O bonde vinha tão silencioso, ontem à tarde, como se por ele tivesse passado um sopro de solenidade histórica. Os passageiros, alinhados, taciturnos, pareciam compenetrados de representar algum papel de responsabilidade. Ou dir-se-ia que iam jogar a própria vida numa linha de fogo, logo ali adiante.
A certo momento, entrou um bêbedo, que mal se sustinha nas pernas, como um fardo que trepasse a custo arrastado por uma corda invisível. Mas falava sem parar e ria-se numa grande jovialidade enternecida e patusca. Tudo lhe ria, a barba crespa e grisalha, repartida em duas pontas, os olhos pequenos e azuis, como dois botões de esmalte, o chapéu amolgado e caído sobre a orelha, os longos caracóis de cabelo bamboleantes sobre a testa como gavinhas de aboboreira, e que se haviam despregado da pastinha rala, transversalmente colada por cima da calva. Ria a próprio casaco de pano encorpado, cujos bolsos atafulhados se arredondavam como bolsas, e ria ainda mais o lenço vermelho amarrado ao pescoço, com as pontas a esvoaçar como bandeirolas.
Falando e rindo, o homem caiu sentado em cima de duas mulheres, que recuaram espavoridas "Scusate, signore!" E tirou largamente o chapéu com a mão que segurava o cachimbo, cujas cinzas se espalharam por cima das cabeças vizinhas. "Scusate, io sono un pó allegro, Oggi ê festa!" E disparou a cantar.
O condutor veio lá do fundo como uma flecha e, com o sobrecenho mais autoritário que pôde compor:
"Ó aquele, aqui não se canta!"
- "Non si può. Bene, bene. Non si può. È giusto. Si. Stà benissimo... Eh! condutore, mi dà un fiammífero?"
E, enquanto acamava com o polegar o fumo negro contido no pipo, cantou, numa voz que podia bem ser a de um ex-barítono:
- "Io voglio un fiammifero!"
O condutor voltou a ele e, com redobrada energia no cenho e na voz:
- "Já lhe disse que não pode cantar!"
- "Eh!... io già sabia che non si può cantare. Domandavo a lei un fiammifero."
- "Não tem fiammifero. Você vai é já para baixo, se não fica quieto."
- "Pra basso, io?! Dio b...! E che ho fatto io, conduttore... O conduttore! che ho fatto io per esser messo giu... in mezzo alla strada?"
O homem largou o cachimbo em cima do banco, remexeu os bolsos com as mãos bambas, remexeu, e não encontrava o dinheiro. Tirou um lenço, uma laranja, duas metades de charuto toscano, um pedaço de barbante, uns restos de amendoim, uma medalha, um jornal; e resmungava: - "Come no! io tenho dinero. Si! Anche della carta moneta... Vucê truca cinque milla, conduttore? Ebbene, aspetti. Si, ió tenho... eh! Un pó de pazienza, caro."
A muito custo, deu com a nota num dos bolsos do colete, junto do relógio de prata, enorme, que previamente sacou e auscultou. Ao retirar a cédula, fê-lo num gesto de triunfo; ergueu senhorilmente a cabeça e, estendendo a mão com o dinheiro ao condutor irritado, esboçou um canto jacundo e nobre como um ofertório, em voz retumbante: "Ecco, o signor, prendetela!"
O condutor não lhe cobrou a passagem, mas fez parar o carro e obrigou o cantor a descer, com tácita aprovação dos demais passageiros. Quando se viu na rua, o expulso abriu os braços para protestar, mas cambaleou e sentou-se no chão, gritando sonoramente, à maneira de insulto e de ameaça: "Portoghese! Vado dal presidente dello Stato!"
Mas o bonde já ia longe. E os passageiros riam-se. E ria-se o condutor. Precisamente nesse momento, eu ficava sério, e aquele homem alegre e inofensivo, posto do veículo abaixo como uma lata velha, me começava a interessar. Era a vítima simpática de um lote de imbecis. E eu no meio destes.
