparecia uma carta de Niterói, reclamando as honras do tiro para a fortaleza de Santa Cruz.
O Tenente Fontes chegou e esteve examinando o canhão com o faro de entendedor. Havia uma trincheira de fardos de alfafa e a boca da peça saía por entre os fiapos da palha, como as goelas de um animal feroz oculto entre ervas.
Olhava o horizonte, depois de exame atento ao canhão, e considerava a ilha das Cobras, quando ouviu o gemer do violão e uma voz que dizia:
Prometo pelo Santíssimo Sacramento...
Dirigiu-se para o local donde partiam os sons e se lhe deparou este lindíssimo quadro: à sombra de uma grande árvore, os soldados deitados ou sentados em círculo, em torno de Ricardo Coração dos Outros, que entoava endechas magoadas.
As praças tinham acabado de almoçar e beber a pinga, e estavam tão embevecidas na canção de Ricardo que não deram pela chegada do jovem oficial.
— Que é isto? disse ele severamente.
Os soldados levantaram-se todos, em continência; e Ricardo, com a mão direita no gorro, perfilado, e a esquerda, segurando o violão, que repousava no chão, desculpou-se:
— "Seu" tenente, foi o major quem permitiu. Vossa Senhoria sabe que se nós não tivéssemos ordem, não iríamos brincar.
— Bem. Não quero mais isto, disse o oficial.
— Mas, objetou Ricardo, o Senhor Major Quaresma...
— Não temos aqui Major Quaresma. Não quero, já disse!
Os soldados debandaram e o Tenente Fontes seguiu para a velha casa imperial, ao encontro do major do "Cruzeiro do Sul". Quaresma continuava no seu estudo, um rolar de Sísifo, mas voluntário, para a grandeza da pátria. Fontes foi entrando e dizendo:
— Que é isto, "Seu" Quaresma! Então o senhor permite cantorias no destacamento?
O major não se lembrava mais da coisa e ficou espantado com o ar severo e ríspido do moço. Ele repetiu:
— Então o senhor permite que os inferiores cantem modinhas e toquem violão, em pleno serviço?
— Mas que mal faz? Ouvi dizer que em campanha...
— E a disciplina? E o respeito?
— Bem, vou proibir, disse Quaresma.
— Não é preciso. Já proibi.
Quaresma não se deu por agastado, não percebeu motivo para agastamento e disse com doçura:
— Fez bem.
Em seguida perguntou ao oficial o modo de extrair a raiz quadrada de uma fração decimal; o rapaz ensinou-lhe e eles estiveram cordialmente conversando sobre coisas vulgares. Fontes era noivo de Lalá, a terceira filha do General Albernaz, e esperava acabar a revolta para efetuar o casamento. Durante uma hora a conversa entre os dois versou sobre este pequenino fato familiar a que estavam ligados aqueles estrondos, aqueles tiros, aquela solene disputa entre duas ambições. Subitamente, a corneta feriu o ar com a sua voz metálica. Fontes assestou o ouvido; o major perguntou:
— Que toque é?
— Sentido.
Os dois saíram. Fontes perfeitamente fardado; e o major apertando o talim, sem encontrar jeito, tropeçando na espada venerável que teimava em se lhe meter entre as pernas curtas. Os soldados já estavam nas trincheiras, armas à mão; o canhão tinha ao lado a munição necessária. Uma lancha avançava lentamente, com a proa alta assestada para o posto. De repente, saiu de sua borda um golfão de fumaça espessa: Queimou! - gritou uma voz. Todos se abaixaram, a bala passou alto, zunindo, cantando, inofensiva. A lancha continuava a avançar impávida. Além dos soldados, havia curiosos, garotos, a assistir o tiroteio, e fora um destes que gritara: queimou!
E assim sempre. Às vezes eles chegavam bem perto à tropa, às trincheiras, atrapalhando o serviço; em outras, um cidadão qualquer, chegava ao oficial e muito delicadamente pedia: O senhor dá licença que dê um tiro? O oficial acedia, os serventes carregavam a peça e o homem fazia a pontaria e um tiro partia.
Com o tempo, a revolta passou a ser uma festa, um divertimento da cidade... Quando se anunciava um bombardeio, num segundo, o terraço do Passeio Público se enchia. Era como se fosse uma noite de luar, no tempo em que era do tom apreciá-las no velho jardim de Dom Luís de Vasconcelos, vendo o astro solitário pratear a água e encher o céu.
Alugavam-se binóculos e tanto os velhos como as moças, os rapazes como as velhas, seguiam o bombardeio como uma representação de teatro: "Queimou Santa Cruz! Agora é o 'Aquidabã'! Lá vai". E dessa maneira a revolta ia correndo familiarmente, entrando nos hábitos e nos costumes da cidade.
