Desde as oito horas da manhã que corria pela cidade um boato inacreditavel. Repetia-o cada qual com maligno contentamento, conforme é da praxe sempre que se trata d'algum escandalo do qual foi victima qualquer pessoa d'amizade.
—Perder áquelle ponto a vergonha!
—Rebaixar-se daquella maneira!
—Arrostar assim com todas as conveniencias!
—Que costumes!
Eis o que succedera:
Logo de manhanzinha, ahi pelas sete horas, salvo erro, entrava em casa de Maria Alexandrovna uma pobre vélhita, afflictissima, a supplicar da aia que fosse quanto antes accordar a barichina[1], mas esta, tão sómente, ás escondidas de Maria Alexandrovna. A Zina, assustada, accudira desde logo. Cae-lhe de joelhos aos pés a velhota, aos beijos a elles, a inundar-lh'os de lagrimas, a exorar-lhe que venha ver o Vassia.
—Passou tão mal a noite! Suppõe-se até que não chega ao outro dia! Accrescenta a velha que foi o proprio Vassia quem manifestou desejos de tornar a ver a sua amada, antes de morrer; e supplica-lhe em nome do passado, e que, se ella se negar, morrerá no auge do desespero!
A Zina despede por ali fora, sem dizer nada á mãe. Vae de corrida até o extremo de um dos arrabaldes mais pobres de Mordassov. Ali, n'uma baiuca muito velha e escalavrada, á qual suprem as janelas umas como que ráchas abertas nas paredes, n'um cochichólo muito baixo de tecto e fedorento, meio atravancado com uma fornalha, jazia, em cima de uma camada de taboas, cobertas com uma enxerga, delgada que nem uma folha de papel, um môço, escondido debaixo de um capóte todo elle farrápos. Tinha livido e refegado o semblante, os olhos, a luzir com o fôgo da fébre, as mãos, seccas e transparentes. Quasi que nem respirar podia; era o estertor. Comquanto o houvesse desfigurado a doença, conservava retraços de formosura. Triste espectaculo, na verdade, aquelle rosto de tisico, do moribundo. A edosa mãe que, ainda hontem, acreditava na cura percebe finalmente que vae em breve ficar sósinha n'este mundo. Com os braços cruzados, olhos sêcos, para ali está, sem comprehender, sem poder desviar a vista de cima do enfermo, aniquilada, perseguida pela visão da cova, na terra fria do velho cemiterio atascado de neve.
Não olha para ella o Vassia, irradia-lhe no semblante a ventura: até que por fim vê aquella a quem, vae n'um anno, durante aquellas suas eternas noites de doente apenas viu em sonhos. Percebe que ella lhe perdoou, visto que veiu, visto que lhe aperta as mãos, visto que o contempla com aquelles seus lindos olhos, a chorar e a rir ao mesmo tempo. Resuscita de todo na alma do enfermo o passado: desperta-lhe dentro d'alma a vida como se quiséra tornar-lhe sensivel a que ponto é triste o ter que a deixar.
—Zina! Zinotchka! Não chores... não me estejas a lembrar que vou morrer... deixa-me contemplar-te, pensar que me perdoáste. Vou morrer sem pensar que morro, até, beijando-te as mãos... Estás tão magrinha, Zinotchka! Anjo querido, a bondade com que tu estás a olhar para mim! Lembras-te do gosto com que te rias, d'antes? Ai! Zina! Eu já nem sequer te peço perdão!... Nem quero lembrar-me do que aconteceu... eu é que m'o não perdôo, a mim proprio... E quanta noite sem poder dormir, Zina! Quanta noite não levei eu a pensar, a recordar-me, a estalar, quasi, com saudades!... É melhor que eu morra! Sou incapaz de viver, Zinotchka!
E a Zina, lavada em lagrimas, muda, a apertar nas suas as mãos do seu amado, como se quiséra arrancál-o á morte.
