—Ouvi tudo, tudo!
A Zina a fitar-lhe uns olhos espantados.
—Ah! E são esses os seus sentimentos! exclama com a voz tomada. Até que por fim aprendi a conhecêl-a!
—A conhecer-me? repete a Zina (fulgem-lhes os olhos, de colera). Atreve-se a falar-me assim?
Dá um passo para o mancebo.
—Tudo ouvi! insiste solemne o Mozgliakov, recuando porém um passo, mau grado seu.
—Ouviu?—Espionou, diga! emenda a Zina a mirál-o com desprezo.
—Espionei, seja? É verdade, decidi-me a praticar semelhante vilania! Mas, graças a ella... fiquei afinal sabendo que é a mais... nem sei como qualificar a sua... tartamudeava o mancêbo, de mais em mais atrapalhado sob o olhar da Zina.
—E quando haja ouvido a tudo, que é que me poderá lançar em rosto? Quem lhe deu o direito de me accusar, de me falar n'esse tom?
—Com que direito!... Eu!? E ainda m'o pergunta!? Intenta casar com o principe... e a mim não me assiste o direito...!... Pois não me deu a sua palavra?
—Quando?
—Quando, essa é melhor!
—Esta manhã, sem irmos mais longe, o senhor a apertar commigo e a minha resposta formal foi que nada lhe podia afirmar de positivo.
—Mas não me rejeitou em absoluto, e por conseguinte, guardava-me para o não chega—poupava-me!...
Contrahiu-se o semblante á Zina com dolorosa sensação, mas não se atenua o desprezo que sente para comsigo.
—Se o não escorraçei, responde em voz grave e compassada, mas algo trémula, foi unicamente por compaixão. Supplicava-me que esperasse, que lhe não dissesse que não. "Vá aprendendo a conhecer-me"—disse o senhor um dia, "e quando se houver convencido de que sou um homem de caracter digno, é possivel que me não rejeite." Foram estas as suas palavras, no principio das nossas relações, não as poderá renegar: E agora atreve-se a dizer, que o guardo para o não chega! Pois não percebeu, esta manhã, o meu aborrecimento por ver como antecipava de quinze dias o seu regresso? E todavia, não lhe encobri esse meu enfado, e o senhor foi o proprio a notál-o, visto que me perguntou se me não agastava este seu regresso permaturo. Chama então poupar um homem o não lhe poder encobrir o fastio que alguem experimenta em ver esse homem? Ah! Eu então guardava-o para o não chega!? Não! eu dizia commigo, a seu respeito: "Se não é demasiado intelligente, é bondoso, quando menos"... agora, comtudo, fiquei sabendo—a tempo, felizmente—que tem tanto de mau como de tolo, e só o que me resta é desejar-lhe boa jornada! Adeus!
A Zina volta-lhe as costas e caminha, de seu vagar, para a porta. Mozgliakov comprehende que tudo está perdido; referve-lhe a raiva.
—Ah! com que, eu, então, sou tolo! vociféra; tolo!—Muito bem! Adeus! Mas, antes de me ir embora, saiba que a toda a gente ha de constar a infame comédia que aqui estão representando... tanto a senhora como sua mãe. Vou contar tudo a toda a gente, que embebedam o principe, que o subornam! Ha de ouvir falar de Mozgliakov!
Estremece a Zina, vae para reponder, mas, volvido um instante de reflexão, encolhe os hombros, desdenhosa, e bate-lhe com a porta na cara. N'este conflicto, assoma aos hombraes Maria Alexandrovna. Ouviu as ultimas exclamações de Mozgliakov e adivinhou o restante. O Mozgliakov sem, se ir ainda embora! O Mozgliakov á ilharga do principe! O caso espalhado por toda a cidade pelo Mozgliakov! E todavia, é indispensável guardar segredo... Maria Alexandrovna, n'um relance, tudo calculou, a tudo preveniu, e urde um plano para aplacar o Mozgliakov.
