Ultimas conferencias e discursos (1924)/O feiticismo dos poetas brasileiros

XXXII


O FEITICISMO DOS POETAS BRASILEIROS


E’ indispensável uma curta explicação do enunciado do thema desta conferencia.

Em primeiro logar, porque digo feiticismo e não fetichismo, como vulgarmente se diz e se escreve? Não sou inimigo irreconciliavel dos estrangeirismos. Não considero que uma lingua qualquer, nova ou velha, pobre ou rica, possa ficar parada, ankylosada, estagnada, limitada aos seus proprios recursos. Aos idiomas acontece o mesmo que aos grandes industriaes e commerciantes, que quanto mais dinheiro ganham, tanto mais dinheiro querem ganhar. As linguas vivas, em pleno viço e esplendor, nunca são bastante ricas; todas ellas adoptam a lei da grande naturalização, e dão fóros de cidade a todos os vocabulos que podem opulental-a e aformoseal-a . Se é riquissima a nossa lingua, não é isso razão para que se não procure enriquecel-a ainda mais. Mas não se trata disso no caso especial dos vocabulos “fetiche" e “fetichismo”. Estas palavras são corrupção franceza dos velhos e legítimos portuguezes “feitiço” e “feiticismo”: são lusitanismos introduzidos na lingua franceza; todos os diccionarios o dizem. Digamos, portanto, em bom portuguez, “feitiço” e “feiticismo”.

A ideia da conferencia exige tambem explicação breve. Que é “feiticismo”, e que quero dizer, quando falo do “feiticismo dos poetas brasileiros?” No sentido preciso e rigoroso, feiticismo, ou o culto dos feitiços é a religião dos que veneram certos objectos naturaes ou artificiaes, ou um animal vivo ou morto, ou uma arvore, ou uma pedra, ou um idolo. O feiticismo é uma tendencia natural para o homem. Toda adoração tende a tornar-se feiticista. Quando se funda uma religião, os seus fundadores, querendo corporificar aos olhos dos crentes a divindade a adorar, tratam logo de symbolizal-a numa imagem, porque sabem que todo o homem, ainda o mais intelligente e culto, só comprehende bem, e só pode bem respeitar e amar aquillo que cae sob a acção directa dos seus sentidos. Assim, o idolo, a imagem é apenas a figuração corporea, a representação visivel e tangível do deus. Não é propriamente à imagem, ou á madeira, ao gesso, ao metal, ao pano, de que é feita a imagem, que se devem dirigir as preces e os preitos dos fieis, mas, sim, unicamente, ao deus immaterial, ao puro espirito que a imagem representa. E’ isso o que pretendem os fundadores das religiões. Mas, com o correr do tempo, o povo, que é entranhadamente e irremediavelmente feiticista, esquece a ideia do espirito que o idolo symboliza, e começa a adorar a propria imagem, como se ella, na sua passividade, na sua materialidade, fosse realmente um deus, dotado de acção, de vontade, de omnipotencia e de omnisciencia. No Brasil, como em todos os paizes, observa-se todos os dias este feiticismo religioso. Muita gente, tendo devoção a certo santo do calendario, não sabe porque lhe tem devoção, nem ao menos sabe quem foi ou fez elle na vida terrena. O que essa gente adora não é absolutamente a pessoa do varão piedoso e justo, que a Igreja, pela sua virtude e caridade, incluiu no numero dos bemaventurados: o que ella adora é unicamente a imagem do santo. Conheci uma senhora, uma boa e velha amiga, que era muito devota de Santo Antonio. Mas nem ella sabia quem foi Santo Antonio! Não era ao meigo e misericordioso lisboeta, pobre e austero, que se metteu entre os moiros para os converter, e que com a sua eloquencia commovia até os peixes, — não era a esse Santo Antonio que ella dirigia as suas preces. Não! o seu Santo Antonio, o unico que ella reconhecia e adorava, era um certo Santo Antonio de um palmo de altura, que havia no seu oratorio da sua casa do Rio de Janeiro. Aconteceu que essa senhora foi passar algum tempo na Europa. O seu primeiro cuidado, ao installar-se em Paris, num hotel, foi trocar uma imagem nova de Santo Antonio, que collocou, entre flores, sobre a commoda do quarto de dormir. Parece, porém, que o novo santo não lhe era tão liberal em milagres como o antigo... “O sr. não imagina (disse-me ella) a falta que me está fazendo o meu Santo Antonio, que deixei no Rio de Janeiro”. — “Como? (perguntei), mas não tem a senhora alli, sobre a commoda, um Santo Antonio?” — “Não é a mesma cousa! eu só me entendo bem com o meu santo do Rio de Janeiro, que já me conhece, que tem intimidade commigo, e nunca recusa cousa alguma!” Esta simples anecdota basta para explicar o feiticismo, no sentido rigoroso e primitivo da palavra. Hoje, a palavra dilatou o seu sentido. Por extensão, o vocabulo exprime toda a veneração profunda, exagerada, cega, de um objecto, symbolizando uma idéa, mesmo fóra da idéa religiosa. Ha, por exemplo, o feiticismo da bandeira. Em campanha, quando os soldados se arrojam de encontro á morte, alguns comprehendem que esse pano — é o symbolo da Patria; e, seguindo a bandeira, é a própria Patria que elles estão verdadeiramente seguindo. Outros, porém, os simples, os rudes, os de intelligencia curta ou inculta, são levados por um verdadeiro feiticismo, adorando a bandeira pela bandeira, como um selvagem da África adora o seu idolo, o seu pedaço de pau ou de pano, o seu feitiço. Ha ainda um feiticismo muito vulgar: o das palavras. Conheci, no tempo da escravidão, um fazendeiro, um senhor de escravos, que era um feiticista da palavra liberdade. Era italiano, e viera menino para a America do Sul; e, na sua mocidade, andara pela Argentina e pelo Uruguay, empenhado nas guerras civis desses dois paizes. Combatera contra Rosas e Francia; e dessas campanhas liberaes lhe ficara na alma um entranhado amor de liberdade. Falar-lhe em liberdade era dar-lhe ao coração banho longo de enthusiasmo e fé: afusilavam-se-lhe os olhos, avermelhavam-se-lhe as faces, precipitava-se-lhe o sangue nas veias, em rufos de febre. Findas as guerras, o homem enriquecera e comprara no Brasil uma fazenda, dedicando-se então a fazer brotar do solo o precioso grão do café; e, para isso, tinha em casa um meio cento de escravos robustos. Não estranheis o caso: naquelle tempo, havia em todos os espiritos a convicção de que o suor do negro era o melhor estrume para a terra cafeeira.. . Logo cedinho, o fazendeiro sahia com a aurora para o eito, levando comsigo um precioso rebenque veneravel, — reliquia do tempo, em que, nas marchas de campanha, cavalgava ao lado dos fogosos guerrilheiros. Não havia na fazenda feitor especialmente encarregado de incutir á tropa negra o respeito da disciplina por meio do chicóte: era o proprio fazendeiro quem, nos momentos criticos, propinava aos trabalhadores rebeldes ou malandros a applicação benefica do couro crú. E agora, ouvide e pasmae! na velha prata fosca que encastoava o relho já tão conhecido das costas dos escravos, havia, artisticamente aberta a buril, esta encantadora inscripção: Viva la libertá!

