Os meus leitores, se forem imparciais, hão de confessar, que nunca leram cena de tanto efeito, nem de interesse tão palpitante.

O sr. Dionísio, tirano interino, tipo de janota portoense (vide romances de Camilo Castelo Branco) vinha embuçado num capote de camelão. Ora sabido é, que todos os embuçados, mesmo em chales-mantas, são terríveis; mas os embuçados em capotes de camelão atingem as raias da sublimidade melodramática!

A vítima masculina é Eduardo Teixeira, que um defluxo, complicado por uma grande frialdade de pés, torna duplamente interessante aos olhos de todos os leitores compassivos.

A vítima feminina é D. Emília Guimarães, a qual, compreendendo a situação num abrir e fechar d'olhos, elevou-se rapidamente à altura do seu papel, caindoartisticamente em cima duma poltrona, à falta de confidente, a quem dissesse como nas tragédias clássicas:

Desmaiar vou! Recebe-me em teus braços.

— Então quem é bossenhoria?Que fazia o senhor neste quarto? perguntou o Sr. Dionísio, tirando o chapéu desabado dom gesto majestoso, e armando-se de luneta, à falta de punhal.

— Eu... senhor... eu, tornou Eduardo, convencido que era o irmão, e cônscio por conseguinte do direito que ele tinha para fazer a pergunta.

— Dionísio, juro-te que sou inocente, exclamou a menina Emília, levantando-se rapidamente, e correndo a ajoelhar-se aos pés do homem de capote de camelão, acredita-me Dionísio.

— Levantai-vos, senhora, vós não sois culpada; mas o infame sedutor.

— Oh! senhor eu não seduzi ninguém.

— Calai-vos.

— Dionísio, peço-te justiça, e não indulgência. Eu não traí os meus deveres, juro-o perante o céu, que estende sobre as nossas cabeças o seu manto azul, puro como a minha alma.

Exageração de metáfora. Sobre as suas cabeças estava apenas o teto, que nem era azul, nem puro; porque estava muito sujo das moscas.

— Pode acreditar o que sua irmã lhe diz, atalhou Eduardo, posso asseverar-lho debaixo da minha palavra de honra.

— Minha irmã? As filhas da casa de Val-de-Camellos portam-se dum modo mui diferente do desta menina, indigna mesmo de ostentar o nome honrado de seu pai, o sr. Bernardo Guimarães.

— Não lhe admito mais insultos, sr. Dionísio Antunes de Val-de-Camellos, tenho a honra de lhe apresentar meu marido, o sr. Eduardo Augusto d'Almeida Teixeira.

— Perdão, perdão, minha senhora, interrompeu com vivacidade o moço alferes, eu não hesitaria um momento em a chamar minha esposa, se devesse a V. Exa. uma reparação, mas não há coisa alguma que a isso se assemelhe, e, visto este senhor não ser seu irmão, vou ter com ele uma explicação mais corrente. Direi pois ao sr. Dionísio de Val-de-Camellos, que está perfeitamente equivocado a meu respeito. Esta senhora lhe explicará, se a isso quiser descer, o modo porque entrei no quarto dela. Poder-lhe-ia eu perguntar também o motivo porque veio cá meter o nariz. Contudo, dir-lhe-ei unicamente que não tenho que lhe dar satisfações, a não ser num sítio mais conveniente do que este a explicações da natureza, das que hão de ter lugar entre nós. O modo insolente com que me tratou a princípio, merece um a correção, e há de tê-la. Estou às suas ordens.

— Um duelo, e por minha causa, bradou Emília, despenteando-se e procurando arranjar um olhar desvairado, oh! não façais com que o sangue venha manchar as minhas vestes virginais.

— Vamos embora, sr. Dionísio.

— Vamos lá, respondeu o homem de capote de camelão, em tom um pouco menos arrogante.

— Suspendei! Dionísio, Sr. Eduardo, horror! Meu Deus, valei-me!

E desmaiou.

"Bravo!" - diria um espectador do teatro normal, entusiasta da Dama de S. Tropez.

Eu e o leitor aplaudimos silenciosamente, e vamos seguir os nossos dois heróis, que saíram pela janela, perdendo-se assim todo o efeito de uma saída solene pela porta de fundo, cujos batentes de papelão se abrissem de par em par.

Dionísio e Eduardo atravessaram o quintal silenciosos; chegando a uma portinha que deitava para a estrada, o Sr. de Val-de-Camellos tirou uma chave que trazia na algibeira, abriu a porta, e os dois contendores saíram.

— O sangue de um de nós há de ser hoje derramado, vociferou o ilustre janota do Porto, com tétrica entonação.