—Que tem, meu amigo? diz estendendo-lhe a mão, cordial.
—Como meu amigo! exclama o outro furibundo. E depois de tudo isto; meu amigo! Morgen Früh[1], minha senhora. Metteu-se-lhe então em cabeça embaçar-me outra vez?
—Sinto, devéras, acredite, sinto immenso vêl-o em um estado de espirito tão estranho, Pavel Alexandrovitch. Que linguagem! Nem sequer méde as palavras em presença de uma senhora!
—Em presença de uma senhora!... Será quanto quiser... menos uma senhora.
(Ignoro o que é que elle queria dizer, mas, com certeza, devia de ser um qualquer ultrage, de esmagar.) Maria Alexandrovna com os olhos n'elle e um risinho de commiseração:
—Sente-se, diz, com tristeza, apontando para a cadeira na qual, um quarto de hora antes, estivéra sentado o principe.
—Mas no fim de contas, não me dirá, Maria Alexandrovna?... exclama Mozgliakov, desnorteado. Está-me tratando como se a senhora estivesse innocente e fosse eu o culpado! Não pode ser!... Vae muito além dos limites! É abusar da paciencia... de todo... digo-lh'isto!
—Meu amigo... responde Maria Alexandrovna—e deixe-me dar-lhe ainda este titulo, pois neste mundo não terá melhor amiga...—o senhor está afflicto, excitado, ferido no coração, e devo pois relevar-lhe semelhantes desmandos de linguagem. Pois bem, vou abrir-me com o senhor. Tanto mais que eu, até certo ponto, não deixo de ter culpas para com o senhor. Sente-se, pois, e conversemos. A voz de Maria Alexandrovna assumiu o auge da meiguice, é compungida a sua expressão phisionomica.
Senta-se Mozgliakov.
—Esteve escutando á porta, diz ella com uns modos de exprobação e de indulgencia, ao mesmo tempo.
—Escutei, sim! E por que não? Nem que eu fôra um asno!... Se quer ao menos fiquei sabendo o que andava a maquinar contra mim, responde Mozgliakov, haurindo valôr da propria colera.
—E resolver-se a senhora, com a sua educação, as suas maneiras, a representar semelhante papel! Santo Deus! Mozgliakov está aos pulos na cadeira.
—Maria Alexandrovna, não posso ouvir-lhe uma palavra mais! Melhor será que se lembre do que está fazendo, a despeito da sua educação e das suas maneiras, e diga-me se lhe assiste o direito de accusar a outrem!
—Ainda uma pergunta, prosegue ella sem responder. Quem foi que lhe suggeriu a ideia de escutar á porta? Quem será que anda por aqui a espiar-me os passos? É isso o que eu não se me dava de saber!
—Lá quanto a isso, tenha paciencia, não serei eu quem lh'o diga.
—Muito bem, eu tratarei de o saber... Dizia eu, pois, Pavel, que não deixo de ter culpas para com o senhor, mas, se é que póde julgar-me com conhecimento de causa, verá que se tenho alguma culpa é a de lhe querer bem em demasia.
—Com que então, quer-me bem?—Esta a caçoar commigo, e certifico-lhe que não torna a enganar-me; serei muito creança mas nunca até esse ponto!
E elle, n'um sarilho na poltrona, e a poltrona a tremer.
—Por quem é, meu amigo, socegue se é possivel, escute com attenção, e verá que ha de concordar commigo. Eu, a principio, tencionava contar-lhe tudo, pôl-o em dia com tudo sem que se lhe tornasse necessario aviltar-se ao ponto de escutar ás portas. Se o não fiz, foi unicamente porque o negocio se achava ainda em estado de projecto e podia mallograr-se. Bem vê a franqueza de que uso para com o senhor. E, acima de tudo mais, não se volte contra minha filha, que de nada tem culpa. É doida pelo senhor, e custou-me os olhos da cara arrancar-lh'a ao senhor e persuadil-a a acceitar o offerecimento do principe.
