O teatro em Portugal vai acabando. Por dois motivos. Primeiramente pelo abaixamento geral do espírito e da inteligência entre nós: e depois pelas condições industriais e económicas dos teatros.
Esta verdade ressalta dos próprios cartazes. O Ginásio, o Príncipe Real, a Rua dos Condes, dão comédias traduzidas dos velhos repertórios estrangeiros, ou dramalhões alinhavados exclusivamente para a estulta plebe (como diziam nossos avós), complicados de incêndios, naufrágios, desabamentos, maravilhas baratas de velho cartão, entre cenários desbotados. - Somente acontece que as comédias estrangeiras, concebidas para a fina interpretação de actores educados, encontram aqui uma interpretação grosseira e falta de ofício - e não podem interessar: e os dramalhões, que vivem apenas dos esplendores da decoração, encontrando aqui telas roídas da humidade, fatos de paninho remendado, um papelão apodrecido, uma miséria que os apaga e os apelintra - não podem atrair. Portanto estes teatros arrastam uma vida difícil.
A Trindade encetou a ópera cómica. Mas naturalmente, com a legítima urgência do ganho, começou pelos melhores autores da escola francesa - Offenbach, Hervé,Lecoq, etc. Fatigou este repertório galante, espremeu a quantidade de libras que ele continha - e, como as óperas cómicas não se parecem com as ostras, que quanto mais se procuram mais abundam, sucede que a Trindade está nas condições de um preso que devorou a sua ração. A Trindade não tem que dar a um público enfastiado que pede música acessível, e facilmente gorjeada. Precisa recorrer a zarzuelas que não oferecem a cintilação alegre da verve francesa, se apresentam com ambições de arte italiana, e descontentam. Além disso o repertório estrangeiro é feito pelas boas vozes, educadas, criadas nos conservatórios, formadas pelo gosto e pela tradição dos teatros especiais. De sorte que a Trindade necessita escolher operetas que possam facilmente atravessar as estreitas gargantas nacionais; e no vasto repertório estrangeiro tem de preferir as operetas fáceis, as «de meia garganta)), as operetas constipadas. Fica assim reduzido o número a cinco ou seis imbróglios espanhóis, debilmente instrumentados, a que a Trindade se vai amparando como a muletas provisórias. Opera cómica nacional, essa, não a temos; o nosso cérebro é impotente para a criação musical; a raça ficou esgotada com o esforço violento que fez inventando o lundum da Figueira. As nossas óperas são os hinos. Ora a Trindade não poderia fazer facilmente representar o hino da Carta. A Carta, bem basta que a suportemos em código, não devemos sofrê-la em couplet. Seria tão impudico como sapateá-la em danças. E verdade que não pareceria estranhável que a Carta passasse a ser uma ópera cómica, num país em que as instituições são tiradas do Barba Azul e da Grã-Duquesa.
D. Maria é a jangada da Medusa da arte nacional. Aí sobrenadam, num esforço heróico, os restos da velha geração artista. Actores de vontade e de talento, um director excelente - lutam com a escassez da literatura, com a inércia do público, com as dificuldades económicas. E verdadeiramente uma jangada - admirável pelo esforço, incompleta pela organização: boa para lutar, imperfeita para navegar.
S. Carlos, esse, chilreia.
Esta decadência deplorável tem causas diferentes:
A primeira é a própria literatura dramática. Os escritores retraíram-se inteiramente do teatro. Não por o ganho ser diminuto, como se diz, porque no jornal e no livro o ganho não seduz com cintilações de montes de ouro. A principal razão está no feitio da nossa inteligência. O Português não tem génio dramático, nunca o teve, mesmo entre as passadas gerações literárias, hoje clássicas. A nossa literatura de teatro toda se reduz ao Frei Luís de Sousa. De resto, possuímos dois tipos de dramas, que constantemente se reproduzem: o drama sentimental e bem escrito, de belas imagens, ode dialogada, em que unia personagem lança frases soberbamente floridas, o outro retruca em períodos sonoros e melódicos - e a acção torna-se assim um tiroteio de prosas ajanotadas: o drama de efeito, com o que se chama finais de acto, lances bruscos, um embuçado que aparece, uma mãe que se revela:
— Ah! Céus! E ele! Matei meu filho! Oh!»