—Então, não chores! insistia o enfermo. Eu morrerei hoje, porventura? Se ha tanto tempo que está morta a felicidade! És mais intelligente e vales mais do que eu... bem sabes que valho menos do que tu, por que será que me tens amor? Bem sabes que te não mereço! Oh! quanto me não tem feito padecer semelhante pensamento! Ah! querido amor, foi um sonho a minha vida: não vivi, sonhei! E eu a desprezar a multidão: e que razões tinha eu para ser tão soberbo? A purêza do meu coração? A nobreza dos meus sentimentos? Mas se tudo isso tinha apenas a consistencia dos meus sonhos, nada mais, Zina!
—Basta! basta! Matas-me!
—Não me interrompas, Zina!... Perdoáste-me, bem sei: e ha já muito tempo, talvez, mas avaliáste-me e comprehendeste o que eu era, e é isso que me atormenta. Sou indigno do teu amor, Zina! Fôste sempre leal e generosa; fôste ter com tua mãe e declaraste-lhe o teu firme desejo de casar commigo, ou com mais ninguem: e cumpriste a palavra dada, pois que para ti, palavra e acção são uma e a mesma coisa! Ao passo que eu,... eu! Não sabes, eu até hoje não tinha comprehendido, sequer, a extensão toda do sacrificio que fazias em ser minha mulher. E lembrar-me eu de que tu, commigo, te arriscavas a morrer de fome! Mas se a mim parecia-me que nada ha n'este mundo que se compare á honra de ser esposa de um grande poeta... sem nome,... é certo! Não quiz intender o motivo que alegavas para retardar o nosso casamento. Tu a padeceres por minha causa, eu a martirizar-te, a exprobar-te, a desprezar-te... até que por fim te ameacei com aquella carta... Eu, n'esse instante, nem sequer cheguei a ser um miseravel, mas sim um ente abjecto, e nada mais! Ah! nem quero pensar até onde iria o teu desprezo! Não, não! É bom que eu morra! Obrigado por não haveres querido pertencer-me! Iriam correndo os annos, e quem sabe se eu afinal não viria a ver em ti um tropêço ao meu porvir. Sim, antes assim! E agora, o amargor das minhas lagrimas, sequer ao menos, purificou este meu coração. Ah! Zina! Concede-me um quinhão no teu amor, tão sómente, no teu amor de algum dia!—N'esta hora derradeira, sequer ao menos! Sou indigno do teu amor, bem o sei! mas... mas... mas... ai meu anjo!
E a Zina, desfeita em pranto, a escutar. Tentava interrompêl-o, elle porém, ia proseguindo... supplice, a gesticular, e aquella sua voz debil... abafada e sibilante,... fazia mal á Zina...
—Não me tiveras tu encontrado, e não me terias amado, e não morrias... disse a Zina. Ah! Oxalá nunca nos tivessemos encontrado!
—Não, meu amor, não! Não te estejas arguindo da minha morte! A culpa foi minha, e só minha! O amor proprio... o romantismo!... Nunca te contaram, Zina, a minha estupida historia? Existiu aqui, ha três annos, um prisioneiro, um miseravel, um ladrão. Mas no dia em que chegou o castigo, faltou-lhe o animo. Sabendo que não levam a justiçar um enfermo, alcançou uma garrafa de vinho, deitou-lhe de infusão tabaco e enguliu-o. Tomaram-n'o uns vomitos que duraram tanto que principiou a escarrar sangue e deu cabo dos pulmões. Levaram-n'o para o hospital e, d'ali a dias, morreu tisico. Pois bem! Occorreu-me á memoria esse ladrão, no dia em que se deu aquelle caso da carta... E resolvi acabar commigo da mesma maneira. E por que foi que eu, de proposito, escolhi a tisica? Por que foi que me não enforquei ou me não deitei a afogar? Seria porque me assustasse uma morte tão abrupta? Talvez; mas a mim quer-me parecer que concorreriam, e não pouco, para isso, as minhas ideias romanescas. Não me largava este pensamento: Que morte tão bella não será a minha, estirado como agora o estou, n'uma cama, com o estertor da tisica!... E tu, ao pé de mim, a lamentar-me, e a padecer com a ideia de que eras talvez a causa da minha doença! E eu a ver-te entrar por ali dentro, arrependida, ajoelhar á beira do meu leito... E eu a perdoar-te e a expirar nos teus braços!... Toleima, Zina, pois não era?