—E eu, que com os meus proprios ouvidos, ouvi,—n'este instante, provas d'esse tal louco affecto, replica ironico Mozgliakov.
—Muito bem! Mas em que termos se lhe dirigiria o senhor? É assim que se expressa um namorado? Será essa a linguagem propria de um homem de fino trato? Offendeu-a, irritou-a.
—Como se fosse questão de fino trato, Maria Alexandrovna! Esta manhã, ambas me faziam boa cara, mas assim que eu saí e mais o principe, puzéram-me pelas ruas da amargura.—Estou sciente de tudo... tudo.
—Bebido da mesma fonte ignobil, provavelmente, observou Maria Alexandrovna com risinho de desdem. É verdade, Pavel Alexandrovitch, púl-o pelas ruas da amargura e, confesso, Deus sabe quanto me custou. Quanto não tive eu que luctar com os proprios sentimentos! Mas bastará o facto de eu me ver na necessidade de o calumniar para lhe provar a difficuldade que eu encontraria em obter d'ella que desistisse do senhor! É possivel que não veja um palmo adeante do nariz? Se ella lhe não tivesse amor, eu teria alguma necessidade de appellar para calumnias? E ainda o senhor não sabe o melhor! Tive que valer-me da minha maternal auctoridade para lh'o arrancar a ella do coração! Em conclusão, depois de esforços inauditos, consegui alcançar uns arremedos de consentimento... E visto que esteve á escuta, não deixaria de notar que ella não me ajudou em presença do principe com uma palavra, sequer, ou com um gesto. Cantou para alli como um automato; em visiveis afflições toda ella, e foi por ter dó d'ella, que eu carreguei com o principe. Tenho a certeza, até, de que se pôz a chorar, assim que se apanhou sósinha. O senhor bem viu, quando entrou... Mozgliakov recorda-se de que effectivamente a Zina estava a chorar quando elle entrou.
—Mas a senhora, a senhora, por que é que está assim tão contra mim, Maria Alexandrovna? Por que é que me foi calumniar segundo é a propria a affirmál-o.
—Ora, isso agora é outro negocio; e se o senhor m'o tivesse perguntado em termos logo ao principio, ha muito tempo que lhe teria dado resposta. Sim, tem razão, fui eu que fiz tudo, eu, sósinha: não esteja a accusar a Zina. Por que foi que o fiz? E eu respondo-lhe: primeiramente, por interesse da Zina. O principe é rico, representante de nobilississima casa, tem relações, e casando com elle a Zina faz um optimo casamento. Emfim, se elle morrer, o que não poderá tardar muito, pois todos nós, mais ou menos, somos mortaes,—n'esse caso, a Zina, nova e viuva, pertencendo á alta sociedade, fica riquissima e casa com quem quizer. Ora, está claro que irá casar com o homem a quem ama, e que foi o primeiro a quem teve amor, e cujo coração terá martirizado casando com o principe. E bastará o arrependimento... O acto que terá mais a peito será o de remediar a propria falta.
—Hum! rosna Mozgliakov pensativo, a contemplar os bicos das botas.
—Em segundo logar... mas serei breve a semelhante respeito, é possivel que me não comprehendesse. O senhor só o que sabe é ler o tal seu Shakspeare, fonte aonde exclusivamente vae beber os seus nobres sentimentos; e d'ahi, o senhor está tão moço! Eu, comtudo, sou mãe, Pavel Alexandrovitch. Caso a Zina com o principe um tanto por causa d'elle tambem, visto que para elle o casamento pode representar a salvação! Ha tanto tempo que voto amizade áquelle honradissimo ancião, tão bondoso, cavalheiresco! Quero arrancál-o ás garras d'aquella infernal creatura que ha de pregar com elle na cova!... Invoco a Deus por testemunha em como foi patenteando á Zina todo o alcance do heroismo da sua dedicação que eu pude convencêl-a.