Ahi tendes um caso caracteristico de feiticismo de palavra... Mas ainda, por uma nova e maior extensão do vocabulo, o feiticismo, em psychologia amorosa, ficou sendo a predilecção, que, em amor, se tem por um encanto particular da mulher, ou ainda por um objecto que pertence ou pertenceu á mulher amada. E’ frequente ouvir um namorado falar dos feitiços da sua namorada. Que feitiços são esses? são os seus olhos, a sua mão, o seu pé, o seu modo de andar, o seu modo de falar, ou um certo cacoête que ella tem. Já alguém disse que cada mulher tem um certo que, que é feito para agradar exclusivamente a certo e determinado homem. Muitos homens, antes de se apaixonar por uma mulher em conjunto, começam por se apaixonar pela cor do seu cabello, ou pelo tamanho dos seus olhos, ou pela forma do seu queixo. Se todos os homens, que estão nesta sala, quizessem dizer com franqueza o que foi que mais os seduziu, logo á primeira vista, nas mulheres a quem mais amaram ou ainda amam, cada um delles faria uma confissão differente. Este diria: “foi a forma da sua orelha, pequena, retorcida, rosea como lima concha de Palermo”. Outro: “foi a brancura offuscante dos seus dentes, certos e claros como um fio de perolas”. E outro: foi o seu modo de andar, foi a suprema elegancia das suas botinas de tacão alto...” A esta predilecção accentuada por certos encantos femininos é que se dá o nome de feiticismo em psychologia. O feiticismo amoroso é muitas vezes uma forma definida de loucura. Claro é que, quando exagerado e absorvente, quando convertido numa idéa fixa, sae do dominio da psychologia e entra no dominio da psychopathia e da psychiatria. Ainda não ha muito, foi preso em Londres um individuo, no momento em que cortava com uma tesoura a trança de uma senhora; a policia encontrou no seu domicilio um vasto movei, em cujas gavetas havia uma collecção riquíssima de pedaços de tranças, pacotes de cabellos de todas as cores, negros, louros, castanhos, ruivos, e até grisalhos e brancos... Esse ladrão de cabellos era um feiticista louco.

Mas não saiamos do terreno da normalidade. Deixemos os loucos com a sua loucura, e tratemos dos feiticistas que teem juizo, — se é que qualquer homem, quando captivado pelos feitiços de uma mulher bonita e amada, pode conservar intacto o seu juizo.

Sendo nós uma raça de amorosos, a nossa poesia tem sido sempre uma poesia de amores. Namoradores e lyricos, os nossos poetas são naturalmente feiticistas. Celebrando em versos ardentes os encantos femininos, elles teem predilecções e preferencias. Uns são os cantores dos olhos, outros das mãos, outros dos pés. Estou em affirmar que não ha poesia nenhuma, como a brasileira, tão dada á glorificação dos encantos femininos. Os nossos poetas, neste particular, parecem descender em linha directa de Salomão, o sabio e real cantor do “Cântico dos Cânticos”.

