IV

 

Resolvido a mudar-se, Paulo sahiu na segunda-feira muito cedo e, no botequim da Central, mexendo lentamente o seu café, recorreu annuncios do Jornal, tomando notas em um quarto de papel. Decidiu-se por duas casas «pequenas, pintadas e forradas de novo»: una na rua dos Invalidos, outra no cáes da Gloria.

Foi directamente á primeira. Era uma casinha atarracada, espremnida entre dois sobrados archaicos, sombria e triste. No telhado verdejavam largas folhas de fumo, descahidas sobre as calhas ferrugentas. Abrindo-a a custo, empurrou a porta, pesada e perra, e entrou como em um jazigo. Tresandava a tintas e, nas paredes de uma área interior, cujo ladrilho estava todo fendido, havia escaras de limo. O quintalejo, atravancado de taboas e de ripas, com uma poída escada apposta ao muro, tinha um monte de lixo a um canto e tortulhos gordos pelo chão úmido; e o ar escasso, que circulava por aquelas salas lôbregas, por aquelas alcovas escuras e acanhadas, era frio e tresandava o mofo.

Paulo fez um esgar de enjôo e tomou com a chave ao taverneiro vizinho, alegando falta de cômodos para a sua família. Seguiu a pé para o cais da Glória. Dava gosto andar com o frescor da manhã suave; e a distância era curta.

Foi indo devagar, enlevado na beleza de tão doce manhã, clara e tépida, concorrida de vozes alegres, sons festivos, movimento, todas as expansões da vida feliz. De repente, porém, deu com os olhos em uma mocinha à janela de uma casa. Lembrou-se da irmã e, assomado em súbito furor, estugou os passos, remordendo-se em surda revolta contra o mundo, contra todos e tudo - a irmã, que o forçava àqueles incômodos, que o expunha à irrisão; os vizinhos, os companheiros de trabalho, os colegas, todos... tudo...

Sentia-se mesquinho, como se fosse o único desgraçado no mundo; os próprios mendigos, que esmolavam, sorriam. Só ele andava com a alma denegrida, com o coração pesado, arrastando aquela vergonha.

Falava baixinho, em solilóquio, e, se descobria alguém às janelas, retraía-se, disfarçava procurando cigarros nos bolsos, e seguia; logo adiante, porém, reentrava nos cuidados sombrios.

Quando chegou ao Largo da Lapa, viu um quintanista, o Albergaria, parado à esquina, lendo um jornal, à espera do bonde da Misericórdia. Evitou-o, atravessando o largo, d'olhos altos, com medo de que ele o chamasse.

Foi timidez, a princípio, logo, porém, transformou-se em indignação: carregou o sobrecenho e pôs-se a murmurar: "Mas, afinal, que culpa tenho eu? Sou, então, responsável pelas loucuras de minha irmã? Se eu tivesse um irmão assassino ou ladrão, havia de responder pelos crimes que ele cometesse? não. Então por que me hei de vexar do que fez Violante? Outras têm feito o mesmo e os parentes andam por aí muito calmos, muito empertigados, com mais orgulho, talvez, e até com prestígio. E minha mãe, coitada! que culpa tem ela?" Outras idéias, porém afugentaram a lembrança da irmã perdida. Pôs-se a recordar, com arrependimento, a cena da véspera com a mãe: "Eu sou assim mesmo, mas ela bem sabe que não é por maldade que faço essas coisas. Fico nervoso, irrito-me... É gênio..."

Ia fazendo a volta. Cigarras chirriavam nas copas das árvores do Passeio. Súbito a vista alargou-se, desafrontada e risonha, e o morro da Glória apareceu com a sua igreja branca, entre palmeiras. O casario alvejava à sombra das árvores frondosas, plantadas, talvez, quem sabe! pelo ermitão da lenda. A beira da praia uma chaminé alta avultava, esguia como um obelisco, e o mar calmo, espelhento, de um brilho quente, tremia ao sol, em arrepios claros como aço em fusão.

À entrada da barra, os fortes eram duas longínquas manchas cinzentas. Villegaignon resplandecia solitária, e cerúleas, como fechando o horizonte, as montanhas, polvilhadas d'ouro, avultavam em muralha imensa com ameias e torres, cintando a cidade. Navios ancorados, negros, com toldos rasos, pareciam dormir, como grandes sáurios; num deles as velas subiam abrindo-se ao sol. Lanchas iam e vinham, cruzando-se que nem formigas, canoas zimbravam na mareta levantada pelas hélices, e uma draga muito alta, isolada, parecia um louva-a-deus colossal.

