Tenho-me encontrado muito com o Sr. Cesário, ultimamente. O Sr. Cesário, às doses espaçadas e discretas, faz bem. É desingurgitante, refrescativo, uma coisa assim entre o sal de frutas e sorvete de copinho. Mas, todos os dias, em todas as viagens, é demais.
Aquilo que, de quando em quando, e por momentos, nos encanta como um livro novo, folheado a furto, com a continuação se converte num símile dessas revistas atrasadas e revistas que se nos oferecem na sala de espera do dentista ou na loja do barbeiro.
Mas tudo tem o seu lado aproveitável. O lado aproveitável do Sr. Cesário é que ele me dá lições de estilo, do estilo estabilizado e conspícuo que convém às relações públicas entre funcionários e pessoas colocadas. Ele não é, mas devia ser diretor de uma repartição.
Fala como um bom minutador de ofícios. Tem a serena compenetração de autoridade, o senso das hierarquias, o tato diplomático, o respeito das fórmulas e a impersonalidade de julgamentos que se requer num chefe acabado. Por esse aspecto burocrático, o seu contato é útil. Boa pedra de amolar. O mau é que às vezes amola demais.
Que rico fundo de idéias honestas ele possui! Em poucos dias, assim como quem não se aplica, durante quinze ou vinte minutos de bonde, fiz uma boa coleta de opiniões do meu distinto amigo.
O que não lhe faltam são opiniões. O Sr. Cesário é um homem eminentemente opinativo sem contudo ser opiniático. Já houve mesmo um indivíduo maldoso, de cujo nome nem me quero lembrar, que uma vez mo definiu com escarninho intento, nestes termos: "um filho dileto da Opinião Pública."
O Sr. Cesário sentencia, por exemplo que "tudo nesta vida é questão de ponto de vista." Afirma, acentuando o tom de convicção, a corrigir a aparente leveza da frase paradoxal, que "o senso comum é o que há de menos comum entre os homens". Também costuma declarar, com um gesto fisionômico de aguda intuição, que "tudo é relativo".
Acerca de moral, só lhe ouvi por enquanto um conceito genérico nitidamente formulado: "Inteligência sem caráter é droga".
Sobre o Além, a vida e a morte, a crença, e assuntos correlatos, costuma ser mais explícito, provavelmente porque a sua situação de amigo do vigário da paróquia e de irmão do Santíssimo lhe tem permitido certa familiaridade com o mistério.
Concede que o Outro Mundo seja coisa duvidosa, mas acha que, em todo caso não convém brincar. A esperança e o temor que se ligam ao Além são necessários e são insubstituíveis.
O que lhe repugna é o inferno. Nesse, acredita "porque é seu dever de católico nato e praticante acatar as injunções da Igreja". Mas, afinal, o verdadeiro inferno parece que "e aqui mesmo" - "se bem que não se devam aceitar certos exageros de pessimismo".
Ontem, o Sr. Cesário saiu-se com esta frase: "Deixe falar, a religião é um freio, como dizia padre Miguel, meu padrinho."
As suas opiniões sociais e políticas são do mesmo feitio enxuto e corrente:
Todas as formas de governo são boas, desde que haja honestidade.
O nosso povo não estava preparado para a República.
Governar é uma questão de bom senso e de recursos.
É um grande mal a oposição sistemática.
Cada povo tem o governo que merece; mas nem sempre.
A política de hoje é eminentemente econômica.
A maior das nossas necessidades é a educação, - em termos.
O brasileiro é muito inteligente, mas indisciplinado e vadio.
Não há questão social no Brasil, pais novo, aberto a todas as iniciativas.
Somos um povo em formação.
A boa administração depende da estreita harmonia dos poderes.
A mulher deve permanecer no seu posto de rainha do lar.
A esmola deprime e nada adianta.
O empregomania e o bacharelismo são dois males nacionais.
A retórica é outro vício brasileiro.
A dissolução dos costumes caminha a passos de gigante.
O Brasil é uma terra de poetas.
A maior das nossas desgraças é a crise de caráter.
"A lavoura é a coluna mestra do nosso sistema arterial".
Ontem, acertou de falarmos a respeito de literatura, a propósito de um romance de Macedo, que Cesário me pedira emprestado. Declarou que não era para ele, mas para a senhora. Não gosta senão de romances históricos e instrutivos, como os de Júlio Verne e Vítor Hugo.
Passou a expender idéias sobre outros ramos. Não perde tempo com poesias, mesmo porque não as entende. Os dramas e tragédias já não são para os nossos dias; ninguém mais se resolve a ir ao teatro para ficar triste; e para tristezas bastam as da vida. O teatro deve ser humorístico e moral.
