Um dia, sob o governo de Luís Filipe, madrugara, cercado pela polícia, o modesto aposento da rue d’Enfer, onde se abrigava a maior glória viva da França. Chateaubriand desaconselhara energicamente à mãe de Henrique V a sua desastrosa aventura. Mas o seu nome, que enchia o legitimismo, ressoou por entre os depoimentos no processo intentado, por este motivo, a Berryer, tão inocente como ele, como ele oposto ao desembarque da Duquesa de Berry. A arte dos Fouchés e dos Vidocqs não perde tais ocasiões de exercer a sagacidade. Colher na cama o grande solitário devia ser para os esbirros do justo meio um desses esquisitos requintes de prazer, cujo sabor extasia os gulosos do arbítrio. Acordado por um fâmulo, o velho liberal pergunta ao chefe da esquadra de malsins que o cumprimentava polidamente, pelo sol e pela ordem legal. O sol ainda não nascera. Mas a lei estava satisfeita ao menos quanto ao mandado regular, que o agente exibiu ao intimado. Esse resíduo do caruncho jurídico estava bem com os atavismos de um trono, que não sabia romper inteiramente com a liberdade, para merecer o elogio de Lafayette, quando o recomendou, no berço, aos parisienses como a melhor das Repúblicas.

Lida a intimação regular, é Chateaubriand quem narra, “dirigindo-me ao respeitável chefe desses ladrões de homens e liberdades”. “Bem sabe o senhor”, lhe disse eu, “que não reconheço o seu governo, que protesto contra esta violência; mas, como não sou o mais forte, e nenhum desejo tenho de nos arrepelarmos um com o outro, segui-lo-ei.” É à presença de um juiz, não à de um funcionário administrativo, que o detido comparece. Não obstante, às perguntas do costume, nome, idade, residência, não se lhe obtém uma palavra. “Recusei responder e assinar o que quer que fosse, não reconhecendo a autoridade política de um governo, que não tinha por si nem o antigo direito hereditário, nem a eleição do povo, pois a França não fora consultada nem se reunira nenhum congresso nacional.”

Dessa atitude não houve meio de abalar aquela altivez. Em outras audiências se lhe leram, “em voz benigna, as pequenas acusações, que, devidamente provadas, fariam cortar-lhe a cabeça”. “Declarei de novo”, conta o glorioso mestre da monarquia constitucional em França, “que, não reconhecendo a ordem política existente, a nada responderia, nada assinaria, e que todas aquelas diligências eram escusadas.” Com essa inflexibilidade perdia a tramontana a justiça d’el-rei. “Percebi”, continua a voz de Além Túmulo, “que essa maneira de obrar enfuriava o santo homem. Quis raciocinar comigo. Não houve meio de levá-lo a compreender a diferença existente entre a ordem social e a ordem política. Eu me sujeitava, discorria eu, à primeira, por ser de direito natural: obediência às leis civis, militares e financeiras, às leis de polícia e ordem pública; mas não devia obediência ao direito político senão enquanto emanente da autoridade real consagrada pelos séculos, ou originário da soberania do povo. Tão bolônio, ou transviado não era eu, para acreditar que se tivesse convocado o povo, que o houvessem consultado, e que a ordem política estabelecida resultasse de uma decisão nacional. Se me instaurassem processo por furto, assassínio, incêndio, ou por quaisquer outros crimes e delitos sociais, eu responderia à justiça; mas, quando me moviam processo político, nada tinha que responder a uma autoridade, a quem, faltando o poder legal, não assistia o jus de interrogar-me.”

Eis como defende a sua consciência um homem que sabe onde a tem. Nem essa mudez desafiadora, porém, nem o estigma de usurpação irrogado à coroa em face dos seus tribunais os detiveram na confissão do erro cometido. Dias depois, o suspeito de conspiração volvia livre a casa, para escrever na suas Memórias: “De todos os governos, que, há 40 anos, se têm sucedido em França, só o de Filipe me alojou no paradeiro dos bandidos. Só ele pôs a mão na minha cabeça, respeitada até por um conquistador irritado. Napoleão ergueu o braço, e não feriu. E esta cólera por quê? Vou dizer-vos: porque me atrevo a protestar pelo direito contra o fato.” A majestade moral, em que não ousara tocar o cetro do senhor da Europa, não escapou ao guarda-chuva do Duque de Orléans.