No cais Pharoux, os pequenos garotos, vendedores de jornais, engraxates, quitandeiros ficavam atrás das portadas, dos urinários, das árvores, a ver, a esperar a queda das balas; e quando acontecia cair uma, corriam todos em bolo, a apanhá-la como se fosse uma moeda ou guloseima,
As balas ficaram na moda. Eram alfinetes de gravata, berloques de relógio, lapiseiras, feitas com as pequenas balas de fuzis: faziam-se também coleções das médias e com os seus estojos de metal, areados, polidos, lixados, ornavam os consolos, os dunkerques das casas médias; as grandes, os "melões" e as "abóboras", como chamavam, guarneciam os jardins, como vasos de faiança ou estátuas.
A lancha continuava a atirar. Fontes fez um disparo. O canhão vomitou o projétil, recuou um pouco e logo foi posto em posição. A embarcação respondeu e o rapazote gritou: queimou!
Eram sempre esses garotos que anunciavam os tiros do inimigo. Mal viam o fuzilar breve e a fumaça, lá longe, no navio, jorrar devagar, muito pesada, gritavam: - queimou!
Houve um em Niterói que teve o seu quarto de hora de celebridade. Chamavam-no "Trinta-Réis"; os jornais do tempo ocuparam-se com ele, fizeram-se subscrições a seu favor. Um herói! Passou a revolta e foi esquecido, tanto ele como a "Luci", uma bela lancha que chegou fazer-se entidade na imaginação da urbs, a interessá-la, a criar inimigos e admiradores.
A embarcação deixou de provocar a fúria do posto do Caju, e Fontes deu instruções ao seu chefe da peça, e foi-se embora.
Quaresma recolheu-se no seu quarto e continuou os seus estudos guerreiros. Os mais dias que passou naquele extremo da cidade não eram diferentes deste. Os acontecimentos eram os mesmos e a guerra caía na banalidade da repetição dos mesmos episódios.
A espaços, quando o aborrecimento lhe vinha, saía. Descia a cidade e deixava o posto entregue a Polidoro ou a Fontes, se estava.
Raras vezes o fazia de dia, porque Polidoro, o mais assíduo, marceneiro de profissão e em atividade numa fábrica de móveis, só vinha à noite.
No centro da cidade, a noite era alegre e jovial. Havia muito dinheiro, o governo pagava soldos dobrados, e, às vezes, gratificações, além do que havia também a morte sempre presente; e tudo isso estimulava o divertir-se. Os teatros eram freqüentados e os restaurants noturnos também.
Quaresma, porém, não se metia naquele ruído de praça semi-sitiada. Ia às vezes ao teatro, à paisana, e, logo acabado o espetáculo, voltava para o quarto da cidade ou para o posto.
Em outras tardes, logo que Polidoro chegava, saía a pé, pelas ruas dos arredores, pelas praias até ao Campo de São Cristóvão.
Ia vendo aquela sucessão de cemitérios, com as suas campas alvas que sobem montanhas, como carneiros tosquiados e limpos a pastar; aqueles ciprestes meditativos que as vigiam; e como que se lhe representava que aquela parte da cidade era feudo e senhorio da morte.
As casas tinham um aspecto fúnebre, recolhidas e concentradas; o mar marulhava lugubremente na ribanceira lodosa; as palmeiras ciciavam doridas; e até o tilintar da campainha dos bondes era triste e lúgubre.
A paisagem se impregnava da Morte e o pensamento de quem passava ali mais ainda, para fazer sentir nela tão forte aspecto funéreo.
Foi vindo até ao campo; aí deu-lhe vontade de ver a sua antiga casa e afinal entrou na residência do General Albernaz. Devia-lhe aquela visita e aproveitou o ensejo.
Acabavam de jantar e jantara com o general, além do Tenente Fontes e o Almirante Caldas, o comandante de Quaresma, o Tenente-Coronel Inocêncio Bustamante.
Bustamante era um comandante ativo, mas dentro do quartel, Não havia quem como ele se interessasse pelos livros, pela boa caligrafia, com que eram escritos os livros mestres, as relações de mostra, os mapas de companhia e outros documentos. Com auxílio deles, a organização do seu batalhão era irrepreensível; e, para não deixar de vigiar a escrituração, aparecia de onde em onde nos destacamentos do seu corpo.
Havia dez dias que Quaresma o não via. Após os cumprimentos, ele logo perguntou ao major:
— Quantas deserções?
— Até hoje, nove, disse Quaresma.
Bustamante coçou a cabeça desesperado e refletiu:
— Eu não sei o que tem essa gente... é um desertar sem nome... Falta-lhes patriotismo!
— Fazem muito bem... Ora! disse o almirante.