Acresce a isto a farsa com os velhos motivos de pilhéria lusitana, o empurrão, o tombo, a matrona bulhenta, o general de barrete de dormir, etc. E é tudo! Sentimentos, caracteres solidamente desenhados, costumes bem postos em relevo, tipos finamente analisados, estudos sociais concretizados numa acção, a natureza, a realidade, a observação da vida - isso encontra-se ainda menos num drama do que numa corrida de touros.
Outra causa de decadência: o público. O público vai ao teatro passar a noite. O teatro entre nós não é uma curiosidade de espírito, é um ócio de sociedade. O lisboeta, em lugar de salões, que não há - toma uma cadeira de plateia, que se vende. Põe a melhor gravata, as senhoras penteiam-se, e é uma sala, uma soirée, um raout, ou mais nacionalmente uma assembleia. Com esta grande vantagem sobre um salão: - não se conversa. Conversar para o Português constitui unia dificuldade, um transe: é o Cabo das Tormentas dos modernos Lusíadas. Conversar, entreter, mover o alado e fino batalhão das ideias, todo o português imagina que esta maravilha só se pode dar nos romances de franco. Daí vem para o português elegante o hábito de se encostar nas salas, à ombreira da porta, com aspecto fatal. Conversar! os homens tremem e as senhoras empalidecem. No teatro há a vantagem de que se pode mostrar a toilette, namorar, passar a noite - e não se conversa. Em Portugal ninguém recebe e ninguém é recebido, porque não há dinheiro, não há sociabilidade, e antes de tudo preferimos o doce egoísmo aferrolhado e trancado do cada um em sua casa. O teatro é a substituição barata do salão. Salão calado - e comprado no bilheteiro. De resto o teatro favorece o namoro, que é o entretenimento querido do português e da portuguesa correlativa. De facto o teatro é o centro do namoro nacional. O que se passa pois no palco torna-se secundário. Requer-se apenas uma certa moralidade física: - que se não dêem beliscões nas ingénuas. A moral do drama, da acção, dos sentimentos não se percebe ou não se exige. Um beijo que estala sobressalta, um adultério que se idealiza encanta. Uma das condições é que as actrizes se vistam bem, com modas novas, para que nos camarotes as senhoras observem, discutam as rendas, as sedas, as jóias e as toilettes. Um director de teatro não é pois escrupuloso com o seu espectáculo: alguém bem vestido que fale e dê um pretexto para a luz do lustre - é o que basta. Sobretudo aos domingos. Então o mundo comercial e burguês, que repousa e se diverte, enche a sala. Se se der Hamlet, vai, se se der Manuel Mendes Enxúndia, vai. Não é a beleza do espectáculo que o chama - é o tédio da casa que o repele.
Outro motivo de decadência: os actores. Os actores em geral são maus, com excepção de 4 ou 5 individualidades inteligentes e estudiosas que progridem. São maus - não tanto por incapacidade própria, como pelas condições do seu destino. Eles desgraçadamente em Portugal não pertencem a uma arte, pertencem a um ofício. Que hão-de fazer? - Não têm estudos, nem escola, nem incentivo, nem ordenados, nem público. São actores como outros são empregados públicos; recitam prosa à luz do gás, num palco, como outros expedem ofícios numa sala abafada. Questão de ganhar um ordenado, de se sustentar, de se vestir! A arte, o estudo entram aqui numa proporção ínfima. O artista que, pelo precário estado da sua arte, tem de pensar em comer (quando não é extraordinariamente dotado, porque então a necessidade retempera-lhe a habilidade), torna-se fatalmente um homem de ofício que necessita ganhar; em tal caso o pintor ilustra almanaques, o escultor faz jarras de porcelana, o poeta redige notícias, o actor atabalhoa papéis. Os nossos grandes actores, Santos, Rosa, além da sua organização artística, formaram-se quando o teatro normal (pelo seu regulamento) os punha ao abrigo da luta da vida, e lhes dava os grandes vagares do estudo. No meio da oscilação das empresas, das quebras de companhias, da dispersão dos centros dramáticos - o artista não pode ter os nobres vagares necessários à cultura artística. As dificuldades da vida embaraçam as preocupações da inteligência.
Outro motivo da decadência dos teatros: a pobreza geral. Não há dinheiro. Lisboa é uma terra de empregados públicos. A carestia da vida, os altos alugueres, o preço do fato, uma certa necessidade de representação que domina a gente de Lisboa, tudo isto deixa a bolsa cansada, incapaz de teatros. O teatro é caro. Uma noite de teatro pode levar a uma família 3$000 réis de camarote, 1$500 de luvas, 1$500 de carruagem no Inverno - ao todo 6$000 réis. 6$000 é a quinta parte de muitos rendimentos mensais - da pluralidade dos rendimentos. Por consequência a afluência aos teatros é pequena. Naturalmente, com a sala deserta, o cofre do teatro não se enche. Daí dívidas, complicações, e falências.
