Bem sabemos que discutir ante a política brasileira problemas de moral equivale a implorar, em nome da humanidade, o carro de Jangernat, quando o ídolo oriental passa, esmagando sob as rodas as vítimas, que lhe atira a estupidez do fanatismo. Mas as mais abafadas atmosferas de conspiração nunca extinguiram a lâmpada da filosofia na cabeça dos moralistas. Sêneca filosofou, nos dias de Nero. Pois então filosofemos sem ser Sêneca e sem ter a Nero pela frente.

Perlustrando esse inquérito, com o privilégio de cuja leitura a polícia mimoseou as folhas bem-vistas na Central, e cujo conhecimento só à benevolência dos colegas devemos nós outros os malquistos com o corregedor d’el-rei-presidente, nada nos impressionou mais do que a felicidade singular, que vai dar ao Sr. Ministro da Justiça a glória de ter inventado alguma coisa, já que a fortuna de outros lhe roubou a invenção da palavra. Das outras vezes, em toda a parte, em todos os tempos, as conspirações se devassam pela infidelidade ou pela fraqueza dos que desertam a sua causa. Neste caso, porém, homens que a não fogem, que continuam a preconizá-la, que bizarreiam de resolvidos a recomeçar amanhã, são os que abrem à polícia, de par em par, o íntimo do segredo.

Militares, que prefeririam mil mortes a uma deslealdade, e, habituados a baratear a vida à boca dos canhões, gostosamente a da­riam pela vitória do plano, onde tinham a esperança do seu ideal, abriram a boca sem a mínima reserva, e deixaram cair a flux a história das culpas suas e alheias com a singeleza de quem, depois do triunfo, recompusesse entre amigos a crônica da maquinação vitoriosa, ou, malogrado o golpe, se divertisse com eles em enumerar já os perigos transpostos, já os mistérios discretamente guardados. Penitentes aos pés do confessor, não seriam tão ingênuos na crônica dos seus erros; porque aí é provável que à enumeração dos próprios se houvesse de limitar a mea culpa. Tudo por quê? A explicação por eles mesmos está dada. Porque o interrogador lhes apelou para a lealdade e a honra.

Ora, deveras, nunca se nos deparou na vida coisa mais digna de admiração e estudo. Se, com efeito, o inquiridor não zombava da honra e da lealdade, e os que a ele se renderam não caíram num laço armado pela astúcia ao brio, duas revoluções terá operado em benefício da estabilidade dos governos o nosso ministro da Justiça. Terá, primeiramente, acabado com as conspirações militares; não se podendo supor nem que militares faltem à honra, nem que conspirem, previamente certos de que ela no outro dia os obrigará a se entregarem ao governo, industriado no uso do específico irresistível aos conspiradores honestos. Terá, em segundo lugar, abolido virtualmente as conspirações civis, incompatibilizando com elas os homens de bem, que de certo prefeririam não conspirar, a incorrer, conspirando, no risco iminente de se verem entalados entre a inconfidência e a improbidade. Entregue, assim, pela honra à polícia o instrumento de abrir o latíbulo das conspirações, estaria praticamente firmada a equivalência entre elas e os crimes infamantes. Só canalhas, doravante, conspirariam. O antigo direito de revolução já não aliciaria as suas forças, senão nas mesmas regiões onde habita o furto, o estelionato e o roubo.

E toda essa mudança na face do universo político se teria consumado apenas com o modesto invento dessa chave de consciências, que aqui se acaba de experimentar. Aliás, não admira que, em tamanha preamar da honra, nos vejamos colhidos por ela de súbito com achados e maravilhas imprevistas.

Mas ponhamos a coisa em raciocínio. Ninguém pode sentir-se forçado a entregar em nome da honra aquilo que, em nome da honra, se comprometeu a guardar. Logo, se, descobrindo-se e descobrindo os seus comparsas, se, revelando a conspiração, os acusados obedeceram à honra, é que com ela não estavam, quando conspiraram. Porque, se conspirando, estavam com a honra, a lógica nos obriga a concluir que da honra se apartaram, desvendando a conspiração. Não se pode estar com a honra (porque a honra é unifronte) nos dois casos: celebrando um pacto e violando-o ao depois. Aliás, se é no conspirar que um homem está menos perto da lealdade, os que dela deslizaram, conspirando, já não poderiam ter, a esse respeito, a sensibilidade virginal dos imaculados.