Neste admiravel poema lyrico, cuja inserção nos livros sagrados tem sido tão contradictoriamente explicada, os encantos da Sulamita são cantados com um feiticismo exaltado, e com uma opulencia phenomenal de imagens, algumas das quaes de uma extravagancia entontecedora. Salomão diz que os dentes da Sulamita são como um rebanho de ovelhas, todas brancas e parelhas; que a sua boca é um oriente em fogo; que o seu pescoço é a torre de David; que as suas faces são as duas metades de uma romã; que os seus olhos são os dois lagos do Hesebão; que a sua testa é a serra do Carmelo... Salomão, se não fosse poeta judeu, seria poeta brasileiro.

Raras vezes vereis um poeta nosso cantar a alma, a bondade, a ternura, a innocencia de uma mulher. Quando se encontra isso, não é difficil verificar que o poeta está contrariando o seu temperamento. Ouvi para exemplo estes versos[1] de Fagundes Varella:

O que eu adoro em ti não são teus olhos,
Teus lindos olhos cheios de mysterio,
Por cujo brilho os homens deixariam
Da terra inteira o mais soberbo imperio;

O que eu adoro em ti não são teus labios
Onde perpetua juventude mora,
E encerram mais perfumes do que os valles
Por entre as pompas festivaes da aurora;

O que eu adoro em ti não é teu rosto,
Perante o qual o marmor descorara,
E ao contemplar a esplendida harmonia
Phidias, o mestre, o seu cinzel quebrara;

O que eu adoro em ti não é teu collo,
Mais bello que o da esposa israelita,
Torre de graças, encantado asylo,
Onde o igneo genio das paixões habita;

O que eu adoro em ti não são teus seios,
Alvas pombinhas que dormindo gemem,
E do indiscreto vôo de uma abelha
Cheias de medo em seu abrigo tremem;

O que eu adoro em ti — ouve! — é tua alma,
Pura como o sorrir de uma criança,
Alheia ao mundo, alheia aos preconceitos,
Rica de crenças, rica de esperanças...

Vê-se bem que isto não é sincero. Para dizer que somente adorava, nessa formosa criatura, a sua alma, o poeta escreveu muitas estrophes para celebrar os seus olhos, os seus labios, o seu rosto, o seu collo... Feiticista escondido, com a ponta de orelha de fora!

Para que nesta conferencia o thema fosse bem estudado, seria preciso que eu aqui vos mostrasse como, os poetas brasileiros, este canta exclusivamente, ou quasi exclusivamente, os olhos, aquelle os pés, aquelloutro os cabellos... Porque o que caracteriza rigorosamente o feiticismo poetico não é a tendencia para cantar indifferentemente todos os encantos femininos, mas para cantar um certo e determinado encanto. Por exemplo, o nosso maior romancista, Machado de Assis, tinha a religião dos braços femininos: era o que o seu olhar via immediatamente, logo á primeira vista, em qualquer mulher formosa, e era, dos encantos dessa mulher, o encanto que a sua penna descrevia com demorado e enternecido carinho. Assim, deveriamos organizar aqui a estatistica do nosso feiticismo lyrico. Mas essa estatistica seria enfadonha. O mais agradavel e o mais simples é desenrolarmos aqui o mais bello mappa que se pode conceber, o mappa da belleza feminina, e irmos assignalando alguns pontos com a recitação de versos, criados pela fantasia feiticista dos nossos poetas. E respeitaremos o recato da sagrada magestade da belleza feminina: porque a belleza immortal tem segredos e privilegios intangiveis; devemos todos ouvir e seguir o conselho que nos deu Raymundo Corrêa, nos seus Versos a um artista:

Poupa ás faces da deusa a onda purpurea!
Pinta-a, ideando-a só! o audaz recacho,
O torso, e o resto, sem, tremenda injuria,
A tunica rasgar-lhe de alto abaixo!

Comecemos pela cabeça, séde da expressão, cofre das ideias generosas e apaixonadas; e, na cabeça, comecemos pelos olhos, janellas por onde a alma se debruça. Olhos negros, olhos azues, olhos verdes, olhos garços, quantos poemas tendes inspirado no Brasil! E’ pelos olhos que o espirito espia, é por elles que os primeiros desejos se communicam, é por elles que sae e entra a primeira seducção, é por elles que se estabelece a primeira conversação, é por elles que salta a apertada, a invisivel, a traiçoeira rede em que os namorados são colhidos, e é, emfim, por elles que a mulher é sincera, porque, como disse um poeta, “os labios mentem, os olhos não!”