— Está dito; mas, a propósito, parece-me que não temos remédio senão jogar o soco; porque não temos armas, nem padrinhos, de sorte que o nosso duelo tem todas as condições d'irregularidade.

— Ora diga-me uma coisa, tornou Dionísio, descendo das regiões melodramáticas ao terreno das explicações prosaicas, isto não se poderia conciliar amigavelmente?

— Oh! homem, isso é impossível, o senhor descompôs-me atrozmente, abusando da identidade do seu nome com o do irmão d'Emília, e realmente eu não vim ao Minho para receber descomposturas.

— Oh! senhor, tenha paciência, a Emília gosta dessas cousas, e eu não tive remédio senão fazer aquela cena. Eu não tinha intenção ofensiva. Mas que relações tem o senhor com a rapariga?

— Um simples namorico.

— Olhe; tornou Dionísio coçando a cabeça, a D. Emília Guimarães é uma senhora muito estimável.

— Não duvido.

— Muito prendada!

— Apoiado.

— Formosíssima, continuou o sr. de Val-de-Camellos animando-se pouco a pouco.

— Pois não!

— Espirituosa! bradou o homem encaixando a luneta majestosamente no rubicundo nariz.

— Oh!

— Senhora, a quem amo delirantemente!

— Muitos parabéns, sr. Dionísio, muitos parabéns!

— Única mulher, que me pode tornar feliz.

— Oh! sr. Dionísio, não me comova!

— Adoro-a, senhor, adoro-a corno a uma estrela, que reluz nas trevas do meu viver.

— Bravo, ia-me arrancando lágrimas.

— E tem um dote de vinte contos de réis! concluiu o homem do capote de camelão com sublime expressão d'entusiasmo.

— Muito bem, sr. Dionísio, muito bem. Permita-me que o abrace. Que rasgos de sentimento! Comoveu-me profundamente. Foi o coração quem lhe ditou essas frases entusiásticas. Esse argumento dos vinte contos revela claramente a pureza dos seus sentimentos. Ó patriarcal Dionísio, cedo-vos Emília. Não serei eu quem vá perturbar a felicidade conjugal, tão solidamente baseada. O amor, fugindo das grandes cidades, vem, segundo vejo, aninhar-se à sombra de vinte contos nos corações desinteressados dos jovens provincianos. Sr. Dionísio Antunes de Val-de-Camellos, não servirei de obstáculo à sua felicidade. Adeus, seja venturoso!

— Oh! muito obrigado, generoso desconhecido! volveu Dionísio, que estava decididamente infectado de romanticismo sombrio.

— Amanhã parto para o Porto. Deixo-lhe o campo livre.

— Espero que me perdoe a involuntária ofensa.

— Não falemos nisso. O que lá vai, lá vai. Adeus.

— Adeus. Disponha do meu fraco préstimo.

Se os nossos dois amigos estivessem em Lisboa, tinham ido juntos a uma ceia no Mata, ceia, que (se eles fossem bem conhecedores dos costumes portugueses em matéria de duelo) deveriam ter encomendado antes do desafio.

Assim, Dionísio embuçou-se simplesmente no capote de camelão, e voltou para a cama, onde ressonou pacificamente o resto da noite, sonhando que tinha comprado, com o dote de Emília, uma junta de bois, e dois pedaços de terra, em que semeara milho, obtendo uma colheita formidável, e granjeando deste modo tal consideração em Santo Tirso, que tinha sido nomeado por unanimidade de votos... juiz eleito.

Eduardo meteu-se na cama, aqueceu os pés, transpirou muito, e no outro dia estava quase livre do defluxo teimoso, que o apoquentara tanto.

Apesar de ter tido a felicidade de se curar com rapidez, o nosso alferes, que era um rapaz prudente, jurou nunca mais ter namoro com raparigas românticas em noites de novembro!

V

Ainda que as intenções madrugadoras de Eduardo Teixeira fossem as mais sinceras deste mundo, passou segunda vez pelo desgosto de não assistir ao almoço da família. O nosso alferes chegou a convencer-se de que o almoços em Santo Tirso, como a tremendanos conventos dos monges negros, era lá por alta noite.

Quando entrou na sala achou a menina Emília sozinha sentada ao piano. O vestido branco, que tinha envergado apesar do intenso frio, o cabelo muito de propósito em desalinho, as olheiras, que suponho tinham origem idêntica à das do Silvestre da Silva, de Camilo Castelo Branco, mostravam que Emília se tinha caracterizado convenientemente para representar a última cena de um melodrama.

Quando viu Eduardo, levantou-se, e caminhou a encontrá-lo, hirta e vagarosa. O jovem oficial estacou à porta pasmado.

— Qual dos dois morreu? perguntou ela solene e lugubremente.

