Setembro 1871.
História é a consciência escrita da humanidade», disse um homem, que teve, quando lutava, o segredo das palavras que ficam.
Nós podemos pois dizer, comezinhamente, que a história dos Açores é a consciência escrita dos Açores.
Ora sucede que entre o passado Governo de S. M. e o Sr. Sena Freitas se trocou este contrato:
O País daria ao Sr. Sena Freitas 600$000 réis por ano, bom metal: por outro lado o
Sr. Sena Freitas encarregar-se-ia de pôr em letra redonda, com boa ortografia, prosódia sã, e pontuação certa, a dita consciência dos Açores.
Mal o contrato foi assinado, estalou sobre toda a linha de gazetas uma argumentação indignada. Acusava-se o ministro, escarnecia-se o contrato, estranhava-se o historiador, condenava-se a história - e os mais rudemente batidos eram os 600$000 réis.
Como se diria na Bíblia, o escândalo veio pelos fariseus!
Pois bem, para este contrato, nós só temos bênçãos e flores. E a plebe irreflectida pode ladrar em vão!
Ouvi cá, homens de estreita fé! Se o Sr. Sena Freitas se tivesse decidido espontaneamente, gratuitamente, a escrever a história dos Açores, que garantia dava ele de fazer um trabalho de poderosa crítica? Que garantia dava de compor mesmo um livro minucioso, erudito, cheio de factos, beneditino? O Sr. Freitas dava apenas a garantia do seu espírito. Mas ai! o espírito dormita, sofre obscurecimentos, caduca - e aí ficava estragada a história dos nossos bem-amados Açores.
Ouvi mais! Se o Sr. Sena Freitas tivesse sido encarregado por este decreto:
«Manda el-Rei que o Sr. Sena Freitas seja um grande historiador...»que garantias dava o
Sr. Sena Freitas de que havia de criar uma obra original e profunda? O Sr. Freitas dava só a garantia da sua obediência ao seu Rei. Mas ai! ai! a obediência aos reis pode fazer concessões - ou piruetas. Que amanhã, quod Deus avertat, se proclamasse a República
— e vós ficaríeis sem história e sem Freitas, ó Açores.
E agora respondei! Preso por um contrato, ligado por uma escritura, não dá o Sr.
Sena Freitas a garantia suprema, a garantia da sua honra? Obrigou-se por um contrato a ser um grande historiador, tem portanto toda a sua dignidade empenhada em ser - um grande historiador!
Podia S. Exª, por exemplo, não possuir outra aptidão senão escrever folhetins; podia não dispor de crítica, nem de método; podia não fazer ideia do que é a ciência histórica e a filosofia da história; podia não ter elevação de pensamento, nem estudos especiais; podia não ter estilo nem gramática - embora! Estamos descansados.
S. Exª obrigou-se por um contrato a ser um grande historiador: S. Exª é um homem honrado: S. Exª será um historiador grande! Acreditamos em S. Exª.
Conhecemos S. Exª. Se S. Exª houvesse contratado com o Sr. Ávila que seria, a 600$000 réis por ano, um poeta maior que Vítor Hugo, S. Exª (temos a inteira certeza), trabalharia, lutaria, compraria um dicionário de rimas, consultaria o Sr. Vidal, mas seria um poeta maior que Vítor Hugo. Se S. Exª tivesse contratado ser um candeeiro do
Rossio, S. Exª cumpriria com valor o seu contrato - e seria um nobre candeeiro do
Rossio!
Sua Exª contratou! A fé jurídica não admite conciliações. Sempre queríamos ver agora que S. Exª se atrevesse a não ser um grande historiador! Em Portugal há tribunais.
Nós seguiremos o trabalho de S. Exª, página por página, e quando S. Exª não for admirável, como crítica, como ciência, como forma, requeremos à Boa Hora: - «Que, em virtude do contrato de tantos de tal, seja o Sr. Sena Freitas citado para, no prazo de vinte e quatro horas, ser sublime a páginas tantas da sua obra sobre os Açores!»
O contrato não foi escrito e registado para que os Açores tenham um historiador medíocre!
Sobre o Sr. Sena Freitas pesa desde hoje a responsabilidade de ser sublime. S. Exªé um rapaz inteligente e espirituoso. Não basta, tem de ser um grande homem!
Contratou para isso, tem de o ser! Cara alegre e espírito desafogado! É para ali!
Ah! queria talvez ganhar 600$000 réis e não ter o trabalho de ser um historiador como Michelet! Há-de sê-lo! Já não lhe é permitida a obscuridade, nem a mediocridade!
Queira ou não, tem forçosamente de ser um génio! Nem uma só vez mais na vida lhe é concedido o doce desafogo de não ter gramática! Há-de ser maior que Guizot, arranje as coisas como quiser! E se recuar, se se eximir, se hesitar, a Boa Hora lá está que, de contrato em punho, e brandindo as contas do processo, o obrigará à força - a ser um homem imortal!
Em Portugal só assim se podem alcançar grandes homens! É obrigá-los por um contrato. Ah! se o Governo tivesse contratado com o senhor A que ele fosse, a tanto por mês, um dramaturgo maior que Shakespeare - não teria o País a vergonha de confessar que o Sr. A é um dramaturgo inferior a Guilbert de Pixerecourt! Se o Governo tivesse contratado com o senhor B, que ele fosse um homem de Estado como Pitt - não passava a Pátria pelo vexame de ver que o senhor B e, como político, ainda inferior a Sancho
Pança, rei de Baratária! Que significa, num país culto, abandonar assim os homens à sua iniciativa? Que intento é este de deixar a cada um a liberdade de ser medíocre? O
Português só poderá ser inteligente obrigado por um contrato, forçado pelos tremendos laços da lei, amarrado de pés e mãos!
Que o talento seja imposto como o serviço militar! Recrutem-se soldados para
Caçadores 5, mas recrutem-se também génios para Vila Nova de Gaia! Porque não temos um poeta épico? Que faz o Governo? Quer desleixar a epopeia, como desleixa a fazenda? A Pátria precisa de grandes homens - fulminem-se penas severíssimas a quem não for grande homem!
É forçoso confessá-lo! O País está embrutecido, mas a culpa vem dos poderes públicos. Que se decrete que todo o cidadão válido deve ao seu país, além da décima - um soneto! Que todo aquele que tenha de mostrar documentos, seja adstrito a apresentar, além da ressalva e da folha corrida - um artigo de almanaque! Haja o génio obrigatório! E o País florescerá, e poderemos definitivamente esperar que em Mato
Grosso comece enfim a fazer impressão - a grande civilização lusitana!