Tal é o perfil do estado geral dos nossos teatros, a largos traços.
Perante esta situação ocorre naturalmente esta pergunta: qual é a atitude do Estado, respectivamente aos teatros?
É esta:
O Governo não dá nada aos teatros nacionais;
E dá 25 contos a S. Carlos!
Ora que o Governo nos responda: - «É o Governo obrigado a auxiliar e a subsidiar a arte teatral?»
— Não. - Então para que dá subsídio a S. Carlos?
— É. - Então para que deixa sem subsídio o teatro nacional?
Se o Governo entende que deve abandonar à indústria, à iniciativa particular, à concorrência, à espontânea acção das vocações, a arte dramática - para que faz uma excepção ao teatro italiano, protegendo-o?
Se o Governo entende que deve auxiliar a arte teatral, como um elemento poderoso de civilização e de cultura moral - então para que faz uma excepção ao teatro português, desamparando-o?
Que o Governo pois se decida:
Ou se declara indiferente e desinteressado em questões de teatro - e então fecha igualmente os seus cofres aos galãs e aos tenores;
Ou se declara responsável pelo desenvolvimento deste progresso intelectual - e então dá um subsídio ao teatro nacional.
Nós não temos opinião. Compreendemos igualmente o Governo protegendo o teatro com subsídios, ou o Governo deixando o teatro à iniciativa industrial e literária.
O que condenamos, e toda a pessoa sensata o condenará connosco, é que, com uma lógica torpemente offenbáquica, o Governo diga:
— Eu nada tenho com a arte teatral, e por consequência dou 25 contos ao teatro italiano.
Ou diga:
— Eu sou o protector da arte teatral, e por consequência pretendo que o teatro nacional se feche de penúria.
Ora a verdade é esta:
O teatro nacional é uma necessidade inteligente e moral - e o teatro italiano é uma inutilidade sentimental e luxuosa.
Quais seriam as vantagens de um teatro normal?
O teatro normal seria a criação de uma literatura dramática, isto é, o enriquecimento do nosso património intelectual - educação permanente no presente, elemento histórico para o futuro. Porque o drama hoje, como toda a obra de arte, tem dois alcances: pelos sentimentos, ideias, costumes, instituições contemporâneas que estuda e critica, é no seu tempo uma lição para o critério - e no futuro um documento para a história.
O teatro normal seria a fundação de uma escola de actores, como a Comédia Francesa, fortemente educada, conservando uma tradição, formando discípulos, centro vital das artes teatrais.
O teatro normal seria o deperecimento providencial das pequenas comédias eróticas, que constituem a aguardente moral das pessoas que não vão à taberna; das mágicas que não passam de um mau acompanhamento da digestão e de uma escola de embrutecimento; dos dramas sentimentais que servem para excitar os sentidos da bur-guesia casada, e formam uma espécie de comunicação cómoda com o vício sem se descer de um camarote! Seria um constante apelo da atenção às coisas do espírito; a subtracção de uma população ociosa e enfastiada às casas de jogo e aos lupanares clássicos; uma influência perdurável, penetrante e subtil nos costumes; uma forte educação pela imaginação; enfim um elemento sadio na nossa vida, insubstituível e indispensável, porque prende com o que uma cidade tem de mais definitivo e de mais determinante - a sua inteligência e a sua moral.
O teatro normal não seria um regalo exclusivo de Lisboa; faria participar todo o
País no desenvolvimento da sua arte. Os actores formados aqui iriam constituir pequenos e bons conjuntos teatrais na província; e em certos meses a companhia-modelo visitaria Porto, Braga, Coimbra, Viseu, as principais cidades, levando ao público o encanto do seu repertório superior e aos artistas os exemplos da sua arte perfeita.
Isto seria, a largos traços, o teatro normal.
O teatro de S. Carlos o que é? o que faz? Não aumenta decerto o nosso património literário. Faz apenas a popularização da velha escola italiana de música sensualista, arte de que nada resulta para o País, senão alguns duetos que as donzelas beliscam ao piano, ou que os sinos tilintam ao levantar da hóstia! Que educação se tira da Traviata expirante, ou do imbecil Trovador que corre a salvá-la?
