XX
Noite admiravel. Nas aguas mansas da bahia o luar alastrava em esteira trémula. Vultos negros de navios destacavam-se na sombra, com as lanternas altas, visinhas das estrellas. Na fortaleza luziam fócos opalescentes; longe estendia-se a illuminação do littoral fronteiro. Um barco, todo negro, as velas abertas, deslisava. De repente entrou na zona illuminada e resplandeceu. Raro em raro um bonde passava com rumor; apitos trillavam e o murmurio da onda na praia era suave como um respirar tranquillo. As velas crepitavam e, como o silencio se fosse tornando incommodo, o mulato, mais ousado, rompeu-o:
— E é assim. A gente vai indo... Quem diria!... Parece que foi hontem que vosmecês nasceram. Eu ainda estou vendo NháViolante de vestido curto, puxando estica com nhôsinho por causa de brinquedos. Nem vosmecês se lembram. Também eram tão pequeninos. E ela, coitada! contendo um, contendo outro, para não brigarem. Parece que foi ontem.
Violante ouvia com a cabeça inclinada ao ombro. Paulo falou lentamente:
— Tu nem te lembravas do Mamede, hem, Violante?
Ela fitou os olhos no mulato e murmurou:
— Lembrava-me.
— Qual! Estou velho.
— Nem por isso.
— Nem por isso? É porque vosmecê está me vendo de noite. - E, passando a mão na poupa da gaforinha: Cabelo branco aqui é mato. Vosmecê sim, é que está uma mocetona de pancas! Eu hoje, quando dei com vosmecê, palavra! até duvidei...
— Querias encontrar-me ainda de vestido curto, brincando com bonecas?
— Uai! Nhazinha, a gente fica com as pessoas no coração. Eu, quando falava em vosmecê, só via a menina que conheci no tempo do velho. De repente sai diante de mim um pedaço de moça, quase da minha altura. Fiquei tonto, palavra.
— E que faz você, Mamede?
— Eu Nhazinha? por aqui, cachimbando tristezas. Nem todo o mundo é feliz como vosmecê.
— Feliz, hem? Achas que sou feliz...
— Uai? Que mais então?
— Cada um sabe de si e Deus de todos.
— Isso é que é verdade! - sentenciou a vizinha.
E a conversa generalizou-se. Pouco a pouco a morta foi-se tornando esquecida. Entretidos com a palestra, só de quando em quando um ou outro lançava os olhos para o seu lado a ver se havia necessidade de cortar um morrão às velas ou de arranjar o lenço que o vento, por vezes, levantava.
Um carro parou à porta e a criada de Violante desceu com um embrulho - era o vestido que ela pedira ao amante.
— A senhora precisa de mim?
— Não, podes ir. Vai e vê lá aquilo...
E levava a criada, como que a expulsava para que não tivesse tempo de ver a pobreza de onde ela saíra, a casa dos seus e, como a rapariga levantasse piedosamente o lenço que encobria o rosto da finada, ela pareceu envergonhar-se da própria morta e despachou-a mais apressada: Vai!
— Deus lhe dê o reino do céu.
— Amém, - sussurraram as duas mulheres.
Já na rua a criada ainda perguntou:
— E é só?
— Só.
— Boa noite!
E o carro partiu com estrépito na rua calada e deserta.
Violante não resistiu à fadiga e adormeceu recostada ao sofá. Mamede, a pretexto de arranjar cigarros, saiu. Paulo rondava o cadáver, mas como a mulata fosse ao interior da casa, seguiu-a disfarçadamente deixando a vizinha de guarda ao corpo. Quando Ritinha o sentiu voltou-se.
— Que é que o senhor vem buscar atrás de mim?
— Você fica comigo ou não? - interpelou sem preâmbulos.
— Sei lá! Mas agora é que o senhor quer tratar disso? Vá para a sala. Temos muito tempo.
— Não, eu quero que tudo fique decidido já. Mamede está aí, ele há de querer continuar contigo e eu não estou disposto. Escolhe: ou ele ou eu.
— Já disse que temos muito tempo.
— Não, não!
A mulata quis passar, ele tomou4he a frente:
— Hás de dizer...
— Oh! meu Deus! que homem! Pois o senhor nem respeita o corpo de sua mãe!?
— Que tem uma coisa com outra? Tu o que queres é fugir do assunto, mas eu não sou tolo.
Ameigando-se sussurrou:
— Somos agora nós dois, és a dona da casa, senhora de tudo. Eu quero resolver a minha vida. - se ficas comigo, continuo aqui, se não vendo tudo isto e tomo um quarto.
— Pois deixe a casa como está.
— Ficas comigo?
— Fico.
— Então sim. E Mamede? Como há de ser?
— Como há de ser...?! Eu digo que não quero mais saber de estalagem, que estou muito bem. Isso fica por minha conta. Mas vá lá para a sala - sua irmã pode acordar e essa mulher do lado tem uma língua muito comprida.
