A pessoa era uma mulher; a mulher era a sra. Inácia.
— Onde vai você, Juca? disse ela.
José Cândido sentira alguma coisa semelhante a um trambolhão moral; sua alma caiu no chão. Sorriu, contudo, apertou a mão à sra. Inácia, perguntou como iam todos.
— Todos vão bem; a Emília é que...
— Que tem? doente?
— Não; mas anda aborrecida. Você onde vai?
— Para casa.
— Vamos lá à casa primeiro.
— Vamos.
A sra. Inácia morava perto; seguiram os dois, a falar de coisas indiferentes, ela atenta, ele distraído.
— Que é que você tem, Juca? disse repentinamente a sra. Inácia.
— Eu?
— Sim; você.
— Nada.
— É impossível. Noto que você anda há algum tempo distraído, meio aluado, falando pouco, assim não sei como...
— Reparou nisso? disse José Cândido com um ar de magnífica superioridade.
— Reparei. Que é?
José Cândido parou.
— Há coisas, disse ele, superiores ao entendimento de uma senhora. Em geral, as senhoras não pensam nos negócios públicos... Eu penso nos negócios públicos.
A sra. Inácia não entendeu; ficou a olhar para ele, alguns instantes. Depois disse:
— Mas você anda distraído.
— Por isso mesmo.
— Isso mesmo o quê?
José Cândido levantou os ombros.
— Falemos de outra coisa, disse ele; falemos de linhas e alfinetes. Onde comprou o seu xale?
— Na Rua do Carmo, explicou a sra. Inácia; não custou muito caro.
— Não?
— Dez mil-réis.
— Está bom! murmurou José Cândido com os olhos e o pensamento no eleitorado.
A sra. Inácia mordia-se de zanga; não tinha alcançado nada e queria saber tudo ou alguma coisa: 1º porque podia ser namoro, e ela afagava a idéia de casá-lo com a filha; 2º porque não queria perder a fama da sagacidade e jeito, que adquirira no bairro; 3º finalmente, porque tinha o olho em uma dúzia de xícaras que havia em casa do primo Mateus.
Três boas razões.
Estavam perto da casa dela; a sra. Inácia parou.
— Juca, vou pedir a você uma coisa.
— Diga.
— Você há de me dizer o que é que tem.
— Mas por quê? que tenho eu?
— Alguma coisa; você não anda bom.
José Cândido já não podia esconder o desdém que lhe causava o triste vulgo, e a pergunta da sra. Inácia encheu a medida de seu infinito desprezo. Contudo era preciso explicar-se.
— Se eu lhe dissesse o que tenho, a senhora não entendia...
— Isso agora!
— Não entendia; mas só lhe peço que acredite numa coisa; eu nunca hei de desprezar os meus; posso fazer até muito benefício, porque... enfim... a posição... a importância... Sim, um eleitor tem importância.
— Eleitor?
— Lá me escapou; sim, eleitor... não diga nada. Adeus!
E José Cândido estendeu-lhe a mão.
— Não vens ver as pequenas? perguntou a sra. Inácia.
— Vou, vamos.
Foram; as meninas fizeram muita festa ao primo; ele pôde falar a sós, um minuto, com Emília, que era uma rechonchuda como a mãe, e saiu daí a meia hora.
A sra. Inácia ficara consternada. Não chegara a entender o que José Cândido lhe dissera. A sra. Inácia era pouco mais inteligente do que os seus sapatos. Para entender as coisas era preciso que lhas dissessem com todas as letras, palavras, verbos e advérbios, tudo explicadinho, repetido, claro, transparente. As palavras de José Cândido não tinham para ela nem ligação nem explicação.
— Há alguma coisa, pensou ela; é preciso voltar à carga.
Não foi preciso. José Cândido contou-lhe tudo naquela mesma noite, sem pedido dela, mas de própria inspiração. Ele pensara na conveniência de ter alguém que, ao pé do pai, abrisse caminho ao pedido dos quatro ou seis contos de réis precisos para o cofre dos candidatos. Lembrou-se da sra. Inácia. Contou-lhe tudo, com muitas e repetidas explicações; depois disse o que queria.
— Cinco ou seis contos! exclamou a sra. Inácia pondo as mãos na cintura. Pois é preciso tanto dinheiro para isso?
— A senhora não entende de negócios públicos, disse José Cândido com certa bonomia e magnanimidade. Não me peça explicações; aceite o que lhe digo e ajude-me, ajude-me que é ajudar os seus, é a glória da família.
— Lá isso é! concordou a sra. Inácia para fazer crer que entendia uma coisa tão difícil que José Cândido dizia ser superior ao entendimento das mulheres.
E depois de um instante:
— Está certo de que seu pai ceda?
— Há de ceder.
— Só de pensar nisso, tremo!
— Não trema! Não lhe peça nada. Diga-lhe só que eu estou quase eleitor e preciso de cinco contos; que não me atrevo a pedi-los; que vivo aflito; que a glória da família está ameaçada...
— Espere, interrompeu velhacamente a sra. Inácia; para obrigá-lo mais, direi que a Emília ficou toda chorosa...
— A Emília... balbuciou José Cândido; mas...
— Anda lá! pensa que eu sou alguma tola? disse a sra. Inácia piscando os olhos.
José Cândido baixou os olhos pudicamente. A sra Inácia afiançou-lhe que não levava a mal seus sentimentos; chegava a aprová-los; talvez mesmo a aplaudi-los. José Cândido apertou-lhe as mãos, com certo ar, piscou um olho, e confirmou as suspeitas da sra. Inácia, de modo que ela viu luzir-lhe nas prateleiras toda a louça da casa do velho Mateus.
O velho Mateus teve dois sobressaltos quando a prima lhe falou do caso; uma de alegria, porque a idéia de ver o filho eleitor sempre lhe lisonjeava a vaidade; o outro de terror, quando ela lhe fez ver que seriam precisos alguns quatro ou seis contos de réis.
— Nunca! exclamou ele dando um murro no balcão.
Daí a um quarto de hora, tendo ouvido as palavras e rogativas da sra. Inácia, limitou-se a dizer, mas já sem murro:
— É muito dinheiro!
Foi nessa ocasião que José Cândido, que tudo escutava, entrou na loja. Estava pálido naturalmente; e artificialmente com o ar desvairado e as pernas bambas. Instou por sua vez; disse que era a glória da família, a honra própria, que os mais altos destinos podiam estar no fim da campanha eleitoral.
O velho Mateus resistiu.
Mas resiste-se um dia, não se resiste em outro; e cada sol traz uma mudança à alma do homem. O sr. Mateus não era avesso à ambição, ainda que fosse homem pacato. Verdadeiramente, ele não acreditava no eleitorado de José Cândido; mas este asseverou tanto, e ficou tão acabrunhado, falou de morrer, fez vários trejeitos mais, uns sinceros outros exagerados, que afinal o sr. Mateus prometeu um conto, depois dois, finalmente os quatro, e somente os quatro.
José Cândido cantou um Te Deus laudamum.