Os olhos negros... Quanta cousa sublime ou graciosa, tragica ou delicada teem visto nelles os poetas! São os olhos da volupia infernal, na paixão que allucina; da febre, do ciume. Se Valentim Magalhães pôde idyllicamente comparal-os a bagos de uvas:

“— São teus olhos, me servindo
De uma rustica poesia,
Bagos de uva, reflectindo
O fulgor do meio-dia, — ”

Medeiros e Albuquerque os injuria, vendo dentro delles uma quadrilha de salteadores da Calabria:

“São como certos bandidos
da Calabria os teus brilhantes
       olhos radiantes,
olhos cheios de encantos atrevidos”;

e uns negros olhos conheceu Luiz Delfino, que eram ao mesmo tempo o ceu e o inferno:

“Naquelles olhos, em que os astros moram,
Trocando o ceu, que teem, por ceu mais bello,
A sombra negra da paixão de Othelo
Passa rugindo, de punhal na mão!”

E’ na contemplação dos olhos negros, admirando a sua treva em que ardem relampagos de mysterio, que os poetas aprendem a associar as duas ideias supremas do amor e da morte; e, sendo os olhos do crime, são tambem os da piedade; eram negros os olhos de uma santa, a quem se dirigia Leal de Souza:

“A’ casta luz d’esse olhar,
Sinto ancias christans de orar,
Porque, brilhantes de amor,
Teus negros olhos rasgados
Teem a tristeza e o esplendor
Dos templos illuminados.”

E os olhos azues? esses conteem tanta cousa! Alberto de Oliveira conheceu uma mulher etherea e pura, de olhos de um azul claro,

“tão claro, que do ceu se via o manto,
cem leguas atravez dos olhos delia!”

Leguas e leguas de ceu!... E esse mesmo poeta, fitando esses mesmos olhos, dentro delles descobriu as almas que os animavam:

Se esses brilhantes olhos seductores
Avido encaro, soffrego analyso,
Como de lente armado, se é preciso,
Estuda o sabio a cellula das flores,

Noto o principio, allucinado, attento,
Nelles um ponto azul: e, penetrando
Mais fundo, abertas vejo rutilando,
Duas camaras cor do firmamento,

Duas formosas camaras azues,
E, dentro d’ellas, arco e flecha erguidos,
Dois amores pequenos e atrevidos,
Movendo no ar os seus bracinhos nús...

Mas o maior feiticista dos olhos, na poesia brasileira, foi Gonçalves Dias, que passou a vida a cantal-os e amal-os, sem preferir uma côr a outra, — olhos negros das tricanas de Coimbra, olhos garços e travessos das francezas, olhos azues das inglezas e das allemans, olhos pardos das tapuias do norte do Brasil, — até que naufragou no verde mar traidor de uns olhos que o perderam:

São uns olhos verdes, verdes,
Uns olhos de verde mar,
Quando o tempo vae bonança;
Uns olhos cor de esperança,
Uns olhos por que morri;
          Que, ai de mi!
Nem já sei qual fiquei sendo,
          Depois que os vi!

Como duas esmeraldas
Iguaes na forma e na cor,
Teem luz mais branda e mais forte:
Diz uma: vida; outra: morte;
Uma: loucura; outra: amor;
          Mas, ai de mi!
Nem já sei qual fiquei sendo,
          Depois que os vi!

São verdes da cor dos prados;
Exprimem qualquer paixão,
Tão facilmente se inflammam,
Tão meigamente derramam
Fogo e luz no coração;
          Mas, ai de mi!
Nem já sei qual fiquei sendo,
          Depois que os vi!

São uns olhos verdes, verdes,
Que podem tambem brilhar;
Não são de um verde embaçado,
Mas verdes da cor do prado,
Mas verdes da cor do mar,
          Mas, ai de mi!
Nem já sei qual fiquei sendo,
          Depois que os vi!

Como se lê num espelho,
Pude ler nos olhos seus:
Os olhos mostram a alma,
Que as ondas postas em calma
Tambem reflectem os ceus;
          Mas, ai de mi!
Nem já sei qual fiquei sendo,
          Depois que os vi!

Dizei vós, ó meus amigos,
Se vos perguntam por mi,
Que eu vivo só da lembrança
De uns olhos cor da esperança,
Dc uns olhos verdes que vi!
          Que, ai de mi!
Nem já sei qual fiquei sendo,
          Depois que os vi!

Dizei vós: “Triste do bardo!
Deixou-se de amor finar!
Viu uns olhos verdes, verdes,
Uns olhos da cor do mar:
Verdes, mas sem esperança,
Davam amor sem amar!”
Dizei-o vós, meus amigos,
          Que, ai de mi!
Não pertenço mais á vida,
          Depois que os vi!

Basta, porem, de olhos! A viagem é longa, atravez do mappa feiticeiro. Depois dos olhos, a boca: ninho da voz, fonte suprema da ternura, onde a alma gorgeia, pede, ruge, chora e pragueja, — onde residem os sorrisos, o sorriso timido do amor que não ousa, o sorriso provocador da tentação que exige, o sorriso frio do desdem que humilha, o sorriso insolente do motejo que mata, — e onde moram os beijos, caricia extrema, fala muda do amor, delirio que não cansa, delirio, que, como disse Guimarães Passos, tem de ser infinito para ser bom:

Um beijo mata, é verdade!
Porem outro beijo cura:
E’ o caso da mordedura,
Da mordedura do cão;
Um só, transtorna a cabeça:
Mas, se um em cima se emitte,
Provoca mais o apetite,
E faz bem ao coração...