O teatro de S. Carlos não forma bons actores nacionais. Bem ao contrário! É uma fábrica de reputações para os artistas estrangeiros. Gastamos dinheiro, nós! para que o Sr. Fulanini vá ganhar mais dinheiro para Sampetersburgo ou para Covent Garden, ele!
O teatro de S. Carlos não constitui um elemento de civilização, mas de decadência. Se alguma coisa debilita o carácter e enfraquece o espírito - é a influência da música italiana, sentimental, amorosa, langorosa, mórbida. Uma ópera é um lupanar. Cada dueto, cada alegro, uma excitação erótica. Imagine-se uma menina ouvindo durante um ano aquela ladainha de sensualidades que se chama - Lúcia, Norma, Traviata, Maria de Rohan, Favorita, Baile de Máscaras, etc.? O adultério idealizado, o amor como a coisa superior e única da existência, o dever considerado burguês, a honestidade mal portée; e toda aquela moral suspirada, gemida, arrastada na dilacerante agonia da rabeca, assobiada irritantemente na flauta, modulada aereamente na harpa, soluçada de um soluço inteiro pelo demónio invisível que habita o violoncelo, tornada acre e triunfante nos instrumentos de metal, roncada no rabecão; e sobre esta massa de voluptuosidade instrumentada, as adúlteras, os galãs, os amorosos, todo um mundo melodioso e devasso, que geme, arqueia os braços, se torce nos êxtases da paixão, entra pelas portas das alcovas, semeia tudo de beijos, e morre de amor, romanescamente, numa ária dolente! Ah! nós não somos bárbaros. Estimamos a música. Meyerbeer, Gluck, Mozart, Beethoven, são verdadeiros pensadores. Mas S. Carlos canta-os? De modo nenhum, a não ser de dois em dois anos Meyerbeer a fugir e a fingir. De resto Donizetti, Bellini, todos os sensualistas! Ora aqueles, respeitamo-los como ideias que cantam - estes detestamo-los como erotismos que arrulham.
O teatro de S. Carlos não dá participação a todo o País da sua arte. Bem ao contrário, é um teatro exclusivo, de um público limitado, escolhido, sempre igual. O
País paga para que este público goze. Para que nós tenhamos árias, comem os lavradores sardinhas!
Enfim, nem criação de uma arte, nem formação de artistas, nem elemento de civilização, nem interesse geral do País.
Para que serve S. Carlos? É um luxo, dirão. Sim, compreendemos... Mas é ao menos, realmente, S. Carlos um teatro elegante, um centro belo e fino de vida rica?
Ah! por Deus, não! Começa logo pela mise-en-scène. Fora algumas belas telas de Rambois e Cinnati, cada vez mais raras, que mise-en-scène! Tome-se para exemplo o D. Carlos: fatos remendados torpemente, bastidores roídos da traça, uma velha mesa carunchosa onde o tirano se apoia... Os coristas agrupados a um canto, na escassez do seu número, elas com os braços nus mal lavados, eles com as botas enlameadas, soltam, num gesto dormente, uma voz por onde têm passado todas as pateadas desde 1836 - o que lhe fez perder a frescura. Nos camarotes, o veludo dos parapeitos, aos farrapos, deixa sair uma clina fétida: o papel está esgaçado, as fechaduras quebradas. Uma iluminação funerária entenebrece a sala; os velhos dourados sujos têm o aspecto melancólico de adornos de capelas antigas; os brancos rivalizam com rostos de carvoeiros. Os corredores, com os tapetes comidos dos ratos, fofos de pó, uma luz soturna e abafada, lembram o cárcere, o portal de casa de jogo. Na superior, cadeiras de palhinha áspera raspam como uma navalha de barba o pano das casacas; e o chão tem tanto asseio que os frequentadores, antes de saírem para a rua, limpam os pés nos capachos por compaixão com os varredores. Na geral bancos estreitos, como de réus, ouriçam a sua palhinha quase podre. No peristilo escuro há lama. As senhoras esperam, ao pé dos municipais formados, o chegar dos trens, expostas a um vento frio que toma aquelas paragens piores que a serra da Estrela!
Tudo aquilo é pequeno, provinciano, plebeu, e pelintra!
Não queremos acusar a empresa, não! Companhia comercial, está na lógica da sua acção. E ao mesmo tempo esforça-se, é evidente, por mostrar aqui as belas vozes, as ricas organizações musicais. Além disso ela não é culpada de que o teatro nacional pereça de penúria; nem é culpada de que a música seja, na civilização de um País, uma inutilidade sentimental. Também não construiu o teatro: recebeu-o assim do Governo; não tem obrigação de o pintar, nem de o forrar, nem de o dourar, nem de o tapetar. Como companhia comercial o seu único dever imprescritível, perante o júri comercial - é não falir.