Arrastou-a o irresistivel prestigio da abnegação. Ella propria tem o que quer que seja de cavalheiresco. Submetti-lhe o meu projecto sob colôr de um acto christão. Vaes ser, lhe disse eu, o amparo, a consolação, a amiga, a filha, a beldade, o idolo de um homem que talvez que nem um anno tenha de vida. Mas sequer ao menos, extinguir-se-ha no dôce calôr do amor. Estes seus ultimos dias parecer-lhe-hão um paraiso. Onde é que vê n'isto egoismo, Pavel? Não! e não! É um acto de irmã de caridade.
—A senhora, então, procede desse modo, por amizade para com o principe... á laia de irmã de caridade? commenta o ironico Mozgliakov.
—Comprehendo essa sua pergunta, Pavel Alexandrovitch, é clarissima. Suppõe que estou fazendo uma confusão jesuitica dos interesses do principe com os meus. Pois bem, é possivel que me tivesse atravessado pela mente semelhante calculo, inconscientemente, porém, e sem resquicios de jesuitismo. Espanta-o esta minha franqueza? Peço-lhe apenas uma mercê, Pavel Alexandrovitch: não involva a Zina n'este negocio! Está pura que nem uma pomba. Não calcula; sabe apenas amar, pobre pequena! Se houve alguem que calculasse, esse alguem fui eu, e só eu! Indague, porém, sinceramente da sua consciencia e diga-me quem seria que no meu logar não haveria calculado? Calculamos os nossos interesses, as nossas mais generosas acções, até, sem darmos por isso, instinctivamente. Pois; se enganam, quantos alarmam que procedem movidos por pura nobreza de alma. Eu, porém, não quero enganál-o. Confesso que calculei. Mas, sempre quero que me diga, seria levando em vista o meu interesse pessoal? A mim, Pavel Alexandrovitch, que mais me será preciso? Vivi o meu seculo[2], calculei para bem d'ella, do meu anjo, da minha filha: e qual será a mãe que m'o lance em rosto?
As lagrimas inundavam o rosto de Maria Alexandrovna.
Pavel Alexandrovitch tem escutado com pasmo semelhante confissão: latejam-lhe as palpebras, esforça-se por comprehender.
—Qual seria a mãe, sim! diga lá!... pergunta elle, em conclusão.
Mas cae em si, acto continuo, e:
—Canta lindamente, Maria Alexandrovna, mas tinha-me dado a sua palavra, tinha-me alentado a esperança... Como posso eu supportar semelhante coisa? Terei que engulir a propria vergonha!
—E acredita talvez que não pensei no senhor, meu querido Pavel? Pelo contrario, em todos os meus calculos, o senhor tinha a sua parte. Ouso dizer, até, que foi por sua causa que eu emprehendi este negocio.
—Por minha causa! exclama Mozgliakov, desnorteado, d'esta vez. Como assim?!
—Meu Deus! Como é que se pode ser tão simples, ter vistas tão limitadas! exclama Maria Alexandrovna erguendo as mãos ao ceu. Esta mocidade! O tal Shakspeare! E ahi tem o que elle lhe arranjou, aquelle sonhador, aquelle phantasista! Viver da intelligencia e dos pensamentos alheios! E o senhor a perguntar—meu bom Pavel Alexandrovitch, qual é n'este caso o seu interesse. Para maior clareza, consinta-me uma leve digressão. A Zina ama-o, é incontestavel Mas tenho notado que, a despeito do seu manifesto amor, o caracter de Pavel Alexandrovitch, as suas aspirações lhe tem incutido uma tal ou qual desconfiança. Por vezes, e como que de caso pensado, contêm-se, é fria para com o senhor. Eis o resultado das reflexões que a levaram a desconfiar. Pois não reparou tambem n'isto que lhe estou dizendo, Pavel Alexandrovitch?