Voltou-se para a esquerda - lá estava o terraço do Passeio, com gente debruçada à muralha a ver os banhistas na praia, ou nadando a fortes braçadas e, mais longe, um zimbório, a ponta do Arsenal, o Castelo com o seu mosteiro. O que, porém, o deteve em êxtase foi o espetáculo alegre das gaivotas voando, adejando, pousando n'água, balouçando-se maciamente na onda à espera do peixe e, nos postes fincados, restos da antiga ponte, destruída pelas grandes ressacas, outras se iam ajuntando e, vistas de longe, alvas, imóveis, eram como uma vegetação de cogumelos brancos pululando na podridão dos lenhos salitrados.

A casa anunciada ficava ao lado do jardim de um chalé discreto, que se escondia entre folhagem, com mistério; mesmo diante da porta havia uma árvore, com o tronco protegido por um embrechado de madeira. A chave estava na casa contígua, e foi uma mulher loura, gorda, de fisionomia impassível de boneca, quem lha deu depois de o examinar com um olhar fatigado e vazio.

Paulo simpatizou com a casa, vendo-a em tão sossegado recanto, com poucos vizinhos, olhando para o mar vasto e para o céu largo.

Entrou. Estava limpa e era alegre, e se não havia grande claridade, a luz era bastante para a vida e para o trabalho.

Ao fundo, no quintalejo seco, cresciam roseiras anêmicas, e uma esfumada banqueta acompanhava o muro, sobre o qual um sabugueiro do jardim vizinho derramava a ramaria ramilhetada de florinhas miúdas.

Paulo distribuiu os aposentos - a sua alcova na sala de visitas; a da sala de jantar para a mãe; um pequeno quarto com janela sobre a área, para Felícia, e ainda sobrava um, amplo e claro, com um papel novo de ramagens. Deteve-se diante dele a olhar, meneando com a cabeça desconsoladamente.

Pensando na irmã, lembrou-se de que não encontrara nos jornais a mais ligeira referência ao caso - lera-os todos: nem palavra. Era evidente a indiferença do delegado. Se ele houvesse tomado uma nota ligeira, a reportagem, que tudo esmerilha, não a teria perdido, e bordaria o drama com os recamos costumeiros e muita sensualidade, apelando, em nome da moral ofendida, para a lei que ressalva a honra e obriga os devassos a repararem as faltas.

Revoltou-se: "Vão ver que o miserável conhece o canalha... Talvez até o proteja... Súcia! É assim mesmo." E, no seu ódio, desejava que o escândalo houvesse irrompido, alastrando o noticiário com pormenores sitis, informes íntimos: o retrato de Violante, o de Dona Júlia, o dele e elogios, muito literários, à honestidade da família exemplar, referências ao pai, um herói da Pátria e a narração da sua trabalhosa e angustiada noite, por chuva e vento, à procura da seduzida.

"Qual! tivesse eu fortuna... E assim mesmo."

Por fim, nervoso, fincando a bengala no soalho, voltou-se e foi examinar a cozinha. Achou-a limpa, com um fogão novo, pia forrada de zinco, e prateleiras.

"Ora! que se arranje. Eu é que não hei de estar a amofinar-me por causa dela. Não faltava mais nada..." E sentiu-se aliviado com o silêncio dos jornais. "Talvez que o delegado houvesse ocultado a notícia por delicadeza, em atenção a ser ele da imprensa... Caminhou para a sala, Vagaroso, pensativo, passando a mão pelas paredes. Esteve um momento indeciso, batendo de leve com a ponta do pé, a pensar na mudança. Súbito, com egoísmo, exclamou: "Melhor! viveremos mais tranqüilos."

Saiu, fechou a porta e ia bater à casa da vizinha, quando viu vir um comboio de bondes. Sentiu inexplicável vexame achando-se ali sozinho, diante daquela multidão que descia, e para que os passageiros não o vissem de face, deu as costas à rua e ficou-se a contemplar a casa, a olhar os escritos até que os bondes passaram.

Bateu à porta da vizinha e a loura, reaparecendo, disse-lhe, numa aravia guaiada - "que a casa estivera alugada por cem mil-réis, mas a senhoria, por causa das obras que fizera, pedia então cento e vinte". Agradeceu as informações e seguiu.

Numa casa da esquina, com o cavalete junto à janela, um homem desenhava o retrato de uma criança, e Paulo, devassando, de relance, o interior, viu, pelas paredes, esboços a crayon, pequenas telas de gênero e uma paisagem.