Outro tanto não sucede ao Governo. Esse, no seu saco, não reúne uma única razão para subsidiar S. Carlos. Nem há ali um elemento de civilização, nem um centro de arte nacional, nem uma escola de artistas, nem um aproveitamento geral do País!
Não é também um centro de luxo, um orgulho de capital rica, uma maravilha da vida amplamente gozada. É um velho chique pelintra. E o Governo dá-lhe vinte e cinco contos - para o continuar a ser.
Diz-se que o Governo tem uma razão suprema para sustentar S. Carlos: - é que S.
Carlos Constitui uma distracção para a corte e para a diplomacia.
Quanto à corte... A corte sente a necessidade impreterível de se distrair? Excelentemente! Que pague e subsidie S. Carlos; que o ilumine, o forre, o tapete à sua custa; que dê por cada camarote 20$000 réis por noite, por cada stalle 4$000 réis; que o frequente com ardor, que durma lá, e que seja feliz. Ora que o País pague, não, corte respeitada e amada, não! Que eu, ele, nós, vós, eles, deitemos no erário dinheiro para tu te divertires, não, corte reluzente e maravilhosa! Perdoa, mas, como diria Cipião, não possuirás, ingrata, as nossas placas de 500 réis. A preocupação do País não é precisamente evitar que a corte boceje. Vinte e cinco contos anuais é prodigioso - para que a corte tenha onde passar a noite! Que a corte se distraia a si mesma. E o que faz cada um. A corte pode muito bem entreter a sua noite jogando as damas, ou lendo o Panorama. A corte ainda não leu o Panorama? Ah! pois aí está. Não imagina que fonte de distracções! A corte quer teatro? Que vá ao Salitre! Passa-se muito bem, a 1$500 cada camarote. A corte pode ali gozar a sua soirée regaladinha, e ir depois tomar sossegadamente o seu chá. De resto se a corte se distrai à nossa custa - então devemos intervir nos seus divertimentos. Se temos de pagar a iluminação, os cantores, as rabecas - que nos seja dado o direito de dispor e regularizar os seus prazeres. O poder moderador não poderá mais ir a S. Carlos sem pedir licença à opinião pública. E a opinião pública ficará no seu legítimo direito de responder: «Não senhor, o poderzinho moderador fica hoje em casa: ontem o poder foi ao teatro, hoje vai estudar a sua política: e nada de choramigar, senão ferramo-lo no quarto escuro!»
E quanto à diplomacia, não nos parece que o País tenha obrigação de a distrair. Os seus governos e os seus reis que a distraiam! Os srs. diplomatas que comprem soldadinhos de chumbo, ou que frequentem o Martinho! De resto a diplomacia é bem audaciosa em pretender divertir-se! Intenta ela estabelecer uma excepção insultuosa aos costumes nacionais? Aqui ninguém se diverte! Suas Ex.as estão extremamente enganados; vieram talvez para Portugal por equívoco! Tudo, entre nós, é grave. Quem vem para aqui é para a bela melancolia! Nós não gostamos de nos rir. Somos, de profissão, tétricos! Havíamos de nos rir, não era mau, e tanta tristeza por essa história atrás, e o pobre D. Sebastião nas areias de África, e o infame domínio de Castela, e outros lutos tão amargurados!... Nós trazemos na alma os crepes da nossa história. Dia e noite soluçamos, à beira do Tejo. A Lusitânia não é lugar de troça. Se VV. Exª se querem divertir e rir, tenham a bondade de ir para Mabille - ou pelo menos para Badajoz!
Perdoem estas longas páginas. A questão dos teatros tem uma importância pública. O Governo comete o contra-senso de subsidiar um teatro estrangeiro que é de luxo, e deixa ao abandono o teatro nacional que é de necessidade. O luxo que se sustente pelo luxo. S. Carlos sem subsídio que eleve os seus preços. Camarotes a três ou quatro libras, cadeiras a libra. Se ninguém quiser, que se feche S. Carlos. São algumas árias de menos num palco, e alguma economia mais nas famílias. O teatro nacional que tenha um subsídio, se torne uma escola, um centro de arte, um elemento de cultura. Só isto é o senso, a verdade e a dignidade.