Se Gonçalves Dias foi o grande feiticista dos olhos, o grande feiticista da boca foi um velho poeta nosso, o nosso velho Gonzaga, pastor da Arcadia Mineira, o suave Dirceu de Marilia. As Lyras de Dirceu estão cheias de louvores ardentes á boca de Marilia. A boca de Marilia era um assombro, uma obra prima, para cujo esplendor contribuiam sumptuosamente todos os reinos da Natureza. Um poeta popular disse de uma boca desconhecida:

A tua boca, menina,
E’ uma casa com jardim!
As portas são de coral,
Os degraus são de marfim...

Mas a boca de Marilia era ainda mais rica: tinha flores, tinha pedras preciosas, mel, ambrosia. Dizia o poeta a Glauceste:

    Para pintar, Glauceste,
    Os seus labios graciosos,
Entre as flores tens o cravo,
Entre as pedras a granada.

E logo:

As abelhas, nas azas suspendidas,
Tiram, Marilia, os sucos saborosos
    Das orvalhadas flores;
    Nunca fartos amores,
O mel não sorvem, sorvem ambrosias,
Pendentes de teus labios primorosos.

Com que enternecido enlevo, com que dolorosa saudade, mais tarde, na sua casinha de Villa Rica, Marilia, aos setenta annos, recitaria esses versos, repassando-os pela sua pobre boca privada dos seus cravos, das suas granadas, das suas perolas de outrora!...

Os cabellos... E’ talvez esse o mais encantador dos feitiços. Ha quem possa comprehender uma bella mulher sem bellos cabellos? Venus, calva, seria hedionda. Nos cabellos da mulher está a graça, como nos cabellos de Sansão estava a força. Se na tragedia biblica os papéis se invertessem, se Sansão cortasse os cabellos de Dalila, esta também perderia toda a sua força, que era a sua belleza. Este feitiço feminino tem sobre todos os outros uma grande vantagem: é o unico que pode ser separado do corpo da mulher amada para ser usado como talisman ou amuleto. A mecha de cabellos! penhor e lembrança, — o feitiço, o tabú, que se conserva na carteira, no bolso, ou no pescoço dentro de um bentinho, ou no dedo em forma de anel...

Luiz Guimarães quiz um dia morrer, envolvido na sumptuosa mortalha de uma cabelleira negra:

Tranças, ai tranças formosas!
Cabello puro e annelado!
Tão negro, tão perfumado
Como as mattas tenebrosas!

Nas vossas roscas cheirosas,
Eu sinto o aroma orvalhado
Que habita o seio dourado
Da madresilva e das rosas...

Por isso, amor, quando vejo
Esses escuros novellos
Revoltos, tenho desejo

De aspiral-os, de sorvel-os,
E de morrer como um beijo,
Nas ondas dos teus cabellos...

Alberto de Oliveira quiz ter o mesmo genero de morte, mas dentro de uma cabelleira loura:

Quero-te aqui, minha somente! os braços
Meus, e o collo, e a cabeça, e a boca, e o rosto!
Tu matarás todo o infernal desgosto,
Toda a amargura que me segue os passos!

Seja dia ao nascer, seja sol posto,
Ou chova, ou torrem callidos mormaços,
Tu me serás repouso aos membros lassos,
Minha somente, meu marmoreo encosto...

Em ti, como num céo que é meu de agora,
As azas cance o espirito suspenso,
Sacie-se o ideal que me devora...

Vamos! do seio mostra-me o thesouro!
Solta os cabellos! e que eu morra, o incenso
Bebedo haurindo d’essa nuvem de ouro!...

Para Castro Alves, os cabellos foram sempre um feitiço ardentemente adorado. Sobre as “Espumas Fluctuantes”, pairam, de pagina em pagina, radiantes cabelleiras femininas. O famoso “Laço de fita”, que inspirou o nosso bello poeta, somente o encantou porque adornava a coma de Pepita:

“Na selva sombria de tuas madeixas,
Nos negros cabellos de moça bonita,
Fingindo a serpente que enlaça a folhagem,
Formoso enroscava-se o laço de fita...”;

na linda “Boa Noite”, é entre os cabellos do Consuelo que o poeta quer dormir:

“Como um vasto e sombrio firmamento,
Sobre mim desenrola o teu cabello...
E deixa-me dormir balbuciando:
Boa noite, formosa Consuelo!”;

e mais adeante, paraphraseando o verso de Musset: “ses longs cheveux épars la couvrent toute entière”, Castro Alves admira a attitude da “Adormecida”:

Uma noite, eu me lembro. Ella dormia
Numa rede encostada mollemente:
Quasi aberto o roupão, solto o cabello,
E o pé descalço do tapete rente.

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A brisa, que agitava as folhas verdes,
Fazia-lhe ondear as negras tranças...”

