IX

 

Deitado, d’olhos fechados e amollecido de fadiga, Paulo não poude conciliar o somno, recordando todas as peripecias do jogo. Estava ainda sob a impressão intensa da sorte que tantos cominentarios provocára. O proprio Junqueira, sempre indifferente, lamentára que elle «não soubesse aproveitar o seu dia». Se houvesse carregado teria levado a banca á gloria. Tal idéa irritava-o. Esmurrava a mesa, fazendo e desfazendo calculos. Chegou a sentar-se na cama para recomeçar as sommas, os calculos de fortuna, Ritinha, porém, surgiu-lhe na lembrança.

Mamede andava infeliz, pedia-lhe dinheiro, deixava-o só com a rapariga horas e horas, como se a entregasse, e ella, sempre risonha, toda se lhe rendia, dengosa, retribuindo-lhe os beijos, falando-lhe em tom de queixume, d’olhos amorte Não, aquilo não podia continuar. O melhor era tomar um cômodo ali perto, na Lapa; o mulato que se arranjasse! e riu, antegozando a vitória daquela traição. Demais, Ritinha já lhe havia confessado que não gostava de Mamede - vivia com ele por viver; era um bruto, principalmente quando bebia. Às vezes entrava em casa cambaleando, nojento. E eram sempre amofinações, desassossego, vergonhas: gente à porta a reclamar dinheiro, ameaças de denúncias, rusgas com os vizinhos, um inferno! Não era homem para ela.

Voltou-se na cama, com um travesseiro entre os braços, fechou os olhos e ficou a balançar a perna, gozando a tepidez dos lençóis. Como seria feliz se ela ali estivesse, muito chegada ao seu corpo, enlaçando-o com os braços, excitando-o com a umidade quente da sua boca, falando-lhe baixinho, em arrulho amoroso, toda dele, nua e insaciável, fazendo-se pequenina, mimosa, para que ele a levantasse, beijasse, despertando-a do torpor lúbrico em que ficava, com um sorriso parado, olhos enlanguescidos, os braços abertos e abandonados, os peitos empinados, rígidos de sensualidade.

O mar estourava d'encontro às pedras do cais, e, de quando em quando, com um rumor que crescia e morria, tiniam campainhas de bondes.

Adormeceu por fim e teve sonhos bizarros. Acordou, de repente, pensando em ladrões. Abriu muito os olhos na treva, pôs-se a tatear procurando a caixa de fósforos. Sentia gente no quarto, ouvia passos surdos, distinguia vagamente um vulto junto à porta. Riscou um fósforo e, ao trêmulo vislumbre, relanceou espavoridamente o olhar pelo aposento: a porta estava fechada. Para maior segurança levantou-se, deu volta à chave. Lá fora só havia o estrondo das ondas. E impaciente, ansioso pela manhã, querendo desforrar-se da timidez da véspera, suspirou rolando na cama que o seu corpo aquecia.

Eram dez horas da manhã quando acordou com a cabeça pesada, como se houvesse bebido copiosamente na véspera. Pareceu-lhe ouvir vozes na sala. Levantou-se, pé ante pé, encostou-se à porta, cujos vidros tinham uma empanada de metim vermelho, e reconheceu a voz esganiçada do Fábio. Murmurou entredentes: "Canalha!" e ficou à escuta, muito interessado.

Dona Júlia defendia-o: "Que sim, ela mesma lembrara aquele recurso. Ele estava desempregado, fizera grandes despesas, por isso, coitado! recorrera a um amigo. A quem havia ele de pedir?" O velho interrompeu-a: "Pois sim, mas por que não fora ele mesmo ao Engenho Novo? Não - mandara Mamede, um vagabundo..."

— Vergonha, compadre.

— Qual vergonha! Orgulho, tolices...

— É vergonha, compadre. Depois do que aconteceu ele tem vergonha de aparecer a todos os conhecidos. Eu mesma, o senhor vê? eu mesma não procuro ninguém, meto-me no meu canto, curtindo calada os meus desgostos. Deixe lá, compadre! - suspirou enclavinhando as mãos.

Paulo mal distinguia os dois vultos como sombras levemente esfumadas numa tela. Rilhava os dentes. O seu desejo era escancarar a porta, entrar arrebatadamente na sala, atirar-se ao velho às bofetadas.