—Reparei, sim, hoje ainda. Mas que quer dizer com isso, Maria Alexandrovna?
—Bem vê, o senhor foi o proprio a reparar n'isso: logo, não me enganei. E acima de tudo, foi a estabilidade do seu caracter, a sua constancia o que mais duvidas lhe incutiu. Sou mãe, e não havia de conhecer o coração de minha filha! Ora imagine agora que, em vez de entrar aqui com exprobações, e até com injurias, em vez de a irritar, de a offender, de a melindrar, a ella tão bella, tão pura e soberba, e por esse facto, a despeito ainda da sua vontade, ir tornar-lhe mais firme a desconfiança com respeito ás suas inconstancias; supponha que acceitava com brandura a noticia, com lagrimas de magua, com desespero, até, mas com dignidade...
—Hum!
—Mau! Não me interrompa. Pavel Alexandrovitch. Quero expôr-lhe um quadro que possa ferir-lhe a imaginação. Ora imagine que ia ter com ella e lhe dizia: "Zina, amo-te mais que a propria vida, mas afastam-nos umas razões de familia. Comprehendo essas razões: trata-se da tua ventura e não me atrevo a insurgir-me contra ella. Perdôo-te, Zinaida; sê feliz se puderes!" E dito isto, lhe lançava uns olhos, uns olhos de cordeiro nas vascas da agonia, se me é licita a expressão. Ponha tudo isto na sua ideia e calcule o effeito que haveria produzido uma scena assim no coração della!
—Pois sim, Maria Alexandrovna, supponhamos tudo isso—É certo que eu podia ter me expressado d'esse modo... mas nem por isso deixaria de voltar pelo mesmo caminho com um não pelas ventas.
—Não, não, e não, meu amigo. Não me interrompa! Quero acabar de pintar-lhe o quadro para que no animo lhe produza uma impressão nobre e completa. Imagine, pois, que a vinha a encontrar; d'ahi a tempos, na alta sociedade, num baile illuminado à giorno, ao som de uma musica enebriante, no meio de um sem numero de beldades, e, no melhor da festa tão deslumbrante, o senhor, para alli, sósinho e triste, a scismar, pállido, encostado para alli, algures, a uma columna, mas de modo a dar nas vistas; o senhor a seguil-a com os olhos na vertigem da dansa; ao pé do senhor a vibrarem os divinos accordes de Strauss. Fuzila por todos os lados nas conversas o espirito da alta sociedade; e o senhor sósinho, enfiado, melancholico, immerso na propria paixão.
Considere—em que estado ficará a Zina quando o vir! E com que olhos o não ha de ella contemplar! "E eu," pensará ella, "que duvidei d'aquelle homem! Tudo me sacrificou! Despedaçou o proprio coração por minha causa!" Certamente, o seu amor de outr'óra resuscitar-lhe-hia lá dentro com força irresistivel.
Deteve-se Maria Alexandrovna para cobrar alento. Mozgliakov a barafustar na cadeira, que por pouco não estoira de todo. Maria Alexandrovna prosegue:
—A Zina, por causa da saude do principe, parte para o estrangeiro, para Italia ou para Hespanha, o paiz das murtas, dos limoeiros, do azulino céu do Guadalquivir, o país do amor, o país onde se não pode viver sem amar, onde as rosas e os beijos adejam por assim dizer no ar. E o senhor vae atrás d'ella, compromette a sua situação, as suas relações, tudo!... E principia então o seu romance de amor: amor, mocidade, Hespanha... Deus meu!... É certo que será platonico o seu amor, puro... mas o senhor... em summa, enlanguescem a contemplarem-se um ao outro... Espero que me haverá comprehendido, meu amigo?—Não faltarão, por lá, entes soêzes, vis, miseraveis para affirmar que não foi a lembrança do seu parentesco com o velho que o arrastou ao estrangeiro. Muito de proposito me referi ao platonismo do seu amor; não ignoro que haverá quem lhe atribua differente significação.