—Esquece-te de tudo isso, nem me tornes a falar das tuas culpas, que tu estás a exaggerar; lembrêmo-nos dos momentos ditosos, dos dias de ventura.
—Não m'o perdôo, meu amor, e é por isso que falo a semelhante respeito. Ha já dezoito mêses que te não via. Queria alliviar este meu coração! Durante esse tempo todo, eu para aqui, sósinho, e não houve um só instante, em que eu não pensasse em ti, meu amor. O que não desejaria eu fazer para reconquistar a tua estima? Até ao derradeiro instante não acreditei que morria; não me entreguei á cama desde logo, andei a pé, por muito tempo, com o peito escangalhado. E que sonhos tão ridiculos! Ás vezes suppunha ser um grande poeta e em vesperas de publicar um poema como ainda não tinha apparecido outro egual n'este mundo, que ninguem tivera genio para o escrever. E eu a pensar que me iriam n'elle todos os meus sentimentos, a minha alma, toda inteira, e que, d'este modo, me acharia sempre a teu lado, e que qualquer que fosse o sitio em que te encontrasses, os meus versos ir-te-hiam recordar a minha existencia, e o meu sonho unico era acreditar que tu em conclusão poderias dizer: "Não, elle a final não é tão mau como eu o suppunha". Toleima, Zina, toleima, pois não é?
—Não, não, Vassia, exclamava a Zina.
E debruçada sobre o peito d'elle, pôz-se-lhe aos beijos ás mãos.
—E o ciume! Como me atormentava o ciume durante esse tempo, todo! Eu, se tivesse ouvido falar no teu casamento, caía morto, redondamente!... E eu a vigiar-te, a espreitar-te... Era ella quem lá ia (apontando para a mãe). Tu nunca tiveste amor ao Mozgliakov, pois não é verdade? Ai! meu anjo! Lembrar-te-has tu de mim quando eu já não fôr d'este mundo? Lembras, sim, que eu bem sei! Mas os annos hão de ir passando, arrefecer-te-ha esse teu coração, o inverno ir-te-ha tomando posse da alma, e olvidar-me-has, Zina!...
—Não, não, nunca! E nunca me hei-de casar, tem a certeza!... Foste o meu primeiro amor e serás o derradeiro.
—Tudo morre, Zinotchka, tudo, até a propria recordação, até os mais nobres sentimentos. Dão logar a um certo raciocinio: frio, que acalma as saudades. Insurgirmo-nos, para quê? Trata de aproveitar a vida, ama, sê feliz. Ama um vivo! Para que serve o teu amor a um morto?—E comtudo, não me esquéças de todo! Tivémos horas atribuladas, é certo, mas quantos dias de tanta doçura? Ah!—Foram-se de uma vez para sempre!... Escuta,... amei sempre o pôr do sol... Oh! não!... morrer, por quê?... Ah! viver, viver! Lembra-te da primavera! Do sol! Tão lindo! Das flores! Vivemos por uns tempos n'uma festa! E agora, olha! Olha!
E o pobre enfermo a apontar com a mão diáfana o vidro empanado pela giada. Depois agarrou-se ás mãos da Zina e entrou a chorar com amargor. E os soluços a esfacelarem-lhe o já dilacerado peito.
E assim se passou todo o dia: A Zina a dizer-lhe que jamais o olvidaria, que a ninguem n'este mundo viria a dedicar amor egual áquelle que a elle lhe dedicára. E elle a acreditál-a, a sorrir-lhe, a beijar-lhe as mãos.
N'este meio tempo, Maria Alexandrovna, inquiéta, havia já mandado por mais de dez vezes indagar o que seria feito da Zina, a supplicar-lhe que voltasse para casa, que não acabasse de se desacreditar na publica opinião. Até que por fim, ao lusco fusco, resolveu-se, esparvoada de receio, a ir, em pessôa, em procura da filha. Exorou-lhe de joelhos; a Zina a ouvil-a sem a intender. Maria Alexandrovna saíu desesperada. A Zina estava decidida a passar a noite junto do moribundo. Não lhe largou da cabeceira. O estado do infermo ia peorando a olhos vistos: quando rompeu a madrugada, quasi que nem conservava sopro de vida. E não obstante, viveu ainda um dia inteiro. Porém, no momento em que o sol no occaso abrasáva as vidraças, exalou-se a alma com os ultimos raios.
