O Dr. Belém foi fiel a este programa. Dali a mês pediu outra vez a mão da viúva, e teve a mesma recusa, mas talvez menos peremptória do que a primeira. Deixou passar seis semanas, e repetiu o pedido.
— Aceitou? disse eu apenas o vi vir da casa de D. Marcelina.
— Por que havia de recusar? Eu não lhe disse que me casava dentro de três meses?
— Mas então o senhor é um adivinho, um mágico?...
O doutor deu uma gargalhada, das que ele guardava para quando queria motejar de alguém ou de alguma coisa. Naquela ocasião o motejado era eu. Parece que não fiz boa cara porque o douto imediatamente ficou sério e abraçou-me dizendo:
— Oh! meu amigo, não desconfie! Conhece-me de hoje?
A ternura com que ele me disse estas palavras tornava-o outro homem. Já não tinha os tons sinistros do olhar nem a fala saccadée (vá o termo francês, não me ocorre agora o nosso) que era a sua fala característica. Abracei-o também, e falamos do casamento e da noiva.
O doutor estava alegre; apertava-me muitas vezes as mãos agradecendo-me a idéia que lhe dera; fazia seus planos de futuro. Tinha idéias de vir à corte, logo depois do casamento; aventurou a idéia de seguir para a Europa; mas apenas parecia assentado nisto, já pensava em não sair de Minas, e morrer ali, dizia ele, entre as suas montanhas.
— Já vejo que está perfeitamente noivo, disse eu; tem todos os traços característicos de um homem nas vésperas de casar.
— Parece-lhe?
— E é.
— De fato, gosto da noiva, disse ele com ar sério; é possível que eu morra antes dela; mas o mais provável é que ela morra primeiro. Nesse caso, juro desde já que irá o seu esqueleto fazer companhia ao outro.
A idéia do esqueleto fez-me estremecer. O doutor, ao dizer estas palavras, cravara os olhos no chão, profundamente absorto. Daí em diante a conversa foi menos alegre do que a princípio. Saí de lá desagradavelmente impressionado.
O casamento dentro de pouco tempo foi realidade. Ninguém queria acreditar nos seus olhos. Todos admiraram a coragem (era a palavra que diziam) da viúva Marcelina, que não recuava àquele grande sacrifício.
Sacrifício não era. A moça parecia contente e feliz. Os parabéns que lhe davam eram irônicos, mas ela os recebia com muito gosto e seriedade. O Tenente Soares não lhe deu os parabéns; estava furioso; escreveu-lhe um bilhete em que lhe dizia todas as coisas que em tais circunstâncias se podem dizer.
O casamento foi celebrado pouco depois do prazo que o Dr. Belém marcara na conversa que tivera comigo e que eu já referi. Foi um verdadeiro acontecimento na capital de Minas. Durante oito dias não se falava senão no caso impossível; afinal, passou a novidade, como todas as coisas deste mundo, e ninguém mais tratou dos noivos.
Fui jantar com eles no fim de uma semana; D. Marcelina parecia mais que nunca feliz; o Dr. Belém não o estava menos. Até parecia outro. A mulher começava a influir nele, sendo já uma das primeiras conseqüências a supressão da singular casaca. O doutor consentiu em vestir-se menos excentricamente.
— Veste-me como quiseres, dizia ele à mulher; o que não poderás fazer nunca é mudar-me a alma. Isso nunca.
— Nem quero.
— Nem podes.
Parecia que os dois estavam destinados a gozar uma eterna felicidade. No fim de um mês fui lá, e achei-a triste.
“Oh! disse eu comigo, cedo começam os arrufos.”
O doutor estava como sempre. Líamos então e comentávamos à nossa maneira o Fausto. Nesse dia pareceu-me o Dr. Belém mais perspicaz e engenhoso que nunca. Notei, entretanto, uma singular pretensão: um desejo de se parecer com Mefistófeles.
Aqui confesso que não pude deixar de rir.
— Doutor, disse eu, creio que o senhor abusa da amizade que lhe tenho para zombar comigo.
— Sim?
— Aproveita-se da opinião de excêntrico para me fazer crer que é o diabo...
Ouvindo esta última palavra, o doutor persignou-se todo, e foi a melhor afirmativa que me poderia fazer de que não ambicionava confundir-se com o personagem aludido. Sorriu-se depois benevolamente, tomou uma pitada e disse:
— Ilude-se meu amigo, quando me atribui semelhante idéia, do mesmo modo que se engana quando supõe que Mefistófeles é isso que diz.
— Essa agora!...
— Noutra ocasião lhe direi as minhas razões. Por agora vamos jantar.
— Obrigado. Devo ir jantar com meu cunhado. Mas, se me permite ficarei ainda algum tempo aqui lendo o seu Fausto.
O doutor não pôs objeção; eu era íntimo da casa. Saiu dali para a sala do jantar. Li ainda durante vinte minutos, findos os quais fechei o livro e fui despedir-me do Dr. Belém e sua senhora.
Caminhei por um corredor fora que ia ter à sala do jantar. Ouvia mover os pratos, mas nenhuma palavra soltavam os dois casados.
“O arrufo continua”, pensei eu.
Fui andando... Mas qual não foi a minha surpresa ao chegar à porta? O doutor estava de costas, não me podia ver. A mulher tinha os olhos no prato. Entre ele e ela, sentado numa cadeira vi o esqueleto. Estaquei aterrado e trêmulo. Que queria dizer aquilo? Perdia-me em conjeturas; cheguei a dar um passo para falar ao doutor, mas não me atrevi; voltei pelo mesmo caminho, peguei no chapéu, e deitei a correr pela rua fora.
Em casa de meu cunhado todos notaram os sinais de temor que eu ainda levava no rosto. Perguntaram-me se havia visto alguma alma do outro mundo. Respondi sorrindo que sim; mas nada contei do que acabava de presenciar.
Durante três dias não fui à casa do doutor. Era medo, não do esqueleto, mas do dono da casa, que se me afigurava ser um homem mau ou um homem doido. Todavia, ardia por saber a razão da presença do esqueleto na mesa do jantar. D. Marcelina podia dizer-me tudo; mas como indagaria isso dela, se o doutor estava quase sempre em casa?
No terceiro dia apareceu-me em casa o Doutor Belém.
— Três dias! disse ele, há já três dias que eu não tenho a fortuna de o ver. Onde anda? Está mal conosco?
— Tenho andado doente, respondi eu, sem saber o que dizia.
— E não me mandou dizer nada, ingrato! Já não é meu amigo.
A doçura destas palavras dissipou os meus escrúpulos. Era singular como aquele homem, que por certos hábitos, maneiras e idéias, e até pela expressão física, assustava a muita gente e dava azo às fantasias da superstição popular, era singular, repito, como me falava às vezes com uma meiguice incomparável e um tom patriarcalmente benévolo.
Conversamos um pouco e fui obrigado a acompanhá-lo à casa. A mulher ainda me pareceu triste, mas um pouco menos que da outra vez. Ele tratava-a com muita ternura e consideração, e ela se não respondia alegre, ao menos falava com igual meiguice.