Caldas andava aborrecido, pessimista. O seu processo ia mal e até agora o governo não lhe tinha dado coisa alguma. O seu patriotismo se enfraquecia com o diluir-se da esperança de ser algum dia vice-almirante. É verdade que o governo ainda não organizara a sua esquadra; entretanto, pelo rumor que corria, ele não comandaria nem uma divisão. Uma iniqüidade! Era velho um pouco, é verdade; mas, por não ter nunca comandado, nessa matéria ele podia despender toda uma energia moça.
— O almirante não deve falar assim... A pátria está logo abaixo da humanidade.
— Meu caro tenente, o senhor é moço... Eu sei o que são essas coisas...
— Não se deve desesperar... Não trabalhamos para nós, mas para os outros e para os vindouros, continuou Fontes persuasivo.
— Que tenho eu com eles? fez agastado Caldas,
Bustamante, o general e Quaresma assistiam a pequena discussão calados e os dois primeiros um tanto sorridentes com a fúria de Caldas, que não se cansava de dançar a perna e alisar os longos favoritos brancos. O tenente respondeu:
— Muito, almirante. Nós todos devemos trabalhar para que surjam épocas melhores, de ordem, de felicidade e elevação moral.
— Nunca houve e nunca haverá! disse de um jato Caldas.
— Eu também penso assim, acrescentou Albernaz.
— Isto há de sempre ser o mesmo, aduziu ceticamente Bustamante.
O major nada disse; parecia desinteressado da conversa. Fontes, em face daquelas contestações, ao contrário de seus congêneres de seita, não se agastou. Ele era magro e chupado, moreno carregado e a oval do seu rosto estava amassada aqui e ali.
Com a sua voz arrastada e nasal, agitando a mão direita no jeito favorito dos sermonários, depois de ouvir todos, falou com unção:
— Houve já um esboço: a Idade Média.
Ninguém ali lhe podia contestar. Quaresma só sabia história do Brasil e os outros nenhuma.
E a sua afirmação fez calar todos, embora no íntimo duvidosos. É uma curiosa Idade Média, essa de elevação moral, que a gente não sabe onde fica, em que ano? Se a gente diz: "No tempo de Clotário, ele próprio, com suas mãos, atacou fogo na palhoça em que encerrava o seu filho Crame mais a mulher deste e filhos" - o positivista objeta: "Ainda não estava perfeitamente estabelecido o ascendente da igreja". "São Luís", diremos logo nós, "quis executar um senhor feudal porque mandou enforcar três crianças que tinham morto um coelho nas suas matas". Objeta o fiel: "Você não sabe que a nossa Idade Média vai até o aparecimento da Divina Comédia? São Luís já era a decadência"... Citam-se as epidemias de moléstias nervosas, a miséria dos campônios, as ladroagens a mão armada dos barões, as alucinações do milênio, as cruéis matanças que Carlos Magno fez aos saxões; eles respondem: uma hora que ainda não estava perfeitamente estabelecido o ascendente moral da igreja; outra que ele já tinha desaparecido.
Nada disso foi objetado ao positivista e a conversa resvalou para a revolta. O almirante criticava severamente o governo.
Não tinha plano algum, levava a dar tiros à toa; na sua opinião, já devia ter feito todo o esforço para ocupar a ilha das Cobras, embora isso custasse rios de sangue. Bustamante não tinha opinião assentada; mas Quaresma e Fontes julgavam que não: seria uma aventura arriscada e de uma improficuidade patente. Albernaz ainda não tinha dado o seu aviso, e veio a fazê-lo assim:
— Mas nós reconhecemos Humaitá, e por pouco!
— Entretanto, não a tomaram, disse Fontes. As condições naturais eram outras e assim mesmo o reconhecimento foi perfeitamente inútil... O senhor sabe, esteve lá!
— Isto é... Adoeci e vim um pouco antes para o Brasil, mas o Camisão disse-me que foi arriscado.
Quaresma voltara ao silêncio. Ele procurava ver Ismênia. Fontes lhe tinha inteirado do seu estado e o major se sentia por qualquer coisa preso à moléstia da moça. Viu todos: Dona Maricota, sempre ativa e diligente; Lalá, a arrancar, com o olhar, o noivo da conversa interminável, e as outras que vinham, de quando em quando, da sala de visitas à sala de jantar onde ele estava. Por fim, não se conteve, perguntou. Soube que estava em casa da irmã casada e ia pior, cada vez mais abismada na sua mania, enfraquecendo-se de corpo. O general contou tudo com franqueza a Quaresma e quando acabou de narrar aquela sua desgraça íntima, disse com um longo suspiro:
— Não sei, Quaresma... Não sei.