Nesse exemplo bem se poderia confortar o Sr. Andrade Figueira, se um estóico necessitasse de conforto em exemplos humanos, se a sua alma não contivesse em si própria toda a força de si mesma. As duas culminâncias da dignidade humana emparelham entre si nos dois casos. Se uma se banha no clarão aureolar do gênio, bem pouco val o sol por estas alturas. A divina coroa das montanhas está na brancura da neve alpestre, na neve imaculada e inviolável. Quando o nosso olhar se perde nos alcantis do caráter, as mais soberbas obras intelectuais, os maiores portentos da arte se amesquinham em presença dessas espontaneidades erectas e inacessíveis do bem. Mais de um regímen tem atravessado o Sr. Andrade Figueira: o do Império, que não pouco sofreu da sua severidade, e o da espada, que o teve entre os conspiradores contra a sua ditadura. Nenhum lhe pôs as mãos. Cabe-lhe agora a sorte de ser desrespeitado pelo da poltroneria policial.

Parece que dos contrastes precisa o próprio Deus, para ensinar nas suas grandes lições. Sem o governo atual não teríamos esta página da vida do Sr. Andrade Figueira, o azáfama dos anãos de Liliput em torno dele, a projeção imensa do seu vulto na admiração nacional, o assédio da Rua Monte Alegre e essa petição de habeas-corpus, que é a verônica de um herói. Bravo! Quase que valeriam a pena todas as misérias da atualidade como preço da magnificência desta desforra.

Muito menos que Chateaubriand à realeza pede à República o nosso compatriota. Não exige que ela se regenere nas águas da soberania popular. Não lhe põe como condição de obediência a mudança à forma de governo. Não se nega a responder aos seus magistrados. Reclama apenas a observância da legalidade nas suas formas elementares: a ordem escrita e regular da autoridade competente. “Fora do terreno legal”, diz, “não há sacrifício, a que esteja disposto a se poupar. Não será fácil à polícia arrastá-lo à sua presença, por meios ilegais, vivo, ou morto: vivo, porque pode mais sobre os seus destinos que os caprichos de qualquer autoridade; morto, porque à sua família não seria disputado o direito de dar sepultura ao seu cadáver.”

Ah! tu falas esta linguagem, homem de outra terra e de outra era? Pois nós te ensinaremos. Doente estás. Qualquer médico te atestaria a enfermidade. Pensas, por isso, que a polícia se rebaixará, como os juízes nos casos mais comuns, comparecendo à tua casa, para te receber o depoimento, que nos não recusas? Pois agora o verás. Enfermo, ou são, te arrastaremos à Rua do Lavradio. Provarás assim a igualdade republicana. Até lá não te mexerás. Trancaremos as tuas portas aos de dentro e aos de fora. Se tens filhas no colégio, não lhes mandarás fato limpo. Se sentes fome, se tua família pretende alimentar-se, pão não terás, porque eu não quero. Nem os teus criados sairão, nem entrarão os fornecedores de víveres. Um destacamento numeroso, com a sua reserva de secretas, assegurar-me-á a execução deste regímen, até que a minha força triunfe.

É da estreiteza desse sítio, posto pela ressaca ao promontório, que o grito alado da lei voa dos cimos da honra aos cimos da justiça, nesse apelo soberbo, sublime à Corte de Apelação. Não sabemos se os não encontrará desertos, ou se não chegará tarde. Mas o espetáculo épico aí está, para os que sentem as grandezas morais. É o dessa aparição, que atravessa o presente como uma soberania desconhecida. Vem das eminências do passado. Vai para as eminências do futuro. Passa como uma sombra ofendida, no alto, sem roçar o chão, pela zona intermédia: a baixa, o alagadiço, o marnel. Sabem que é? É um homem, numa época de pigmeus e cobardes. É a firmeza, a convicção, a independência, numa crise de apostasia e servilismo.

Fica-lhe, pois, como um brasão o nome de obstinado. Devia ser assim. De obstinação deve ter o nome a consciência e a honestidade, a inteireza e o vigor, o patriotismo e o senso jurídico, a constância e a dignidade, numa quadra de organismos de gelatina e pós de sapatos.

Bem hajas tu, Milton, que escreveste para estas ocasiões, raras na vida dos povos perdidos, aquele solilóquio, ou aquela prece da solidariedade entre os fortes. “Se Deus verteu jamais no seio de alguém o amor estável da beleza moral, no meu seio o verteu. Onde quer que se me depare um homem superior à estima do vulgo, afoitando-se a aspirar, pelos seus sentimentos, pela sua linguagem, pelos seus atos, ao que a alta sabedoria das idades nos ensina de mais excelente, a esse homem me associo eu por uma espécie de aderência inevitável. Poder não há, no céu, ou na terra, que me possa tolher de contemplar com reverência e ternura aqueles, que se elevaram ao cume da dignidade e da virtude.”