A senhoria morava na Rua do Lavradio. Caminhou com pressa, receoso de que alguém o precedesse e, como o seu alfaiate prestava-se e dar-lhe a fiança, tratou a casa e, tornando à Rua Senador Pompeu, já levava no bolso o recibo das andorinhas que, no dia seguinte, de manhã, deviam fazer a mudança.

Foi com apreensiva tristeza que Dona Júlia ouviu a descrição minuciosa da nova residência, no cais da Glória, tão longe! Ela, que tanto insistira pela mudança, sentia-se, então, agarrada à casa. Parecia-lhe que se a deixasse nunca mais tornaria a ver a filha e, não sem timidez, contando com a revolta do filho, perguntou:

— E se Violante voltar... Como há de ser?

Paulo encarou-a mudo, brincando com as chaves e, como se não houvesse entendido a pergunta, repetiu em tom irônico:

— Se Violante voltar...

— Sim, confirmou a velha.

Houve um silêncio. Paulo por fim, encolhendo os ombros, esticando o beiço, sorriu desdenhoso:

— Mamãe ainda espera que Violante volte...

— Como não, meu filho? Onde há de ela ficar?

— Ora, mamãe. Cravando, então, os olhos na velha, disse resolutamente: Quem tem boca vai a Roma. Não saísse. Nós é que não podemos ficar aqui perseguidos pela crítica implacável dessa vizinhança bisbilhoteira até que a senhora Dona Violante se lembre de voltar.

Dona Júlia sussurrou:

— Eu tenho medo que ela chegue e encontre a casa fechada. É uma criança, não conhece a cidade. Que será dela então? Tu não pensas nisso?

— Eu penso, mas é em sair daqui quanto antes. Violante só voltará para casa, se voltar, trazida pela polícia ou pelo Mamede. Sozinha?! Vá esperando!

— Tu não queres que eu diga aos vizinhos...

— A senhora está louca? Para quê? Para rirem de nós?

— Então não sei como há de ser.

Calaram-se recolhidos em pensamentos opostos: Dona Júlia a imaginar a volta da filha: ela ali, à porta da casa fechada, a olhar o escrito, chorando, sem saber o destino dos seus; ele a fazer planos de vida calma naquela casa tranqüila.

Bateram, voltaram-se ambos e Dona Júlia chamou Felícia para ver quem era. A negra tornou em pontas de pés, cochichando: "É seu Fábio." Os dois levantaram-se à pressa caminhando para a sala, porque a negra espiara apenas, timidamente, pelas frestas da persiana, deixando o homem na rua, ao sol, com receio de que o estudante se revoltasse contra ela. Dona Júlia abriu a porta e um homenzarrão entrou limpando o suor que lhe escorria do rosto abrasado.

Alto e robusto, espadaúdo, com uma densa barba grisalha que lhe dava à fisionomia o ar expressivo de energia e doçura com que a Arte nos representa os patriarcas bíblicos, tinha, em contraste com o todo másculo, uma voz inesperadamente branda que surpreendia, saindo daquele peito forte, através da espessidão das barbas veneráveis. Logo que entrou, com o chapéu ainda à cabeça, um largo chapéu d'abas moles, o guarda-chuva debaixo do braço, estendeu as mãos ambas a Dona Júlia e a Paulo e, de olhos nela, perguntou, depois dum aceno da cabeça, franzindo a fronte: "Então que foi isso?" Dona Júlia, desabando os braços, encolhendo os ombros, baixou a cabeça e o velho, deixando o chapéu sobre a mesa, sentou-se declarando - "que só naquela manhã recebera a carta que ela lhe escrevera". E perguntou: "Mas quando foi?"

— No sábado, à noite, compadre.

O velho meneou com a cabeça; e, voltando-se para o estudante, indagou:

— Já foste à polícia?

— Na mesma noite.

— Então?

— Ora! o senhor bem sabe como aquilo é. Prometeram fazer tudo e ficou nisso...

— E não voltaste?

— Para quê?

— Como para quê? Que diabo, rapaz! Hás de ser sempre o mesmo descansado? Então é assim? A gente move-se, homem de Deus; e, se tu és o primeiro a mostrar indiferença pela causa, como queres que os estranhos se interessem por ela?

Dona Júlia, sentindo-se protegida, ousou falar.

— Eu disse isto mesmo, compadre.