E é sempre a mesma preoccupação; em “A uma Estrangeira”:

“E volvia a Americana
Do Plata ás vagas. .. Talvez!
E a brisa amorosa, insana,
Misturava os meus cabellos
Aos cachos escuros, bellos,
Aos negros cachos de Ignez!”;

no “Tonel das Danaides”:

“Na torrente caudal de seus cabellos negros
Alegre eu embarquei da vida a rubra flor...

em “Marieta”:

“Como o genio da noite, que desata
O véo das rendas sobre a espadua nua,
Ella solta os cabellos... Bate a lua
Nas alvas dobras de um lençol de prata...”

em “Horas de saudade”:

“Tu levaste-me a vida entrelaçada
Na sombra sideral de teus cabellos!”;

e em varios trechos de “Uma pagina de Escola Realista”:

"As trevas rolam com as tranças negras,
Que a Andaluza desmancha em mago enleio;
E entre rendas subtis surge medrosa
A lua plena, qual moreno seio.

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Meus prantos sirvam apenas
P’ra humedecer teus cabellos
Como da corça nos vellos
Fresco orvalho a resvalar...

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Sentir que a vida vai fugindo aos poucos,
Como a luz que desmaia no occidente;
E boiar sobre as ondas do sepulcro,
Como Ophelia nas aguas da corrente...
Sentir o sangue espadanar do peito,
Licor de morte, sobre a boca fria,
E meu labio enxugar nos teus cabellos,
Como Rolla nas tranças de Maria!"...

Mas, repito, a viagem é longa, Somente, antes de sair da cabeça, registremos que de todos os encantos da cabeça feminina o unico que n8nca enfeitiçou poetas é o nariz. O nariz, em poesia, só tem inspirado chacotas. Entretanto, elle era para os escultores antigos, como ainda para os modernos, o ponto da face humana de maior trabalho e do mais difficil estudo. Ha até regras fixas para o typo de perfeição do nariz Para que um nariz seja perfeito, é preciso que a sua altura seja igual á altura da fronte; perto da raiz, deve haver uma pequena depressão; a ponta não deve ser carnuda, mas afilada; o contorno inferior deve ser de desenho correcto e preciso, nem muito agudo, nem muito obtuso; de perfil, a parte inferior deve ter um comprimento rigorosamente igual á terça parte da altura total; e, em cima, a largura, dos lados dos olhos, deve ser de meia pollegada. A precisão destas regras mostra quanto para os artistas é importante o nariz, como parte da belleza. Mas não é verdade que ha realmente narizes encantadores, mesmo quando não obedecem a essas regras formaes? Ha narizinhos arrebitados, por exemplo, que, com o seu ar de insolente e provocante petulancia, nos parecem mais bellos do que o nariz impeccavel da Venus Anadyómena do Museu do Vaticano. Por tudo isto, não se comprehende que o nariz não tenha seduzido a inspiração dos nossos poetas. Houve um, que quiz rehabilital-o: foi Bernardo Guimarães. Mas não conseguiu manter a inspiração no seu poema:

“Cantem outros os olhos, os cabellos
E mil cousas gentis
Das bellas suas; eu, da minha amada,
Cantar quero o nariz.
Não sei que fado misero e mesquinho
E’ este do nariz:
Que poeta nenhum em prosa e verso
Cantal-o jamais quiz.

Os dentes são perolas,
Os labios rubis;
As tranças lustrosas
São laços subtis,
Que prendem, que enleiam
Amante feliz;
E’ collo de garça
A nivea cerviz;
Porem ninguem diz
O que é o nariz.
Beijam-se os cabellos,
E os olhos bellos
E a boca mimosa,
E a face de rosa
De fresco matiz;
E nem um só beijo
Fica de sobejo
Para um só nariz...
Ai! pobre nariz,
E’s bem infeliz!...”

E por ahi vai Bernardo Guimarães, mas não acha dar lyrismo ao nariz. Desventurado nariz! nunca apparecerá quem o tome por feitiço.

Vamos, porem, á mão. Feitiço de primeira ordem! Que é a figa, que se põe ao pescoço ou sobre o berço das crianças, e que muitas senhoras e muitos homens usam, como ornato, na pulseira, ou no collar, ou na corrente do relogio, senão um feitiço de especial condão, afastando o mau-olhado e a jettatura, attrahindo a felicidade? Já na mais remota antiguidade grega, havia mãosinhas votivas, mãosinhas de marmore ou de bronze, que se offereciam aos deuses, quando delles se queria obter alguma cousa. Os romanos conservaram a figa nas suas tradições sagradas, e transmittiram-na aos modernos italianos, e a todos os povos latinos; e os mahometanos, na Asia e na Africa, usam habitualmente a figa, que representa a mão de Fatima, a filha do Propheta. E’ natural o culto religioso que se dá á mão. A mão é a prodigalizadora dos gestos que abençoam e amaldiçoam; chama e repelle, intima e pede, acaricia e espanca, attrahe e expulsa; é com ella que se pedem e dão as esmolas; e é nella que se dão os mais expressivos beijos de respeito e de amor. E que lindo feitiço tem sido ella para os poetas brasileiros! João Ribeiro diz que ella é um lirio:

A mão, que em gentil desgarro,
Sae do alvo braço, talvez
Lirio de bocal de um jarro
Japonez...