Mas sou mãe, Pavel Alexandrovitch e seria incapaz de o impellir para mau caminho!... É claro que o principe os não poderá vigiar a ambos; isso que importa, comtudo? Poder-se-ha fundar n'isso semelhante accusação?
Até que por fim, morre o principe abençoando o proprio destino. Ora diga-me quem é que depois ha de casar com a Zina, a não ser o senhor? É parente tão afastado do principe que o parentesco nunca poderia representar um impedimento ao consorcio. Acceita-a, joven, rica, princêsa, e em que ensejo? Quando os mais nobres senhores se poderiam ufanar da sua alliança! Por causa d'ella, entra na mais alta sociedade; obtêm um posto de summa importancia, promoções. Diz o senhor que dispõe de cento e cincoenta almas? Mas depois será rico. O principe não deixará de fazer um testamento nos termos, por isso lhe respondo eu. E em conclusão, o principal, é o ella estar segura dos seus sentimentos e o senhor vir a ser para ella um heroe pela virtude e pela abnegação. E ainda me pergunta, onde vae n'isto o seu interesse? Tem-n'o deante dos olhos, a contemplál-o, a rir-se para o senhor, e a dizer-lhe: "Aqui me tens!" Ora vamos, Pavel Alexandrovitch!...
—Maria Alexandrovna! exclama Pavel Alexandrovitch, a tudo fiquei percebendo, agora! Portei-me como homem grosseiro, vil, reles!...
Levanta-se com vivacidade e puxa pelos cabellos ás mancheias.
—E como homem inconsiderado, accrescenta Maria Alexandrovna, inconsiderado, eis o que o senhor é!
—Sou um asno, Maria Alexandrovna! exclamou com desespero o môço. E agora, está tudo perdido! E eu que a amava com loucura!
—É possivel que não esteja tudo perdido, declara Madame Moskalieva, baixinho, como quem está reflectindo.
—Ah! se fosse possivel! Ajude-me! aconselhe-me! Valha-me! E pôs-se a chorar o Mozgliakov.
—Meu amigo, diz em apiedada voz Maria Alexandrovna e estende-lhe a mão,—praticou esse seu acto no ardor do seu affecto, estava exasperado, nem sequer tinha consciencia do que fazia. E ella não deixará de o avaliar.
—Amo-a com loucura e estou prompto a sacrificar-lhe seja o que for! clama o Mozgliakov.
—Ora escute, justifica-lo-hei aos olhos d'ella.
—Maria Alexandrovna!
—Sim, fica tudo por minha conta: collocál-os-hei em presença um do outro. E o senhor diz-lhe tudo tal qual eu acabo de lh'o dizer.
—Ah! meu Deus! Que bondade a sua, Maria Alexandrovna!... Mas... não seria possivel procedermos a isso desde já?
—Deus nos defenda! Sempre é muito estouvado, meu amigo! Ella, então, que é tão soberba! Ia tomar isso como uma nova insolencia, um ultraje, até! Eu arranjarei tudo, e não ha de passar d'amanhã; agora, comtudo, vá se embora, vá até casa do tal negociante, ou para onde lhe apetecer... Ou, se, antes quer, volte esta noite, mas não serei eu que lh'o aconselhe.
—Vou m'embora! vou m'embora!
Meu Deus! Resuscitou-me! Mas uma pergunta, ainda: e se o principe não morre tão cedo?