Parecia um senhor a repreender uma escrava. Revoltava-se contra a paciência humilde de Dona Júlia. Devia ser mais enérgica, devia repelir o idiota. Repentinamente o coração bateu-lhe com força. Chegou-se mais à porta: a velha rejeitava o dinheiro que o compadre oferecia.

— Não, obrigada. Sempre é uma dívida e eu agora não sei quando poderei pagar. Ele arranjou. Fez-se silêncio. Orgulho? Pobre de mim! Se eu dantes não tinha, quanto mais agora. Arranjou, palavra!

— Então... resmungou o velho.

E Paulo, satisfeito, ria acenando de cabeça, a aplaudir. Endireitou-se, de mãos nos rins, cansado da posição que mantivera. Sentou-se a mesa com muito cuidado e, tomando o lápis, recomeçou os cálculos pensando em números da roleta.

Longe, a sereia de um paquete reboava soturna. Ficou a encher de somas as folhas de papel rabiscadas até que ouviu a porta da rua guinchar e a voz do Fábio, a despedirse. Pouco depois Dona Júlia bateu no vidro, chamando-o.

— Já vou. - Enfiou apressadamente as calças e, em mangas de camisa, arrastando chinelas, saiu do quarto, dizendo logo, com ódio:

— Veio falar de mim, essa besta...

— Não, não falou.

— Ora! não falou... Eu ouvi tudo, mamãe.

— Ficou aborrecido porque mandaste Mamede.

— Sim... Queria que eu fosse para pregar-me um dos tais sermões. A senhora fez bem em não aceitar o dinheiro. Que o guarde, não precisamos de esmolas. Pensava, sem dúvida, que íamos morrer à mingua. A mim é que ele não engana. - E foi caminhando para a sala de jantar.

O dia estava enevoado e triste; o ar frio picava. Paulo, a olhar o quintalejo, esfregava os braços voluptuosamente e, quando Felícia apareceu com o café, sentou-se trincando o pão com apetite. Cantavam na vizinhança e a voz, fresca e aguda, vibrava em trilos alegres.

— Onde estão os jornais?

— Em cima da mesa, - disse Felícia do corredor.

Estavam debaixo de umas velhas camisas que Dona Júlia remendava. Sentou-se na cadeira de balanço e, de pernas cruzadas, pôs-se a ler as folhas. As camaxirras chilreavam no jardim vizinho e o sol, rompendo as nuvens escuras, brilhou um instante, mas foi esmaecendo e, de novo, o dia entristeceu e esfriou. Com os olhos nas colunas dos jornais Paulo não via mais que manchas - o seu espírito estava longe. Por vezes demorava um instante nos períodos - aqui, num telegrama; ali, numa local: mas outra nuvem passava e lá volvia ele aos castelos do sonho, à fortuna, ao amor - ganhando à banca, torcendo-se de volúpia, vendo pilhas de fichas ou os olhos negros, irrequietos de Ritinha. Atirou longe os jornais e levantou-se bocejando alto, a estrincar os dedos.

— Que dia fúnebre!

— É volta de tempo. Amanhã é lua nova - explicou a velha limpando os óculos.

— Está frio. - E, lentamente, esfregando as mãos, foi caminhando para o quintal. - Onde está a toalha, Felícia?

— Na corda, nhonhô.

Dona Júlia sentou-se junto à janela e, tomando as velhas camisas, pôs-se a examiná-las vagarosamente. E ali ficou, numa curta felicidade, esquecida da sua mágoa, como se nada houvesse perturbado a tranqüilidade de sua vida modesta e mansa.

Esses instantes eram rápidos e raros. Às vezes, cosendo, distraída, entoava baixinho modinhas tristes, mas voltando-lhe a lembrança da filha, calava-se envergonhada como se ali houvesse um morto ou se o dia fosse de respeito, como os da Semana Santa. A alegria passava fugitivamente por aquele coração ferido, como a sombra duma ave rasteja n'água de uma lagoa triste. Quando o filho reapareceu já a encontrou na tortura.

— Viste na Gazeta o suicídio daquela moça?

— Não, senhora.