Luiz Delfino diz que ella é o céo e a floresta:

“E’ curva como o céo; tem a frescura
Das luzes matinaes;
Tem a sombra da mata e a doce alvura
Dos linhos matinaes...”

E Alberto de Oliveira, que, alem de ser muito feiticista, é tambem muito pantheista, diz que o dia, em que logrou apertar na sua uma certa mão, foi dia de festa para toda a Natureza:

Emfim! nas verdes pendulas ramadas,
Cantae, passaros! vinde ouvil-o, rosas!
Abri-vos, lirios? recendei, medrosas
Myosotis e acacias perfumadas,

Prestae-me ouvido! Saibam-no as cheirosas
Balsas e as leiras floridas plantadas;
Aves e flores, flores e alvoradas,
Alvoradas e estrellas luminosas,

Saibam-no agora! os ceos e a esphera toda
Saibam-no agora! Emfim, sua mão de leve...
Borboletas, que pressa! andaes-me em roda...

Auras, silencio! Emfim sua mãosinha,
Sua mão de jaspe, sua mão de neve,
Sua alva mão pude apertar na minha!...

Mas, ó deuses immortaes! quantas outras regiões do mappa sagrado reclamam a nossa visita e exigem a nossa curiosidade! Cem vidas não bastariam para percorrer todas estas regiões cheias de maravilhas. E nem todas as regiões são accessiveis ao olhar profano... Demos um salto, e passemos da mão ao pé:

O pé sempre foi o feitiço que mais tem impressionado os poetas de todas as raças e de todos os tempos. Um pé pequeno e bem feito vale ouro — que digo? vale o céo. Por possuir um pé perfeito, a pobre Cendrillon, a humilde Gata Borralheira sahiu do borralho para um throno... Qual será a razão desta primazia? Creio que, se o pé é tão amado, é porque nem sempre o vemos á vontade. Todo o mysterio accrescenta um novo encanto ás cousas encantadoras. Resguardado no estojo da botina, deixando apenas adivinhar, atravez da malha da meia e da prisão de couro ou do setim, a sua forma perturbadora, — e, ainda mais, occulto pela barra da saia, que é o velario que avaramente o recata, — o pé só se deixa ver a furto. E’ esse o segredo do seu prestigio.

Grande feiticista do pé foi Raymundo Corrêa. Como poeta, elle admirava-o, procurava-o, acompanhando-o, espiando-o . No lindo soneto “Chuva e Sol”, reparae na delicadeza e no carinho da imagem, que realça a graça dos pés da formosa transeunte:

“Agrada á vista e á fantasia agrada
Ver-te, atravez do prisma de diamantes
Da chuva, assim ferida e atravessada
De sol pelos venabulos radiantes...

Vais, e molhas-te, embora os pés levantes:
— Par de pombos, que a ponta delicada
Dos bicos mettem na agua, e, doidejantes,
Bebem nos regos cheios da calçada...

Vais, e, apezar do guarda-chuva aberto,
Borrifando-te, colmam-te as goteiras
De perolas o manto mal coberto;

E estrellas mil cravejam-te, fagueiras,
Estrellas falsas, mas que assim de perto
Rutilam tanto como as verdadeiras...”

Admirae a frescura do “Primaveril": quando uma linda mulher passeia pelo campo, o que nelle encanta mais Raymundo Corrêa é a agitação dos seus pés:

“Despertou; e eil-a já, fresca e rosada,
Na varzea em flor, que se atavia e touca
Da primavera ao bafo, e onde é já pouca
A neve, ao sol fundida e descoalhada...

E em sua tremula, infantil risada,
A boca abrindo, patenteia, a louca,
Rico escrinio de perolas da boca
Na pequenina concha nacarada.

Voa, as papoulas esflorando e as rosas...
Passa entre os jasmineiros que se agitam,
A’s vezes celere, e pausada ás vezes...

E, sob as finas roupas vaporosas,
Seus leves pés precipites saltitam,
Pequenos, microscopicos, chinezes..."

José Bonifácio, o moço, não podia ver um pé delicioso, sem ter vontade de ajoelhar-se diante delle. Disse um dia que o pé tem uma alma propria, — e esta confissão é de um acabado e delirante feiticismo:

Um pé como eu já vi, subindo a escada
Da casa de um doutor...
Da moçoila gentila erguida saia
Deixou-me ver a delicada perna!
— Padres, não me negueis, se estaes em calma,
Um coração no pé, na perna uma alma...

Um pé, como eu já vi, junto á ottomana,
Em fervido festim,
Tremendo de walsar, e envergonhado
Sob a meia subtil, e a cor do pejo
Deixando fluctuar na veia azul,
Requebro, amor, feitiço, — um pé taful...