—Valha-nos Deus! Sempre é muito ingenuo, meu caro Pavel! O senhor o que deve é rogar a Deus que conserve os dias d'aquelle vélhito, todo elle bondade, carinho, cavalheirismo! Devemos desejar-lhe longa vida, de todo o coração! E eu serei a primeira; noite e dia, com lagrimas, a rezar pela ventura de minha filha! Mas, ai de mim! A saude do principe, coitado, quer me parecer que está muito abalada! E demais, elle não deixará de fazer a sua visita á capital, de levar a Zina aos bailes, e receio muito, muito, acredite, que isso concorra a dar cabo d'elle! Orêmos, porém, meu caro Pavel, e quanto ao mais, entreguêmo-nos nas mãos de Deus! Espére, arme-se de paciencia, seja viril, e viril, acima de tudo! Nunca puz em duvida a nobreza dos seus sentimentos... Aperta-lhe com força as mãos, e o Mozgliakov sáe do aposento em bicos de pés.
—Até que em fim! Vi-me livre de um imbecil! diz com ares de triumpho. E agora vamos aos outros... Abre-se a porta e entra por ali dentro a Zina. Vem mais pallida do usual; fulgem-lhe os olhos com febril clarão.
—Mamã, veja se acaba com isto, que eu estou, que já nem posso mais; é tão nojento tudo isto que me vem tentações de fugir por ahi fora. Não me faça padecer por muito mais tempo, não me irrite! Este lodaçal causa-me engulho, entendeu?
—Zina, que tens tu, meu anjo?... Estiveste escutando á porta! exclama Maria Alexandrovna olhando de fito para a filha.
—Escutei, é verdade.—Veja se m'o quer lançar em rosto, como o fez aquelle imbecil? Juro-lhe que se porfiar em obrigar-me a representar semelhante papel em tão vergonhosa comedia, renuncío a tudo, e acabo com tudo, com uma só palavra. Não ha duvida que me resolvi a prestar-me á principal vilania, mas foi por me não conhecer a mim mesma; atabáfo com semelhante vergonha!
E sae atirando com a porta.
Maria Alexandrovna segue-a com a vista e fica a scismar.
"É andar ligeira, depressa! É de si que depende tudo, e em si que consiste o maior perigo, e se esses miseraveis porfiarem em se colligar contra nós, se principiam para ahi a dar á lingua, tudo está perdido! E ella não poderá resistir contra tantas arrelias e acabará por entregar-se mediante uma rejeição. Custe o que custar e sem demora, urge carregar para o campo com o principe. Prego commigo lá, n'um pulo, e carrégo com aquelle estafermo do senhor meu esposo para aqui. Sequer ao menos sirva para alguma coisa! E assim que o outro accordar, safamo-nos."
Toca a campainha.
—E então! a parêlha? pergunta ao creado que entra.
—Está prompta, ha que tempos, responde o criado.
(Maria Alexandrovna mandou pôr o trem no acto de acompanhar o principe ao quarto d'este.)
Veste-se á pressa e corre ao quarto da Zina para lhe transmitir o seu plano e dar-lhe as devidas instrucções. A Zina, comtudo, nem lhe quer dar ouvidos, debruçada no leito com o rosto enterrado no travesseiro ensopado de lagrimas; a arrancar com as niveas mãos os compridos cabellos; tem os braços nus até ao cotovêlo. Saccóde-a, a revézes, um estremeção. A mãe dirige-lhe a palavra, sem que a Zina consinta em erguer a cabeça.
Maria Alexandrovna insiste por instantes, depois, sae, inquietissima. Sobe para a carruagem e recommenda que espertem a parelha.
"O peor de tudo", vae ruminando comsigo, "é a Zina ter ouvido a conversa que eu tive com o Mozgliakov. Empreguei com ella e com elle quasi que os mesmos argumentos; ella é orgulhosa e offender-se-hia, talvez... Hum! o que a tudo sobreleva, é a necessidade de por mãos á obra, antes de que conste seja o que fôr! Que desgraça! E se eu, para mais ajuda, não fosse encontrar em casa aquelle meu imbecil?!"
Ante esta hypothese, enraivece-se, toma-se de um rancor que nada vaticina de bom para Aphanassi Matveich. E Maria Alexandrovna impaciente, a esfervilhar!
Os cavallos despedem a galope.