Eram dez horas quando o major se despediu. Voltou de bonde para a Ponta do Caju. Saltou e recolheu-se logo a seu quarto. Vinha cheio da perturbação especial que põe em nós o luar que estava lindo, terno e leitoso, naquela noite. É uma emoção de desafogo do corpo, de delíquio; parece que nos tiram o envoltório material e ficamos só alma, envolvidos numa branda atmosfera de sonhos e quimeras. O major não colhia bem a sensação transcendente, mas sofria sem perceber o efeito da luz pálida e fria do luar. Deitou-se um pouco, vestido, não por sono, mas em virtude daquela doce embriaguez que o astro lhe tinha posto nos sentidos.
Dentro em pouco Ricardo veio chamá-lo: o marechal estava aí. Era seu hábito sair à noite, às vezes, de madrugada, e ir de posto em posto. O fato se espalhou pelo público que o apreciava extraordinariamente, e o presidente teve mais esse documento para firmar a sua fama de estadista consumado.
Quaresma veio ao seu encontro. Floriano vestia chapéu de feltro mole, abas largas, e uma curta sobrecasaca surrada. Tinha um ar de malfeitor ou de exemplar chefe de família em aventuras extraconjugais.
O major cumprimentou-o e esteve a dar-lhe notícias do ataque que fora feito ao seu posto, há dias passados. O marechal respondia por monossílabos preguiçosos e olhava ao redor. Quase ao despedir-se, falou mais, dizendo vagarosamente, lentamente:
— Hei de mandar pôr um holofote aqui.
Quaresma veio acompanhá-lo até ao bonde. Atravessaram o velho sítio de recreio dos imperadores. Um pouco afastada da estação uma locomotiva, semi-acesa, resfolegava. Semelhava roncar, dormindo; os carros, pequenos, banhados pelo luar, muito quietos, sossegados como que dormiam. As anosas mangueiras, com falta de galhos aqui e ali, pareciam polvilhadas preciosamente de prata. O luar estava magnífico. Os dois andavam, o marechal perguntou:
— Quantos homens tem você?
— Quarenta.
O marechal mastigou um: "não é muito"; e voltou ao mutismo. Num dado momento, Quaresma viu-lhe o rosto inundado pela luz da lua. Pareceu-lhe mais simpática a fisionomia do ditador. Se lhe falasse...
Preparou a pergunta; mas não teve coragem de pronunciá-la. Continuaram a andar. O major pensou; que é que tem? não há desrespeito algum. Aproximaram-se do portão. Num dado momento como que houve uma bulha atrás. Quaresma voltou-se, mas Floriano quase não o fez.
Os edifícios da serraria pareciam cobertos de neve, tanto era o branco luar. O major continuou a mastigar a sua pergunta; urgia, era indispensável; o portão estava a dois passos. Tomou coragem, ousou e falou:
— Vossa Excelência já leu o meu memorial, marechal?
Floriano respondeu lentamente, quase sem levantar o lábio pendente:
— Li.
Quaresma entusiasmou-se:
— Vê Vossa Excelência como é fácil erguer este pais. Desde que se cortem todos aqueles empecilhos que eu apontei, no memorial que Vossa Excelência teve a bondade de ler; desde que se corrijam os erros de uma legislação defeituosa e inadaptável às condições do país, Vossa Excelência verá que tudo isto muda, que, em vez de tributários, ficaremos com a nossa independência feita... Se Vossa Excelência quisesse...
À proporção que falava, mais Quaresma se entusiasmava. Ele não podia ver bem a fisionomia do ditador, encoberto agora como lhe estava o rosto pelas abas do chapéu de feltro; mas, se a visse, teria de esfriar, pois havia na sua máscara sinais do aborrecimento mais mortal. Aquele falatório de Quaresma, aquele apelo à legislação, a medidas governamentais, iam mover-lhe o pensamento, por mais que não quisesse. O presidente aborrecia-se. Num dado momento, disse:
— Mas, pensa você, Quaresma, que eu hei de pôr a enxada na mão de cada um desses vadios?! Não havia exército que chegasse...
Quaresma espantou-se, titubeou, mas retorquiu:
— Mas, não é isso, marechal. Vossa Excelência com o seu prestígio e poder, está capaz de favorecer, com medidas enérgicas e adequadas, o aparecimento de iniciativas, de encaminhar o trabalho, de favorecê-lo e torná-lo remunerador... Bastava, por exemplo...
Atravessavam o portão da velha quinta de Pedro I. O luar continuava lindo, plástico e opalescente. Um grande edifício inacabado que havia na rua parecia terminado, com vidraças e portas feitas com a luz da lua. Era um palácio de sonho.
Floriano já ouvia Quaresma muito aborrecido. O bonde chegou; ele se despediu do major, dizendo com aquela sua placidez de voz:
— Você, Quaresma, é um visionário...
O bonde partiu. A lua povoava os espaços, dava fisionomia às coisas, fazia nascer sonhos em nossa alma, enchia a vida, enfim, com a sua luz emprestada...