Um pé, como eu já vi, de tez mimosa,
De tez folha de rosa,
Leve, esguio, pequeno, carinhoso,
Apertado a gemer num sapatinho:
— Um pé de matar gente e pisar flores,
Namorado da lua, e pae de amores...

Eu, poeta do amor e da saudade,
Depois de morto, peço
Em vez da cruz, sobre a funerea pedra,
A fôrma do seu pé...

E ainda ha, na poesia brasileira, um exemplo mais frisante de feiticismo pelo pé. São os celebres versinhos de Francisco Octaviano, senador do Imperio, ministro e conselheiro de Estado, — poeta lyrico, que foi ainda mais longe do que José Bonifácio, porque, ainda depois de morto, queria ter o prazer de ser pisado, na cova, por um certo pé:

Querida, quando eu morrer,
Com a tua boquinha breve
Não me venhas tu dizer:
A terra te seja leve!

Nesse dia, vem calçada
De botinas de setim;
Quero a terra bem pisada,
Tendo teu pé sobre mim!

E’ decididamente o pedido mais extravagante que se pode fazer a uma namorada...

Ora, pois! Quero, meus senhores e minhas senhoras, que me digaes se achaes morbido ou inconveniente o feiticismo dos poetas brasileiros, se achaes comico, ou ridiculo, ou inutil que elles consagrem todo o seu talento, as suas mais fulgurantes imagens, as suas mais bellas rimas á celebração dos feitiços da formosura feminina; — não? nem eu!

Carlyle escreveu que o corpo humano é uma maravilha, um prodigio, um milagre, — o unico dos milagres visiveis e palpaveis: “nós tocamos o ceu, quando tocamos um corpo humano...” E que dizer de um corpo humano, quando elle é o corpo de uma mulher? O feiticismo dos nossos poetas é apenas a justa e legitima glorificação, a apotheose, o endeusamento dessa maravilha da Criação Divina. Que cantariam, que celebrariam elles, se não cantassem e celebrassem a vossa belleza, minhas senhoras? Todas as artes humanas, e todos os artistas que teem sonhado, trabalhado e soffrido na terra, nunca acharam até hoje mais bello thema para a sua inspiração. A belleza feminina não é apenas um encantamento physico: é uma lição de moral, porque a contemplação da belleza ennobrece os olhos e purifica a alma de quem a admira. Houve outrora, em fins da Idade Média, na cidade franceza de Toulouse, uma senhora, que era a mais bella do seu tempo. Chamava-se Paula de Viguier, e era modesta e piedosa, timida e devota, pouco dada a apparecer e brilhar. Mas os magistrados da cidade, considerando que era um crime de lesa- humanidade occultar-se tamanha formosura, obrigaram por um edito a bella Paula de Viguier a mostrar-se á janella tres vezes por semana, para assim pagar ao povo o imposto da sua belleza, dando-lhe a consolação e a delicia do espectaculo do seu olhar e do seu sorriso...

A belleza feminina é de tal modo sagrada, que já houve quem propuzesse a construcção de um monumento commemorativo, para honrar a memoria do humilde cavouqueiro anonymo, que, com um golpe inconsciente da sua picareta, arrancou do fundo da terra o prodigio incomparável da Venus de Milo. Que é a Venus de Milo, frio e inanimado bloco de pedra, senão um idolo, um feitiço, em que todos nós, incorrigivelmente feiticistas, adoramos a corporalização da eterna ideia da belleza feminina? E que outra adoração, mais intensa, que outra veneração, mais completa, deve merecer a Mulher viva, o grande feitiço vivo, formado de pequenos e innumeros feitiços vivos? E’ o feitiço maior da Natureza!

Na Mulher, todas as perfeições da Vida universal se conteem. Quando menina, ainda pequenina, já a mulher tem a graça divina, diluculo de belleza, que deixa adivinhar na claridade indecisa da madrugada o esplendor do dia que não tarda. Depois, na idade da révora, ha no seu corpo a harmonia de um hymno triumphal, cantico de seiva rebentando em relampagos de vida. Depois, é o estio, estação fulgente, em que o feitiço offusca e cega, sol alto, calor fecundo, apotheose da luz e da força. Depois, é o outono, sazão bemdita, em que a mulher de quarenta a’nnos tem a formosura suave e melancolica dessas tardes longas, em que a luz anciosa, querendo fugir e querendo ficar, demora-se no ceu e na terra, e agarra-se ás arvores, ás nuvens, com pena de morrer... Depois, é o inverno... é a sacrosanta belleza da mulher bella na velhice, — uma belleza, que parece immaterializar-se, espiritualizar-se sob a nevoa dos cabellos brancos...

Divino feitiço, abençoado sejas em todas as idades, pois que em todas as idades és o maior encanto e o maior consolo dos nossos olhos e das nossas almas! E perdoados, e bemditos sejam os poetas feiticistas, que por tua causa e por amor de ti, chegam até ás vezes a ultrapassar o limite do bom senso, caindo no dominio do disparate e da loucura!

  1. Publicada como Estâncias, no livro Cantos do Ermo e da Cidade. [Nota editorial da Wikisource]