— Aí vem a senhora... Eu fiz tudo: fui à polícia na mesma noite, com uma tempestade medonha, dei todas as informações ao delegado, não tenho culpa de que as nossas autoridades sejam relaxadas. Em Londres o homem já estaria preso.

— Qual Londres! - bramiu o velho, atirando os braços.

— Hei de ficar plantado na polícia dia e noite? Isto não! Estou com os exames à porta e não quero fazer figura de idiota.

— Filho, eu bem te conheço, - tornou o velho com calma; - deixa-te de histórias. Vens agora com exames, porque não tem convém andar por aí uns dias trabalhando. - Cruzou os braços: Mas então, queres tua irmã perdida? Não te vexas? Não tens pena de tua mãe? Eu sei: és um excelente rapaz enquanto não te incomodam. Meu amigo, quem quer vai. E por essas e outras que há por aí tanta miséria. A polícia auxilia, mas é preciso que a gente não a deixe, mesmo porque ela tem mais em que cuidar. Por que não dás um pulo até lá? Vai saber, anda. - Paulo fez um gesto de enfado e o velho insistiu: Tem paciência, é tua irmã, é teu sangue. E a vergonha não ficará só com ela. És o homem da casa. Vai, anda! não percas tempo. E agarra-te com o chefe, com os delegados.

— Pois sim: há de ser a mesma coisa: que vai mandar ver...

— Não há tal: os delegados atendem, estão lá para isso. Estás fatigado, compreendo, mas tem paciência. Dá um pulo à polícia, vê se podes falar ao chefe, conta-lhe tudo e estou certo de que ele não se há de limitar a dizer - que vai mandar ver. Deixa-te de histórias, eu também já andei por lá, sei como aquilo é. Move-te, move-te.

— Tem paciência, meu filho! - implorou a velha. Paulo levantou-se amuado:

— Eu também sou de carne.

— Também eu, - retorquiu Fábio em tom ríspido - e tenho cinqüenta e oito feitos, entretanto, meu rapaz, não sei que é descanso. O interesse é de todos vocês.

Paulo tomou o chapéu e a bengala e, arrebatadamente, sem mesmo falar ao velho, que enxugava a fronte suada, abriu a porta e saiu resmungando.

— Tem paciência, - insistiu Fábio - é assim: quem quer faz assim.

A porta, impelida pelo vento, abria-se devagarinho, rinchando, e Dona Júlia levantou-se para fechá-la. Sós, o velho Fábio externou-se francamente:

— Olhe, comadre, quer saber? Parecia que eu estava adivinhando isto; mais de uma vez, lá em casa, eu disse à Marta: "Aquilo não vai bem. Aquela menina não tem modos, não sai da janela, dando trela a quanto pelintra vê." Agora, que o caso está passado, eu digo a verdade: Marta não era lá muito pelas conversas de Violante com Cristina. Não dava a perceber para que a senhora não ficasse magoada, mas gostar, não gostava. E eu cheguei a falar, lembre-se bem, no dia dos anos do Tula. Era com todos, comadre... até com homens casados.

Dona Júlia suspirou, afirmando:

— Sim, o compadre falou... Mas que havia eu de fazer?

— Que havia de fazer?! Pois então a comadre não é mãe? Olhe, a Cristina é noiva, mas vá lá saber se eu a deixo um instante só com o noivo... E é um moço sério. Não, senhora; há sempre gente na sala com eles.

E, curvando-se, sentenciou com lentidão:

— Minha comadre - a ocasião faz o ladrão. Isso de moças solteiras é mais melindroso do que parece. - Engrossou a voz: E Violante? reunia aqui uma súcia de frangotes; era conversa com um, era risada com outro, afastando os moços sérios que a estimavam. De um sei eu que era doido por ela.

— O Fernando, da botica.

— Sim, senhora, o Fernando. Está começando a vida, mas é um rapaz de futuro. Ele disse-me, lastimando, que sempre que passava por sua casa via Violante à janela e rapazes batendo a calçada.

Cruzou os braços, perguntando com ar de nojo:

— Isso era decente? diga! era decente?

— Eu não sei! - suspirou a boa senhora.