Nisto se resume, pois, toda a questão: falta à honra, civil ou militar, o cidadão, que se conjura? Claro está que não iremos ventilar, nos estreitos limites desta coluna e entre as paixões deste momento, jurídica ou politicamente, a questão da legitimidade das conspirações. A necessidade sempre se incumbiu de resolvê-la. Entre os povos livres, as conspirações são tão impossíveis quão inúteis. Entre os outros, a liberdade ora se conquista pelos grandes maremotos do oceano popular, ora pelo trabalho subterrâneo dos precursores, dos Mazzinis, dos Garibaldis, às vezes até de mãos secretamente dadas com os Cavours e os Vítor Emanuéis. O autor destas linhas não conspirou senão uma vez, em toda a sua vida. Conspirou por quatro dias, em novembro de 1889. E não se felicita da experiência. Nunca mais conspirará, seja para o que for. Falará, e escreverá, enquanto puder. Depois descansará na consciência de ter dado à sua pátria o mais que podia. Não simpatiza, pois, absolutamente, com as conspirações. E dada a proverbial discrição dos nossos costumes, dificilmente as tomaria a sério. Mas, nem por isso vê nessas temeridades, ou nesses erros, quando os inspirar o sopro de uma aspiração generosa, o menor deslize do civismo e da honradez. Todos os grandes ensaios da liberdade no Brasil tiveram a colaboração das conspirações, ou delas nasceram. Conspirou o Rio de Janeiro em 1831. Conspirou o Rio Grande do Sul em 1835. Conspirou a Bahia em 1837. Conspiraram São Paulo e Minas em 1842. Conspirou Pernambuco em 1848. Por obra de uma conspiração caiu o primeiro imperador. Outra conspiração destronou o segundo. Em ambas elas predominou o elemento militar, fautor quase exclusivo da República atual.

Não concebemos, portanto, que um secretário do conspirador Campos Sales possa exigir em nome da honra, a inconfidência aos conspiradores de hoje. Em nome da lei, sim senhor: estava no seu direito, e era seu dever. Mas, em nome da honra, não compreendemos. Escorregou da honra o Sr. Campos Sales quando conspirava em 1889? Falsearam à honra todos esses nomes puríssimos, que a nossa história registra entre os conspiradores dos dois reinados? Desmereceram da honra os militares, que nesses movimentos se assinalaram? Dacaíram da honra os soldados e marinheiros de 15 de novembro e 6 de setembro? Extraviou-se da honra o general Mallet, indigitado conspirador contra o governo de 1893? Desgarrou da honra o almirante Wandenkolk, embarcando-se na aventura do Júpiter? Foram revéis à honra Benjamim Constant e Deodoro?

Pelo contrário, todos esses paisanos, todos esses soldados estavam persuadidos firmemente de que era a honra o que os impelia à sedição. Rompiam com a ordem constituída, por amor justamente da honra, que, bem ou mal, punham acima dela. Outro não foi por certo o sentir dos que agora se confessam conspiradores. Logo, à luz dos precedentes que os animaram, dos móveis que os impeliram, dos sentimentos que os resolveram, o que entre esses homens se tinha estipulado, no mistério dos seus encontros, era, precisamente, para eles, uma convenção de honra. Por homens de bem se reputavam; e, como tais, não confiaram uns nos outros, senão porque se julgavam preservados, pela lealdade comum a todos os sócios, de uma indiscrição fatal. E vai senão quando o mesmo vínculo que os ligara, os desliga; a lealdade que lhes selara a boca, a dessela; a honra, sobre a qual tinham jurado silêncio, lhes impõe a indiscrição. É inaudito.

Figuremos um caso pessoal ao autor destas linhas e ao Dr. Campos Sales. Suponhamos que, em 1889, no dia 11 de novembro, quando o redator do Diário de Notícias, convidado por Benjamim Constant para uma conferência, cujo objeto ignorava, com o general Deodoro, compareceu de noite à sua casa, no Campo de Sant’Ana, e encontrou ali, onde se lhe descobria a conspiração a rebentar, além daqueles dois militares, o general Sólon, o Sr. F. Glicério, Aristides Lobo e outros, a polícia, entrando de improviso, os detivesse a todos em flagrante de maquinação criminosa contra a existência da monarquia. Abria-se o inquérito policial. Interrogavam-se os indiciados. Demos caso que, nessa fase do processo, o conselheiro Cândido de Oliveira, ministro da Justiça, ou o Dr. Basson, chefe de Polícia, invocasse a honra dos acusados, exortando-os a confessarem. Podiam eles confessar? Tinham eles o direito de confessar? Deviam eles atestar a existência de uma conjuração, informar ao governo que ela se estendia a várias províncias, entre as quais a de S. Paulo, consignar que, em S. Paulo, entre outros cidadãos, envolvia o Dr. Campos Sales? E, se o Sr. Campos Sales, tendo já chegado aqui, houvesse caído conosco na tarrafa do Visconde de Ouro Preto, procederia assim com os seus associados ausentes? Evidentemente, se o fizesse, se o fizéssemos, sobre nós, sobre o Dr. Campos Sales recairiam as maldições republicanas, e para sempre na categoria dos Joaquins Silvérios ficariam inscritos os nossos nomes.