Um homem alegre, fosse qual fosse o combustível da sua alegria, devera ser olhado como em certas civilizações primitivas se olhavam os doidos, criaturas sagradas, ou como os gregos consideravam os devotos delirantes de Dionísios, condensadores momentâneos desse mistério de jovialidade e de exaltação que em certas épocas circula através das coisas, e preme os úberes da terra, e desata as ofertas do céu.
Minha alma ficara lá para trás, junto daquele homem assoado para a rua pela austera comunidade do bonde. E minha alma lhe dizia:
Ri, ri, ri, minha vitima, meu irmão. Brinca, tagarela, traquina à tua vontade. Frui sem vergonha e sem cuidado este parêntese divino de liberdade e de loucura alegre que se abre na miséria soturna da tua vida. Ri, ri, meu irmão, minha vítima.
A tua risada não me alivia, mas vinga um pouco a minha ânsia recolhida de libertação impossível, pobre, torturado escravo que sou, mesquinho escravo das Regras, dos Horários, dos Regulamentos, dos Códigos e das Necessidades criadas.
Ri, folga, berra, cabriola, papagueia, pragueje, insulta! E canta! canta, nessa efusão de lirismo obscuro que sobe do mais fundo da nossa alma bruta, expressão sem palavra de alegria vital, inconsciente, expansiva, cósmica, alegria do gafanhoto que salta e voeja, da maritaca gritadeira e gloriosa, da água que foge às guinadas fervendo e brilhando, do fogo que dança o bailado da labareda, de tudo que não é esta nossa desgraçada alma superficial de bicho domesticado e diminuído.
Ri, ri, ri, com todo o teu ser, todo o teu sangue, a tua carne, para além ou aquém do Bem e do Mal, Homem! pobre Homem, bom Homem, meu irmão.
Ri, ri, ri, até que estoures de repente com o riso, como a cigarra a cantar, e acabes assim na mais bela das mortes, fulminado por uma explosão de vida!"
Agora, ao rememorar esta minha ode, com a pena entre os dedos, já não me parece que tenha justificado bem a embriaguez, que afinal é um vício detestável. Embriaguez por embriaguez, é preferível uma consciência clara e um sentimento profundo e sutil das realidades. Também isto é uma espécie de bebedeira; mas lúcida, infinitamente matizada; e tem todo, o atrativo de um vício artificial.
"Sede duros, meus irmãos!" pregava Zaratustra, "e a verdade é que a dureza é um ingrediente da vida e uma condição de ordem."
Nada mais saboroso do que o diálogo de Tolstói com a sentinela do Cremlim. Esta enxotava um mendigo de certo lugar onde não se permitia a permanência de estranhos. Tolstói aproxima-se, vê, sofre, e aborda o soldado, perguntando-lhe se não conhecia os versículos do Novo Testamento em que se recomenda tratar o próximo como a um irmão. Retruca o militar: "E o senhor não conhece o regulamento da praça? Pois eu o conheço."
Palavra profunda! A primeira necessidade é cumprir cada um o seu dever particular, o seu dever concreto, positivo, limitado, pequenino.
O dever particular às vezes é duro, como pedra, como prego, duro como pau, mas é dele que se faz a ordem, a ordem que é edificação, que é obra, que é abrigo e desfrute, oficina e palácio, lavoura e escola, a ordem que é civilização. Os deveres mais gerais são também mais flutuantes: discutem-se; oscilam com a temperatura do sentimento, com as marés da idealidade. Mas o dever imediato e cotidiano é fixo e indiscutível: não há senão obedecer-lhe. E a obediência é a segurança e o alimento de cada um e de todos. Coisa insignificante, um homem que regularmente cumpre os seus deveres de cada dia: coisa majestosa, uma nação em que todos procedem assim!
O ideal é talvez juntar ao livro de Tolstói a espada do soldado. Em todo caso, eu daria ao soldado uma fria aprovação, e a Tolstói um abraço.