— Fui eu, minha senhora

Seguiu-se um curto silencio.

— O senhor está zombando de mim? tornou Emília.

— Não, minha senhora, estou respondendo à pergunta de V. Exa. Com efeito, morri para o seu amor, Sra D. Emília. Interroguei o meu coração, achei-o frio demais para sentir uma dessas paixões ardentes, que V. Exa deve inspirar. Não acontece o mesmo com Dionísio. Minha senhora, vim descobrir um vulcão em Santo Tirso, desmentindo por esta forma a geografia. Esse Vesúvio desconhecido é o coração do Sr. de Val-de-Camelos... Ontem os discursos de Dionísio, se não me aqueceram os pés, que tinha muito frios, como V. Exa sabe, pelo menos aqueceram-me... o coração.Na lava candente, que brotou espontânea do peito daquele jovem, acendi eu o lume pronto da generosidade. Entendi que devia aconselhá-la a visitar essa cratera de paixão. Asseguro-lhe que se há de abrasar. Digo-lho eu.

— Não zombe tanto de mim, sr. Eduardo. Se tive ligeiro namoro com esse rapaz, o amor verdadeiro, que sinto agora, dissipou completamente esse frívolo galanteio.

— Mas, minha senhora, V. Exa deve fazer a felicidade dum Dionísio. Atenda, por amor de Deus, à influência dos nomes nos destinos dos indivíduos. O nome de Dionísio dá logo a conhecer que o possuidor deve ter um caráter patriarcal. Ora casem, casem, meus pombinhos, tenham muitos filhos, e sejam muito felizes.

— Assim me despreza, sabendo que o amo!

— Não, minha senhora, não creia tal. Hei de ser sempre o maior dos seus admiradores.

— E mais nada?

— E de V. Exa o mais atento venerador.

— Ingrato, pérfido! Disse-lhe que o amava, menti-lhe, detesto-o!

E a romântica menina ia aproveitar a situação, e a proximidade duma poltrona para desmaiar, quando felizmente entraram as duas manas.

Acabados os comprimentos preliminares:

— Que pena tenho, minhas senhoras, de as ter conhecido, disse Eduardo; os momentos deliciosos, que aqui passei, servem apenas para tornar mais pungente a saudade, que me vai atormentar.

— Por que, deixa-nos? bradaram em coro as três provincianas.

— Sim, minhas senhoras, recebi ontem notícia de ter obtido passagem para um regimento da capital, de forma que hoje mesmo tenciono partir para o Porto.

— Partir, quem fala aqui em partir? bradou o sr. Bernardo que entrava nesse instante.

— Eu, sr. Guimarães, replicou Eduardo, que, depois de lhe agradecer imenso o modo amabilíssimo com que me recebeu, lhe peço agora as suas ordens para o Porto e para Lisboa.

— Mas por que não se demora pelo menos alguns dias?

— Sou militar, sr. Guimarães, e devo cumprir à risca a ordem que recebi.

— Esta é que eu não esperava!

— Ingrato, e eu amava-o tanto, murmurou Emília, recostando-se na poltrona.

— Então, minha senhora, cá fica Dionísio para a consolar. É um belo rapaz, dum caráter excelente, e com alguma aplicação pode-se tornar-se um herói de romance. Dê-lhe V. Exa vinagre todos os dias, e receite-lhe uma dose forte de Visconde d'Arlincourti e verá como faz do sr. de Val-de-Camellos um rapaz ideal. Vou para Lisboa formar votos pela sua felicidade.

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Nessa mesma tarde, Eduardo Teixeira empoleirado no seu fiel rocinante, dizia adeus a Santo Tirso, depois de ter aturado uma cena patética de despedida, tal como a poderia imaginar o mais lamuriento autor de melodramas.

O sr. Dionísio Antunes de Val-de-Camelos, veio com grato coração, e com um jumento chibante, em que montara, acompanhar o nosso herói à Travage; onde se despedia de Eduardo, protestando-lhe eterno agradecimento, e amizade constante.

Dionísio Antunes continua serenamente o namoro com Emília, sujeitando-se contudo a uma dieta rigorosa, a ver se abate um pouco a sua nutrição anti-romântica.

O sr. Temudo cada vez embirra mais com o D. Jaime; e quando, em doces colóquios amorosos com D. Belizária Guimarães, interrompe a conversação íntima para falar da depravação do século, cita o enredo do D. Jaime, e vela o rosto pudicamente com uma toalha de mãos. Belizária sorve com indignação uma pitada de simonte.

Eduardo Teixeira, diz-nos pessoa fidedigna, que passa bem de saúde, sendo contudo muito sujeito a ataques de nervos, que o assaltam sempre que ouve... um piano!...