Os Lusíadas, a seu ver, foram feitos especialmente para exercícios de análise. A obra pode ser muito boa, mas para quem gosta. De resto, o Sr. Cesário está convencido de que todos os clássicos, que aliás nunca leu, são cacetes e intragáveis. Parece mesmo pensar que eles escreveram expressamente para deixar modelos de boa linguagem gramatical. E, um destes dias, exclamou com recacho de homem-do-seu-tempo: "Quais clássicos, quais nada! A língua também evolui, entendeu?"
Acha que a língua italiana é a mais suave, quando bem pronunciada; mas que a mais útil, na atualidade, é a inglesa. Quanto à nossa, acredita que seja a mais difícil de todas, a mais "cheia de dúvidas e encrenquinhas". Pois se o próprio Rui Barbosa, a "Águia de Haia", levou a vida inteira estudando português.
O que aí fica é resultado de uma colheita muito irregular, mas já basta a caracterizar as qualidades fundamentais deste sólido e harmonioso espírito.
Quanto às expressões, o Sr. Cesário tem todas, todas quantas se acham consagradas pelo gosto das classes respeitáveis.
Se fosse capaz dos trabalhos seguidos, regulares e minuciosos da Filologia, eu poderia tomar o meu amigo como um compêndio vivo das filtrações eruditas e literárias de segunda mão na mentalidade média da burguesia nacional, e explorá-lo metodicamente. Daria para um belo estudo de Psicologia Idiomática, cheio de conseqüências para o literato, para o glotologista, para o educador, e até para o alienista, - um belo estudo que, sem dúvida, não seria lido senão pelos indivíduos que a Providência destacasse para lhe meterem a lenha.
As expressões frias do Sr. Cesário são algo de suculento e de opíparo. Algumas, as menos repolhudas, as meãs, ele as profere com plena serenidade. Mas como aprecia igualmente as mais pomposas, sempre arranja lá um jeitinho de as empregar, soltando-as com um certo ar brincalhão ou irônico, que lhe dá por vezes o aspecto original de um homem que acha graça nas crepitações do próprio pensamento.
Já lhe apanhei, não há muito, sem lhe mexer nas molas, referências às "trevas da ignorância", ao "santuário do lar", ao "punhal da calúnia", à "máscara do anonimato" e ao "dédalo das paixões". Foi um dia em que estava impressionado com a onda de crimes, suicídios e pouca-vergonhas que por aí vai "num crescendo assustador". Falava com tal abundância e tal veemência, que cheguei quase a desconfiar que me tivesse na conta de um dos responsáveis.
De uns dias para cá, tenho subitamente guiado o fio e dado o tom à conversação, e o Sr. Cesário se desata em chuveiros de preciosidades.
A propósito de política, lançou zargunchadas certeiras aos "eternos descontentes", que "vivem a semear a cizânia" com seus "cantos de sereia". Mas também, por um estríqueto "dever de imparcialidade", não podia deixar de "verberar o impatriotismo de certos homens colocados no galarim, que transformam em vacas de leite os postos de sacrifício a eles confiados pelo povo, a eterna besta de carga".
Terminou resumindo-se numa sentida peroração:
"Enfim, meu caro amigo! é a tal crise de caráter.
"Mas que quer? Nem a majestade da religião escapa a esse referver de paixões subalternas! Até no seio das irmandades se intromete a politicagem rasteira! Até lá, indivíduos sem entranhas vão pondo a garra, com. pés de lã, e... Homem! paremos por aqui.
"O tempora!"
De onde pude inferir que o Sr. Cesário andava às voltas com algum desaguisado na paróquia.
A um espírito assim ricamente organizado não podia faltar um certo aparelho de erudição leve. Consegui os seguintes indícios, apanhados foneticamente, como convém a coisas pescadas nas águas vivas da elocução oral:
"Laborônia vince - Cosivá ilmondo - Senon évéro... - Lemondemarche - Arraite! - Tâimismónei - Savá sandire - Via crúcis - Tante grácie, cabalhero! - Por mares nunca dantes navegados - Festim de Baltazar - Ciumento como um Otelo - As trevas da Idade Média - Crueldade neroniana - Justiça imanente - Psicologia das multidões Os meio intelectuais - O poverélo de Assis - As lições da sociologia - A ciência de Ádan-Esmite - O último romântico - Os tonéis da Danaide - Vá derrétro!"
Enfim, grande caçador de frases perante o Eterno!