Deu-se então horrivel scena. A edosa mãe abraçou-se com o corpo do filho, e, voltada para a Zina:
—Fôste tu que o deitaste a perder, maldita! clamou.
A Zina, porém, não ouvia coisa nenhuma; estava para ali, qual estatua insensivel, como se, a ella, a alma a tivera deixado tambem. Até que por fim, abaixou-se, fez sobre o defunto o signal da cruz, beijou-o na testa, e saíu do quarto.
Tão tremendas sensações, e aquellas duas noites de véla, quasi que a haviam enlouquecido de todo... e depois, sentia-se prestes a entrar em um novo viver, triste, ameaçador.
Não teria ainda andado dois passos, eis lhe surge na frente o Mozgliakov como se com elle se abrira o chão.
—Zinaida Aphanassievna, disse com timidez, rodando a vista para todos os lados, Zinaida Aphanassievna, sou um jumento; isto é, não é isto que... Se me dá licença, não serei um jumento, visto que procedi briozamente, apezar de todos os pezares... Mas lá que fui um jumento, fui... e estou mais que arrependido... Está-me a parecer que estou a meter os pés pelas mãos, Zinaida Aphanassievna. Perdoe-me, atendendo a este concurso de circunstancias...
E a Zinaida, inconsciente, a olhar para elle, e a seguir seu caminho, sem tugir. Como no passeio não houvesse logar para dois, Mozgliakov desceu para a calçada.
—Zinaida Aphanassievna—proseguiu o mancebo, se m'o consente, estou pronto a renovar o meu pedido, pronto a esquecer tudo, a perdoar-lhe—com uma condição:—Ficará tudo sendo segredo por emquanto. Ausenta-se d'esta terra o mais breve possivel, eu sigo atras, ás escondidas, casamos para ahi seja onde fôr, sem que ninguem dê por isso, e vamos para Petersburgo. E então! Que me diz? Consente, Zinaida Aphanassievna? Responda, depressa, por quem é! Não posso esperar; poderiamos ser vistos.
A Zina não respondeu: olhou para o Mozgliakov, tão somente, mas fêl-o, porém, de modo tal, que elle comprehendeu desde logo, cumprimentou-a e sumiu-se por detrás da primeira esquina.
"Ora esta! matutava; ella, ainda não haverá dois dias, a lançar em rosto a si propria as culpas todas, e agora!..."
N'este comenos, em Mordassov, precipitavam-se os acontecimentos.
O principe, acarretado pelo Mozgliakov para o hotel, n'aquella mesma noite caíu perigosamente enfermo. Os Mordassovenses só vieram a ser informados do caso ao romper do dia. Kalist Stanislavitch não largava a cabeceira do doente. Ao anoitecer, effectuou-se uma conferencia dos medicos todos de Mordassov. Os convites para comparencia eram redigidos em latim. E não obstante, a despeito do latim, o principe achava-se em estado de delirio, e tudo era pedir ao Kalist Stanislavitch que lhe cantasse uma certa romança, a fallar a respeito de chinó e bigode postiço e, de vez em vez, muito assustado, soltava uns berros. Concluiram os medicos que era uma inflammação do estomago, resultante do excesso de hospitalidade mordassovense, e que d'ali tinha passado á cabeça. Alegaram, tambem, não sei com que fundamentos, um tal qual abalo nervoso. E d'ahi, não se esqueceram de notar que o principe havia muito que manifestava predisposições para a morte e que, por conseguinte... está claro!—e que por conseguinte, morria. Esta ultima hypothese pareceu ter certo fundamento: o pobre do ginjinha expirou ao terceiro dia, ahi pelo anoitecer. Obito a tal ponto inesperado consternou Mordassov. Acudiram em chusmas ao hotel, discutiam, abanavam a cabeça, e concluiram acusando directamente "os assassinos do principe, coitado!" (aludindo assim a Maria Alexandrovna e á filha).
Concordava toda a gente em que tão escandalosa historia não deixaria de dar brado, e podia, até, "ir muito longe".