Verdadeiramente Ritinha hesitava entre os dois homens - um atraía-a pela vida aventurosa, de ousadia e troça: sentia-o forte e lembrava-se, com saudade, dos dias felizes que passara com ele quando, com um pouco de dinheiro, entrava a alegria em casa. Tinha orgulho em ser dele, um valente de fama, chefe de malta temido. O outro era um fraco, mas dispunha de recursos, podia garantir-lhe a tranqüilidade e adorava-a. Precisava cuidar de si... Depois, se tivesse um capricho, que custava? Não fora amante de Paulo enquanto vivera com o Mamede?
O mulato não a estimava. Se a estimasse não teria procedido como procedera. Um brigador como ele que, por qualquer coisa, puxava a navalha, depois de tanto rondar a casa... nem nada. Prosa! E a mulata sentia-se melindrada com a submissão do amante - preferia, talvez, que ele a houvesse maltratado, ferido, ameaçado com armas àquela quieta, resignada condescendência com que se portara. Assim, que se arranjasse...
Quando tornou à sala Violante, que despertara, estava à janela olhando o mar, tremulamente de luzes. Paulo contemplava o corpo e a vizinha, acaçapada na cadeira, a cabeça descaída, a boca aberta, dormia com um silvo nasal.
À hora do enterro, quando fecharam o caixão, Violante, que se vestira de preto, um rico vestido de gorgorão, rebrilhante de vidrilhos, teve uma crise de lágrimas beijando desesperadamente a face lívida, as mãos engelhadas da finada.
A vizinha arranjava as flores, a mulata ainda compunha o vestido ruço acomodando-o. Mamede apanhava as duas coroas, uma pobre, de flores de pano, lembrança de Paulo; outra, que viera com o caixão, de biscuit, com largas fitas roxas onde, em letras de ouro, a filha mandara colar a sua "saudade eterna", quando o homem da véspera, todo de preto, saltou de um coupé e entrou com liberdade, indo direito a Violante.
Tanto que ela o sentiu, logo calou os gemidos e, erguendo a linda face, perguntou tristemente:
— Veio o carro?
— Está aí. - E baixinho, com meiguice: Então? Está a teu gosto?
Ela lançou um olhar ao caixão que Mamede ia fechando:
— Muito bom. Não sei como te hei de agradecer tanta bondade. - E olharam-se com ternura.
— Eu queria acompanhar, mas... É a minha hora de trabalho, depois... - e sorriu, um triste sorriso em que havia a leve sombra de uma contrariedade.
— Oh! já fizeste tanto...
Todos esperavam por eles e olhavam imóveis, calados. Paulo, por fim, adiantou-se:
— Vamos, Violante? Ela pôs-se de pé, choramigando, com o lenço nos olhos. Mamede saíra à porta e dois homens entraram para ajudar a levar o caixão. Paulo, atarantado, voltou e estendendo a mão à irmã: Esperas aqui?
— Não, estou com muita dor de cabeça.
— Então, adeus.
Abraçaram-se longamente.
— E aparece, Paulo. Vai lá.
O homem corroborou:
— Quando quiser. Tem uma casa às ordens. Sem cerimônia.
Ele agradeceu comovido e, como passasse perto de Ritinha, que retirava os castiçais da mesa, sussurrou:
— Até logo. Olhou em torno, apressado, procurando alguém: Que é da senhora?
— Já foi... - disse Ritinha.
— Então até à volta.
E, chamando Mamede, meteu-se com ele no único carro que havia para acompanhar o enterro. E o féretro partiu.
Violante lançou um derradeiro olhar à casa, e pondo o chapéu ao acaso, falou à Ritinha:
— Fica aí um vestido meu. Mando-o buscar logo mais.
E saiu apressada, como a fugir daquela miséria onde a morte deixara o seu fortum funéreo, feito dum misto de aroma de flores fanadas e do cheiro aborrecido das velas de cera. O homem despediu-se dela à porta do coupé que partiu. A mulata ficou a remorder-se de fúria, abriu a janela e explodiu:
— Grosseirona! Quem sabe se eu sou criada! Uma vagabunda e tão cheia de empáfia. Comigo não!
A vizinha apareceu à janela e a mulata desabafou:
— A senhora já viu? A tal sujeitinha. .. Nem para agradecer o que fiz pela mãe... como se eu tivesse obrigação.
— Já foi?
— Já, com o amigo.
— Ah! minha senhora, essa gente... Enquanto está por cima é assim: presunção até o diabo dizer basta! Mas também dura pouco. Eu é que nunca fui orgulhosa.
Calou-se, como recolhida às recordações do seu tempo de fastígio. De repente, tomando ao acaso:
— E a senhora pensa que ela sentiu alguma coisa? tudo fingimento.
— Isso sei eu... Pois não vi?!
— A pobre da velha é que se foi, coitada!
— Ora, antes assim... Está com Deus.
Depois de um silêncio a vizinha, lançando os olhos ao céu azul, ao mar luminoso, disse extasiada:
— E foi com um dia lindo!
— Muito bonito!
Calaram-se, d'olhos alongados, contemplando o mar azul palhetado de sol. Foi a mulata que interrompeu o êxtase:
— Bom, até logo. Vou varrer e defumar a casa para acabar com este cheiro de morte.
— É sim, confirmou a outra. Até logo.
E despediram-se risonhas, com adeusinhos íntimos.