— O rapaz recuou, porque, afinal, ele não a queria por passatempo, e a comadre compreende que, quando um homem pensa seriamente em casar, trata de estudar a moça, indaga, informa-se... E Violante? Não se zangue comigo, mas a senhora foi culpada em parte, isso foi. Amor não é isso. Eu quero muito à Cristina, mas nem por isso ando a passar-lhe a mão pela cabeça - quando é preciso, falo, grito, bato o pé e ninguém me contraria. Não, que não admito. Não vai casar? então...! Ainda depois de casada, se for preciso, lá irei dizer-lhe as verdades, mesmo diante do marido, porque o que eu quero é vê-la feliz. Mas sua filha, se a gente queria dar-lhe um conselho, saltava logo com duas pedras na mão. Outro - esse rapaz.

A velha levantou os olhos assombrados:

— Sim senhora, o Paulo. Excelente menino, mas um pouco atrevido... e parece que não tem ainda o juízo assente: são dez, vinte idéias por dia; quer ser tudo, não é nada. Em quantas academias tem ele andado? Já quis ser engenheiro, deixou; pensou em meter-se na marinha, andou a estudar para guarda-livros, e está agora às voltas com a medicina. Esse há de ser médico quando eu for frade. Não é assim, tenha paciência. Não é assim.

— Mas ele estuda, compadre; eu vejo. Fica, às vezes, até de madrugada em cima dos livros.

— Que tem isso? Estuda e é inteligente, mas à primeira dificuldade, recua desanimado. Não, senhora - é para diante! Quem quer ser alguma coisa na vida queima as pestanas e firma-se numa idéia: é isto porque é! Ele não - é só orgulho! - e encheu as bochechas, bufando. - Ninguém tem o direito de lhe dizer uma palavra que logo se não espinhe. Se um professor faz uma observação, fica de trombas, não volta à escola, e há de viver assim: daqui para ali, sem firmar-se em uma carreira. Também já não é uma criança; com vinte anos há por aí muito pai de família.

— E ele, então, não trabalha, compadre?

— Trabalha, trabalha... mas é um mês aqui, um mês ali. A propósito: ainda está no jornal?

— Ainda.

— Pois olhe: admira. Que melhor emprego queria ele que o de amanuense na Secretaria do Interior? Não fez concurso? Não foi classificado?

— Diz que não tem jeito para emprego público.

— Ah! não tem jeito?! O que ele não tem é cabeça, como a irmã. Agora mesmo - no primeiro momento fez, aconteceu, andou por aí com chuva, mas já desanimou, nem se preocupa mais com o caso. Não é assim, comadre; não é assim. Quem quer alguma coisa, trabalha; sem persistência nada se faz; a senhora bem sabe, porque tem lutado para viver. Mas é preciso ter o juízo assente. Com a menina foi o mesmo: vontades, vontades, e aí está em que deram. Então, Violante não podia cuidar um pouco da casa, arrumar o seu quarto? coser a sua roupa? Eu nunca vim aqui que a encontrasse trabalhando - ou estava dormindo ou lendo, recostada na cadeira de balanço, como uma princesa. Nem os ticos vivem assim, comadre; nem os que têm... Enfim, não quero amofíná-la mais; vamos ver se ainda se pode fazer alguma coisa. É no que dão as condescendências. Quem quer belas flores e belos frutos poda as demasias da planta. É assim.

Levantou-se.

— Não quer uma xícara de café, compadre?

— Nada, obrigado.

Apanhou o chapéu e o guarda-chuva.

— E a comadre não desconfia de algum dos tais tipos?

— Eu nem os conheço; vivia sempre lá para dentro, metida comigo, no meu trabalho.

— E ela, aqui esparrimada à janela, de prosa.

Deu d'ombros, afundando o chapéu na cabeça; e, d'olhos altos:

— Mas que loucura da rapariga!

E ficou um momento a olhar o teto, meneando com a cabeça:

— Bem, adeus, comadre. Pois eu vou por aí, e se conseguir saber alguma coisa, dou um pulo até cá.

— Nós vamos mudar-nos.

— Quando?

— Amanhã.

— Para onde?

— Para o cais da Glória. Paulo achou lá uma casinha. O senhor compreende: não podemos ficar aqui - vem um, vem outro, perguntam...A gente tem vergonha.

— É natural, é. Pois é isso: faça o rapaz mover-se.

Caminhou até a porta e, voltando-se:

— Olhe, nós lá estamos... sem cerimônia. Para os de casa, como a comadre, há sempre lugar. Sem cerimônia.

— Obrigada, compadre; eu sei.

O velho escancarou a porta e, já na rua, repetiu:

— Se conseguir saber alguma coisa dou um pulo até cá.

— Será favor.

— Adeus. E não se amofine.

— Lembranças a todos.

— Obrigado.

E foi-se pigarreando.