— Dezoito anos! - suspirou baixando a cabeça ao peso dum pensamento doloroso. - É duma coisa assim que eu tenho medo. E levantou os olhos que brilhavam úmidos por trás das lentes dos óculos de ferro. - É mesmo, meu filho. Foi uma loucura, mas sabe Deus se, a esta hora, ela não está arrependida por aí. É por isso que eu não durmo.

— Ora, mamãe... Está a senhora a gastar cera com ruim defunto.

— Para que falas assim!

Encarou-o repreensiva e já as lágrimas rolavam-lhe dos olhos, grossas e compridas, caindo nas velhas camisas que ela amontoara ao colo, quando Paulo, encolhendo os ombros, resmungou:

— Está bom...

— Deixa! o choro alivia-me.

— Mas mamãe há de passar toda a vida chorando?

— E achas que posso viver alegre?

— Mas isso aborrece.

— Aborrece... Aborrece por quê? Eu não tenho o teu coração. Vivo aqui sozinha e, quem me faz companhia, ainda assim, é ela.

— Violante?

— Então?

— Pois sim...

— Agradece a Deus esse gênio. És indiferente, não te importas. Eu não sou assim. Que hei de fazer? A culpa não é minha.

Estavam os dois conversando quando Felícia entrou na sala, a correr, espantada como se houvesse visto algo de sobrenatural. Paulo encarou-a.

— Que é?

A negra resmungava, com os olhos cravados no corredor da cozinha; pôs-se depois a examinar o vestido, a esfregar os braços; e respirou largamente.

— Que é, Felícia? - perguntou Dona Júlia, descansando os óculos na costura.

— Que coisa, minh'ama! Esta casa não é direita - e meneou com a cabeça lentamente. - Não é direita, não. Já não é a primeira que me acontece.

— Que foi? indagou o estudante.

— É alma, nhonhô. Eu ouço voz: chamam por mim, puxam o meu vestido. Outro dia, eu estava estendendo roupa no quintal, e ouvi um gemido saindo do chão, como de gente enterrada. Fiquei toda arrepiada, com os cabelos em pé, e corri para dentro. Estava batendo meio-dia.

— Tu estás malucando, rapariga - disse Paulo com indiferença.

— Malucando... Eu só queria que vosmecê ouvisse. Esta casa não é direita, - repetiu d'olhos baixos, fazendo com a mão um gesto negativo. - Não é direita, não! Queira Deus que seja maluquice minha; e vagarosamente, receosamente, foi caminhando para a cozinha.

Uma chuva miúda, peneirada, batida de vento, entrava pela janela. orvalhando o oleado da mesa. Paulo desceu a vidraça, murmurando contra aquele tempo inconstante. O céu estava completamente encoberto, não havia mais esperança de sol, e o mar, enfurecido, estrondava d'encontro ao cais.

— Vais sair com este tempo?

— Que remédio!

— Mas almoças primeiro?

— Almoço.

Recolheu-se ao quarto e, com a toalha úmida pelos ombros, esfregando as mãos, ficou a pensar no jogo que devia fazer. Antes, porém podia dar um pulo à estalagem: prometera um presente à Ritinha; ao mesmo tempo resolveriam sobre a mudança, traçando o programa amoroso da vida em comum, num cantinho que ele mobilaria com gosto, onde poderia passar parte das noites gozando os carinhos dengosos da mulata. Pôs-se a assobiar, indo e vindo no acanhado aposento, até que ouviu uma badalada de sino. Meio-dia! Ficou espantado e, às pressas, como se o chamassem negócios, atirou longe a toalha e começou a vestir-se azafamadamente. Ainda atava a gravata, quando abriu a porta e bradou:

— Olhe o meu almoço, mamãe.

À mesa, preocupado, mastigava maquinalmente, d'olhos parados, balançando as pernas. Dona Júlia notou-lhe a distração.

— Tu não estás aqui, Paulo.

— Senhora!? - exclamou ele, como se houvesse sido despertado.

— Estás tão distraído...

— Pensando na vida.

— Pois sim, mas come descansado. Essa comida, assim, não sustenta. Há tempo para tudo.

— Fala-se em um concurso na Secretaria do Exterior, - disse abruptamente. - Estou com vontade de entrar. - Baixou os olhos e, de cotovelos fincados na mesa, a cabeça nas mãos, ajuntou: Só assim eu me veria livre desta canalha. Somos nós dois apenas... - Dona Júlia olhava, sem compreender o que ele dizia. Mamãe não tem vontade de ver a Europa?