Pois, mutato nomine, de te fabula narratur.

Toda a vez que um homem está na posse de um segredo, confiado à sua custódia, sob a fé de um compromisso, em cuja transgressão periclitaria a vida, a liberdade, a reputação, ou a fortuna de outros, a observância do sigilo, que o reveste, é o primeiro dever da sua honra. Convidá-lo, sob a invocação da honra, a descumprir o dever, a que a honra o chumbou, é pôr a honra em conflito com a honra, e engendrar duas honras, para burlar com a segunda a primeira, com a mais nova a mais antiga.

Foi, portanto, com um sofisma que o Sr. Ministro da Justiça abriu a consciência aos oficiais, que se julgaram coagidos pelo brado da lealdade e da honra a entregar os seus cúmplices, ou confessar a conspiração. Depois, há uma lei de moralidade para o interrogador, a qual inquina de ilegítima toda coação, material ou moral, exercida sobre o espírito de um acusado, para lhe extorquir a confissão da culpa. Desde Voltaire e Beccaria se sabe que a tortura é ímpia e celerada. E, à medida que o sentimento jurídico se foi elevando no seu nível, se foi depurando na sua essência, a cultura do Direito entrou a reconhecer que, sem empregar o menor mal físico, se poderia atuar sobre o espírito do réu, presumidamente sempre inocen­te, com uma pressão tão maligna, tão irresistível, tão odiosa, como a dos tratos da roda, ou da polé. Nem menos condenável do que o constrangimento é o ardil, nessa função da autoridade. Por isso, na Inglaterra, em cuja constituição se inspiraram as garantias judiciá­rias da nossa, não se concebe o magistrado senão como o protetor da inocência, encarnada, por uma presunção necessária, na pessoa do acusado. Contra este o mais severo inimigo dos crimes não se arriscaria ali a tentar a mais leve captação, qualquer coisa que tivesse laivo de artifício. Até nos tribunais de polícia o investigador, quando procede ao interrogatório, começa por advertir o respondente de que meça as suas palavras, de que não impossibilite a sua defesa, de que nada o obriga a confessar, nada a auxiliar a acusação, nada a aliviá-la da prova, ônus exclusivo dela. Isso ainda nas espécies mais graves, nos delitos mais atrozes, em processos de crime estupendos, qual o de John Conway, justiçado como assassino e mutilador gratuito de uma pobre criança.

Disso bem sabe o nobre Sr. Epitácio Pessoa, doutor, professor de Direito, ministro da Justiça. E, contudo, não lhe remordeu a consciência de, em nome de um nobre sentimento, induzir capciosamente alguns moços valentes e briosos a ofendê-lo. O cálculo era bem feito. Devia acertar. Contou-se com a inexperiência, com a imprevisão, com a surpresa, com a altivez, com a sensibilidade militar. Presumiu-se que ao contacto de um apelo à dignidade profissional almas explosivas desfechariam espontaneamente, como uma arma ao estalar do fulminato. Foi bem escorvado o gatilho. O tiro não falhou. Resta saber a quem feriu.

Mas, como quer que seja, esperemos que o público, entre nós, não assimile esta aberração característica de um desgraçado paroxismo social; que continue a entender a honra à antiga, a crer na inviolabilidade dos sigilos, na santidade dos depósitos, no culto da fé empenhada, na religião da palavra. Não, não conspire o militar nunca, jamais. Não deve, não pode conspirar. O seu papel, inteiriço de legalidade e disciplina, consiste em obedecer aos superiores, seguir o governo regular, manter as instituições constitucionais, ser o instrumento legal, sem mescla de política ou partido. Uma conspiração debaixo da farda é o antagonismo vivo da profissão com o homem. Mas, se, por desvio lamentável, pecou contra o dever de ofício, não peque contra o de consciência. O segundo erro duplica, não neutraliza o outro. Se, voluntariamente, se constituiu depositário de um segredo funesto a outrem, sepul-te-o com a sua vida. O oficial, que duela, na Alemanha, está fora da lei, mas dentro da honra. O cristão, que dissimula com a polícia, por salvar o perseguido, que asilou, encobre a verdade com os lábios, para não faltar à piedade. O mártir, que confessa a Deus perante os altares da idolatria, caminha para o seu sacrifício. Mas não aparelha o dos irmãos.