Ultimas conferencias e discursos (1924)/Machado de Assis
Inauguração de uma placa de bronze,
commemorativa, na casa em que falleceu
o escriptor. — 29-9-1912.
“Poucas palavras, poucas e carinhosas, devem ser ditas aqui, para que em tudo a commemoração seja digna do commemorado. Seria uma offensa á memória do Mestre qualquer manifestação que destoasse da sobriedade encantadora e do recato severo que governaram a sua vida artistica e a sua vida intima, a sua theoria litteraria e o seu estylo. O culto deve ser sempre adequado ao nume: bulhento e borbulhante, para
os que tiveram ou têm o amor da adoração pom-posa, — e simples e pensado e mais tecido de ternura e de respeito do que de enthusiasmo, para aquelles cuja sublimidade reside mais na solidez do que no bri-
lho, mais na verdade do que na apparencia, mais na harmonia temperada e justa do que no exaltamento nem sempre fecundo.
Quando se dirige a certos homens, ainda a mais ardente admiração ha de ser calma e raciocinada, se quizer honrar o seu objecto. Machado de Assis temia acima de tudo o barulho e a scintillação das palavras vasias, que tanto agradam aos espíritos futeis. A sua face triste e suave, o seu modo natural, a brandura da sua palavra e do seu gesto, a modéstia dos seus gostos, a moderação dos seus juizos, a sua philosophia que condemnava como crimes as cegueiras da paixão, e o seu estylo que repudiava como vicios os exaggeros rhetoricos — tudo nelle aconselhava e pedia, não o applauso frenetico, mas a affeição sincera e a consideração intelligente; tudo nelle parecia dizer: não me admireis; amai-me, e comprehendei-me. ..
Amaram-n’o com extremada ternura os seus Íntimos; comprehenderam-no e comprehendem-no os seus companheiros e condiscípulos, os seus irmãos em arte, aquelles que, pelo habito de pensar e de escrever, podem sentir e entender o inegualavel thesouro de idéas e de expressões que se encerram nos seus livros, monumento perenne votado á gloria da lingua vernacula. Não o comprehendeu ainda todo o seu paiz, porque elle foi de algum modo um homem superior á sua época e ao seu meio; mas essa comprehensão unanime ha de vir com o tempo, com o aperfeiçoamento progressivo e fatal dos homens, com a fixação definitiva de uma cultura geral que já começa a affirmar-se. Então, o Mestre será admirado, com a admiração consciente e preciza que a sua obra requer; e a historia da nossa civilização ha de guardar com orgulho esse formoso legado, esses livros em que o scepticismo vive de par com a piedade, em que a misericórdia pela miséria humana tempera o amargor da ironia, em que a descrença é adoçada pela bondade, e em que as idéas meigas ou duras, de tolerância ou de revolta, sempre se vestem de uma fórma pura e nobre, simples e majestosa, alliando a força á graça, a energia ao bom gosto.
A ceremonia de hoje é intima. E’ a romaria dos primeiros fieis. E’ a primeira peregrinação dos que assentam as bases do culto. E é a homenagem da família literaria ao chefe que perdeu.
Um dia, descrevendo a austera figura de Spinosa, em um soneto de rara belleza, Machado de Assis mostrou-nos o philosopho, grave e solitário, no seu retiro de lida e pensamento, apartado das vãs ambições e das cobiças grosseiras, captivo apenas do mundo interior das suas idéas:
“Soem cá fóra agitações e lutas,
Sibile o bafo asperrimo do inverno,
Tu trabalhas, tu pensas e executas,
Sobrio e tranquillo, desvelado e terno,
A lei commum, e morres, e transmutas
O suado labor no prêmio eterno...”
Inspirou e dictou estes versos uma affinidade real entre dous espíritos de eleição. Sem o temperamento combativo do sombrio Spinosa, o nosso grande escriptor teve a mesma dignidade de vida, a mesma abnegação modesta, a mesma escravização ao dominio exclusivo das idéas, — e o mesmo gosto da solidão, que em certos homens não é timidez nem orgulho, mas sómente a tristeza de quem se reconhece diverso do commum das gentes, e fadado a viver, senão ignorado, ao menos mal entendido dos seus contemporâneos. Como não recordar esses versos, na visita que hoje fazemos á casa do escriptor philosopho, um anno depois da extincção da sua vida?
Aqui viveu Machado de Assis vinte e quatro annos de trabalho sem trégua e de pensamento incessante. Neste quieto recanto da cidade, longe de “agitações e lutas”, fugindo á curiosidade publica, ao louvor da multidão, á popularidade facil, e á seducção brilhante mas esteril da política, — dividiu elle o melhor da sua existência, vinte e quatro annos da sua maturidade fecunda, entre o gozo recatado da sua felicidade domestica e o gozo igualmente discreto da sua arte. Aqui sonhou, aqui pensou, aqui edificou a sua gloria. Noite alta, entre estas folhagens amigas, que resguardavam zelosamente o ninho do seu affecto e a officina do seu pensamento, brilhava o clarão da lampada que alumiava a sua operosa vigilia. Conlieciam-no bem estas arvores, estas flores, e as aves que o saudavam ao romper da manhã; todas as coisas inanimadas e todos os seres innocentes deste poético retiro conheciam e amavam aquelle austero poeta e aquelle meigo benedictino, voluntariamente clausurado na tarefa paciente e no sonho creador. Aqui experimentou elle, com a satisfação de ser amado e com as agruras dos padecimentos physicos, o prazer de tratar o idioma que prezava tanto, as torturas da analyse interior, os sobresaltos e angustias da creação litteraria, a febre a um tempo deliciosa e cruel da composição, e a ancia dos que correm atraz da perfeição esquiva. . . Daqui sahiram muitos dos seus melhores livros, vasta cadeia de primores, coroada por essa flôr de saudade e amargura, por esse amavel “Memorial de Ayres”, onde, sob o véo de uma fieção romanesea, a alma viuva e ferida do escriptor eelebra na virtude e na ventura de um lar modelo a antiga ventura e a antiga virtude do seu proprio lar enlutado. Aqui, por vinte e quatro annos, elle trabalhou, pensou, exeeutou a lei eommum, e morreu e transmutou
“o suado labor no prêmio eterno. .. ”
E aqui vem hoje a Aeademia Brasileira trazer-lhe a expressão commovida do seu respeito da sua saudade. Perdendo o Mestre não peruemos o exemplo constante, a viva lição, o modelo nobre que elle sempre nos foi. Ha de aeompanhal-o na morte o mesmo affeeto que lhe dedicámos em vida. A qui vimos, e viremos; e aqui virão, quando tivermos desappareeido, aquelles que nos sueeederem. Já tres de nós, depois de Maehado de Assis, no eseasso prazo de um anno, desertaram também, levados pela morte, o seio da Companhia. Mas toda a nossa força reside na continuidade moral da nossa missão. Não nos sueeedemos apenas: também nos continuamos; mudam-se os nomes, mas fica o idéal que os encadeia: ha de perdurar na Academia, exemplar e consoladora, a memória do Mestre. E ha de o tempo morder e devorar esta placa de bronze; hão de as soalheiras e as eliuvas arruinar e aluir esta casa; — mas, se um horroroso cataclysmo social não dispersar esta nossa raça, e não anniquilar a lingua que falíamos, a nossa romaria de hoje terá sido o inicio de uma gloria perpetua.”