Mozgliakov nem sabia já que fazer á sua vida. A situação, effectivamente, antolhava-se perigosa. Não fôra elle quem accarretara com o principe para casa de Maria Alexandrovna? Não fôra elle tambem que carregara com elle para o hotel? Não sabia o que havia de fazer com o cadaver, onde o enterrar, a quem informar. E de mais a mais, como passava por ser sobrinho do principe, o seu medo todo era não se lembrassem de o accusar de ter morto o veneravel ancião.
Eis que de repente mudam as scenas. Uma bella manhã, chega á cidade um viajante, desconhecido. E Mordassov, em peso, pespegado á janella, a commentar o adventicio.
—O tal viajante era nem mais nem menos que o celebre principe Chtchepilov, parente do defunto, sujeito de seus trinta e cinco annos, usando dragonas de coronel e as agulhetas de ajudante de ordens. Aquella gran-cruz compenetrava de um respeitoso pavor a todos os tchinovnicks[2] do logar. O prefeito de policia por pouco não indoidece.
Em breve se veiu a saber que o principe vinha de S. Petersburgo e já havia passado por Dukhanovo. Não encontrando ali ninguem, viera seguindo as piugadas do principe até Mordassov, onde o surprehendera a fatal noticia. Tomou desde logo a tudo sobre si, e Mozgliakov retirou-se muito encolhido em presença do lidimo sobrinho.
O illustre defunto foi trasladado para o mosteiro. Ao outro dia, a cidade em peso congregou-se a ouvir a missa funeraria. Entre as senhoras, corria que Maria Alexandrovna compareceria em pessoa na egreja, para pedir perdão alto e bom som perante o caixão, em conformidade com as exigencias da lei. Escusado será dizer que tal Maria Alexandrovna não appareceu.
Fôra para o campo e levára a Zina, parecendo-lhe insustentavel a situação na cidade. Lá da sua aldeia, ia recolhendo com inquietação as atoardas e mandava tomar informações.
Do mosteiro a Dukhanovo, o caminho passava a uma versta das janellas de Maria Alexandrovna. Teve pois occasião de ver desfilar o prestito funebre. Atrás do féretro seguia uma longa cauda de trens. E por largo espaço, n'aquelle campo branco de neve, foi perfilando aquelle seu vulto negro, lento e majestoso, o carro melancólico.
D'ali a oito dias, Maria Alexandrovna, com a filha e Aphanassi Matveich, transferiu-se para Moscou. A aldeia e a casa foram postas em leilão.
E assim perdeu para sempre Mordassov uma senhora, o mais comme il faut possivel!
O caso não escapou a commentarios; nem faltou quem affirmasse que o Aphanassi Matveich se achava tambem á venda juntamente com a aldeia...
Rodou um anno, outro ainda, e ninguem tornou a falar em Maria Alexandrovna.
E comtudo, correu que havia adquirido outra aldeia em outro governo, e que outra capital de districto não tardaria em tremer entre as suas potentissimas mãos. A Zina estaria ainda á espera de noivo.
O Aphanassi Matveich...
Mas não nos tornemos éco de boatos sem fundamento. É falso tudo isso.
Já lá vão três annos desde que eu escrevi as linhas que acabaes de ler. Quem me diria que ainda havia de vir a folhear o manuscripto para lhe accrescentar ainda mais uma lauda?
Mas vamos ao facto:
Principiarei por Pavel Alexandrovitch Mozgliakov.
Ao ausentar-se de Mordassov, foi direitinho a Petersburgo, onde alcançou o logar que lhe andava prometido havia muito tempo. Não tardou em se lhe franquearem as portas da sociedade, infronhou-se n'umas intrigalhas, guindou-se ás alturas de espirito do século, tornou a apaixonar-se, renovou o seu pedido, voltou a apanhar um não pelas ventas, enguliu-o, e não podendo digeril-o, sollicitou o ser incorporado a uma expedição enviada a um dos cantos mais remotos d'este nosso paiz sem limites.
O corpo expedicionario transpôz sem novidade de maior florestas e desertos, alcançando a capital da longinqua região.
Foi acolhido pelo general-governador.
Era um homem magro e de semblante severo, um velho militar, ferido em diversas campanhas, condecorado com dois cráchás e com uma cruz branca. Convidou a todos os tchinovniks para um baile effectuado aquella mesma noite.