— Eu? Sair daqui? Deus me livre! Que vou eu buscar na Europa?

— Ora, que vai buscar... Pois eu ando a pensar nisso. A diplomacia foi sempre o meu ideal. Que futuro tenho eu aqui?

— Pois não estás estudando medicina?

— Ora, médicos há-os por aí aos centos, pedindo empregos públicos. Não vale a pena perder seis anos em uma Academia para andar, depois, atrás de ministros, implorando um lugar de amanuense. Demais, com essa história de Violante, não tenho coragem de voltar à faculdade. Enfim...

Levantou-se, foi à janela olhar através dos vidros embaçados.

— Deus me livre de sair daqui - resmungou Dona Júlia, raspando da toalha umas migas de pão. - Não abandono minha filha, isso nunca!

Uma cena estranha, que se passava à porta da cozinha, levou a atenção dos dois para aquele ponto. Felícia, ajoelhada na soleira, à chuva, a cabeça toda para trás, os braços abertos em cruz, olhava enlevadamente o céu, a chorar. De instante a instante esmurrava o peito suspirando agoniadamente. Os dois olhavam embasbacados, e a negra, sem dar por eles, continuava naquele êxtase, supliciando-se.

— Que tem Felícia, mamãe?

— Não sei.

— Essa rapariga não anda boa.

— Parece que, com a morte do filho, a coitada ficou sofrendo.

— De que morreu ele?

— Morreu na revolta. Dizem que foi degolado. Era marinheiro.

— Felícia! bradou o rapaz.

A negra voltou a cabeça, espantada e, vendo-o, levantou-se e desapareceu. Ele foi à cozinha, já a encontrou junto ao fogão, enrolando a trunfa.

— Que história é essa, Felícia? Fizeste alguma promessa? Perguntou a rir.

— Não ria, nhonhô... Vosmecê é muito criança ainda, está começando a viver. Não ria, não.

— Mas que tens tu?

— Que é que eu tenho? Eu sei, meu senhor? Olhe, nhonhô, - explicou com mistério, chegando-se muito ao rapaz, para que ele lhe ouvisse bem as palavras: A gente está aqui e está lá. Não é a alma dos outros que vem, é da gente que vai. Quem morre descansa, quem está vivo é que vai mexer com os mortos. O cemitério é como uma casa de marimbondos: vosmecê passando quieto, os bichinhos não mordem, mas bulindo... - e curvou-se, arregalando muito os olhos, a fitar o rapaz. - Eu fui bulir... - concluiu, encolhendo os ombros com resignação.

— E os maribondos caíram em cima de ti.

— É, sim senhor.

Paulo não conteve o riso e, rindo, tornou à sala.

— Que tem ela? perguntou Dona Júlia.

— Disse que os mortos são como os maribondos. Foi bulir com eles e não a deixam.

Depois da saída de Paulo, Dona Júlia, que logo atinara com a causa da "maluquice" da negra, foi ter com ela e pôs-se a dar-lhe conselhos. "Que se deixasse de espiritismo. Não acreditasse naquelas comédias, visse o exemplo das outras. Se quisesse fazer alguma coisa pela alma do filho, mandasse rezar uma missa. Aquilo era uma exploração, uma vergonha que a polícia devia proibir."

A negra protestou, defendendo a sua crença:

— Não! minh'ama, desculpe, mas vosmecê não tem razão; antes de eu ir lá era pior: não podia dormir. Agora ainda eu descanso, e dantes? Vosmecê não tem razão. Eu sei que meu filho vem me buscar, e minha ama pensa que eu tenho medo? Não senhora. Se fosse ele só, eu ficava contente, mas é que, atrás dele, vêm muitos e são maus. querem a minha perdição; desses é que eu tenho medo. Se eu dissesse a vosmecê os conselhos que eles me dão, vosmecê havia de dizer que eu estava variando. Desses é que eu tenho medo, desses sim.

— Mas não te metas mais com aquela gente, confia em Deus, entrega-te a Nossa Senhora. Tu não sofres mais do que eu: perdeste teu filho, e eu?

— Nhá Violante está viva, pode voltar. Damião... esse...

— Está com Deus.

— Qual, minh'ama, isso é o que a gente diz.

E as duas continuaram ainda conversando.