Pavel Alexandrovitch estava encantado. Envergara a sua casaca petersburguense, com a qual contava para produzir immenso effeito, e deu entrada nas salas nobres com modo desassombrado. Não tardou porém a perder o aprumo em presença de tanta dragona de cachos e de tanta farda enfeitada de commendas. Cumpria-lhe ir fazer a sua venia á esposa do governador, nóva, diziam, e formosissima. Aproxima-se, muito senhor de si,—mas—de subito,—escancara a bôca, e fica pregado ao chão, de assombrado. Com um sumptuoso vestido de baile, surge-lhe na frente a Zina, feraz, soberba, linda, e resplandecente de joias, toda ella. Nem conheceu o Pavel Alexandrovitch, os seus olhos nem se detiveram sequer no semblante de mancebo. Mozgliakov recuou e foi perder-se entre a turba-multa, e soube da bôca de um juvenil tchinovnick coisas interessantissimas.
Soube que o governador era casado ia já em dois annos, desde uma viagem que fizéra a Moscou. Desposara uma joven muito rica, de optima familia. A generala era muito soberba e só dansava com generaes, (havia nove no baile). A generala tem em sua companhia a mãe, senhora intelligentissima da mais alta aristocracia, mas que se submete á vontade da filha. E d'ahi, o general extasia-se tambem deante d'esta. Mozgliakov referia-se ao Aphanassi Matveich, mas n'aquella região remota ninguem dava noticia delle.
Um tanto restabelecido d'aquelle seu sobresalto, Mozgliakov deu uma volta pelas salas e lobrigou Maria Alexandrovna, vestida com singeleza e, muito animada, a falar com uma personagem graúda. Faziam-lhe cerco varias senhoras que lhe sollicitavam a boa sombra. Maria Alexandrovna era amavel com toda a gente.
Mozgliakov arriscou-se e foi-se-lhe apresentar. Maria Alexandrovna teve assim a modos de um estremeção, mas sopitou-se, acto-continuo. Dignou-se reconhecêl-o e pediu-lhe novas dos seus amigos de Petersburgo. A respeito de Mordassov, nem palavra e foi como se tal coisa não existisse, em conclusão, proferiu o nome de um qualquer principe estranho ao Mozgliakov, voltou-lhe as costas sem affectação, dirigindo-se a uma personagem graúda de cabello grisalho e aromatizado, e d'ali a instantes, dir-se-hia haver-se esquecido de todo de Pavel Alexandrovitch, que ficou para ali com cara de tolo, diante della. Mozgliakov, engatilhando um sorriso sarcastico, e de chapeu na mão, regressou para a sala nobre. Não sei dizer o motivo, mas considerava-se offendido e não se prestou a dansar. Nunca mais lhe desampararam o semblante quer uns ares tristes e de distracção quer um méfistofélico sorriso! Recovado em pinturesca atitude a uma columna, (parecia que de proposito, tinha columnas o salão), e toda a santa noite, horas a seguir, para ali se deixou estar no mesmo posto, a seguir com os olhos a Zina. Tempo perdido, infelizmente! Todas aquellas artimanhas, aquelles tregeitos todos, aquelles ares romanticos e de nimia decepção... etc... etc... nada lhe valeu... A Zina nem sequer deu fé da sua presença. Até que por fim, estafado, exasperado, com os pés dormentes em resultado da immobilidade, faminto, pois não tinha ceado a fim de melhor sustentar o seu papel de amante dolorido, recolheu para sua casa, derreado, abatido. E esteve a pé horas esquecidas, a matutar no passado... Logo no dia immediato, pediu transferencia e alcançou uma missão que o reconduziu a Petersburgo. Voltou a serenidade a entrar-lhe na alma assim que voltou costas á cidade. Lá ao longe, o espaço, o infinito, o deserto, a denegrida neve das florestas nos confins do horizonte. Ao som das patas dos cavallos a chofrarem, e a acompanharem o retinir e o telintar das campainhas. Pavel Alexandrovitch esteve pensativo, por instantes, mas depois, adormeceu muito socegado da sua vida.
Acordou na terceira muda, fresco, bem disposto, e a pensar noutra coisa.