MANOEL QUENTINO PROCURA DISTRACÇÕES
O dia 1.º de abril de 1855 caíu ao domingo.
Mencionamos esta circumstancia, cuja exactidão o leitor póde, se quizer, verificar; porque não foi ella insignificante para os destinos das differentes pessoas, entre as quaes vae travada a acção da historia que escrevemos.
São estas cousas justamente as que tão falliveis tornam as previsões humanas; do facto ligeiro e pêco rebentam ás vezes taes e tantos successos estupendos, que não só revolucionam a sorte de um homem, mas até a dos imperios.
Como a referida circumstancia não se realisaria, se não fossem os annos bissextos, segue-se que, por tal facto, a sorte dos que figuram n'esta narração ficou ligada a não menos graúdas; personagens do que Julio Cesar e Gregorio XIII, que foram os que, em épocas successivas, regularam n'este ponto o kalendario, tal como hoje está.
Feita esta reflexão de philosophia da historia, prosigamos.
Sendo domingo, jantou Manoel Quentino mais cêdo, e, como visse de tarde que a tristeza da filha se não dissipava, insistiu com esta para que não ficasse em casa. Lembrou-lhe uma visita a Jenny. Cecilia acolheu o alvitre com repugnancia visivel.
Um sentimento de delicadeza obstava-lhe a que procurasse a sua amiga mais intima. Na mesma casa, em que ella vivia, vivia Carlos tambem, e eu julgo que o leitor terá percebido, sem que eu lh'o tenha dito, que não era já o filho de Mr. Whitestone uma pessoa indifferente para Cecilia.
Manoel Quentino instou porém com a filha para que saísse «a tomar ar e distrahir»—dizia elle—e pediu isto de maneira, que Cecilia resolveu fazer-lhe a vontade, indo visitar as filhas do major Mattos, que moravam algumas casas acima da sua.
—Vae, vae;—disse Manoel Quentino—sempre te distrahirás mais com ellas, do que ficando toda esta santa tarde commigo.
—E então o pae ha de ficar só?
—Eu... eu estou bem assim...
—Isso é que não—replicou Cecilia—irei, se me promette que vae dar um passeio tambem.
—Pois sim, sim. Tudo se ha de arranjar. Lá por isso não seja a duvida.
—Mas então vista-se.
—Deixa-me descansar.
—Eu não saio, sem o ver saír.
Manoel Quentino foi obrigado a condescender. Estava intimamente persuadido de que era vantajoso para a filha passar aquella tarde com alguem, que a distrahisse; porque elle, nas tristes disposições de espirito em que se sentia, não via bem como o fizesse.
Saíu pois, para obrigar Cecilia a saír, e, ao mesmo tempo, ia em busca de distracções tambem.
Era um excellente homem Manoel Quentino, mas dotado de pouca penetração para investigar o enigma da tristeza de uma rapariga de dezoito annos. O seu excessivo amor de pae não o deixava ver claro n'isto. Tudo se lhe figurava presagio de doença, e essa ideia fixa privava-o da necessaria frieza, para ver claro n'estas cousas.
Cada manhã, ao acordar, era um pensamento negro o primeiro que se lhe apossava do espirito—«Irei encontrar Cecilia com doença declarada?»—pensava elle.
Todas as tardes, ao voltar a casa, em vez de tremer com o anticipado prazer de encontrar e abraçar a filha, tremia com o susto de a vir achar enferma.
Por mais que fizesse para tirar aquillo da ideia, não o podia conseguir. Dormindo, inquietava-lhe os sonhos; comendo, vertia-lhe fel na comida; trabalhando, distrahia-lhe a attenção do trabalho.
Os amigos do guarda-livros viam-o com olhos inquietos e murmuravam, uns com os outros, na ausencia d'elle:
—Este pobre Manoel Quentino tem cousa que o rala.
—Está acabado, está.
—Se assim continúa, bem póde o snr. Richard ir lançando, as vistas sobre outro caixeiro, porque este...
N'esta tarde fez Manoel Quentino um esforço desesperado para saír d'aquelle sobresalto, em que andava.
Mas o pensamento humano, quando devéras tomado por uma ideia fixa, em vão se esforça por arrancal-a de si; em vão se desvia para direcções diversas; um como pendor natural o faz voltar de novo a ella. Póde-se, de alguma sorte, comparal-o a estes dados falsificados que, qualquer que seja a maneira por que se arrojem á mesa, mostram sempre aos olhos a mesma face, em virtude da desigual distribuição de massa na sua espessura.—Os phenomenos de equilibrio moral parece obedecerem a leis, comparaveis ás do equilibrio physico.—A estabilidade do pensamento está intimamente dependente da proporcional intensidade das ideias que sobre elle actuam. Agitem um pensamento e deixem-o depois entregue a si, sem novas causas a solicital-o; a ideia mais grave lhe determinará a posição de equilibrio; para que esta se possa indifferentemente verificar em qualquer sentido, é necessario que todas as ideias o solicitem com força igual—phenomeno só proprio dos espiritos fatuos.
Como vimos, Manoel Quentino não pensava por aquelle tempo senão na tristeza da filha, tristeza por elle supposta preludio de doença, que cêdo a viria disputar ao seu amor. Durante toda a tarde não houve corrente de pensamentos, suscitados pelos objectos que via, que a final de contas não terminasse n'aquelle.
Sempre que Manoel Quentino emprehendia um passeio, com o fim de se distrahir, não hesitava na escolha do itinerario. Desde tempos immemoriaes adoptára um e nem lhe passava por o sentido modifical-o. Deixava-se conduzir por o habito n'isto, como em tudo o mais. Atravessava a cidade até á Ribeira; seguia depois, pela margem direita do rio, até Campanhã; chegando ao Esteiro, tomava pela estrada de cima, que o levava ao jardim de S. Lazaro, e emfim recolhia-se a casa.
Foi o que fez n'aquella tarde. A cidade atravessou-a lidando ainda com o pensamento de tristeza, com que saíra de casa.
A primeira diversão operou-a só a vista do mercado de peixe, na Ribeira.
As lanchas valboeiras tinham, n'aquelle instante, chegado ao caes. As regateiras, os compradores particulares e os pescadores que vendiam, animavam o mercado com movimento e vozeria.
Este espectaculo, cheio de vida commercial, não achou indifferente Manoel Quentino. Agradava-lhe aquelle trafego; examinava com olhos conhecedores a excellencia do peixe, e informava-se curioso dos preços que regulavam o mercado. Ao saír d'alli, ia pensando:
—Não ha nada para arranjo domestico, como a pescada. É o peixe mais innocente que ha. Com razão lhe chamam a gallínha do mar. Ahi está a sardinha, que é gostosa; mas é mais doentia tambem. Que a sardinha de Espinho ainda não tanto, mas esta da barra!... D'onde virá a differença?... Pois não será toda ella o mesmo peixe?... Só se é da praia aqui ser mais pedregosa e o peixe saír mais batido... Que esta costa da Foz sempre é muito cheia de pedras!... Só o perigo que correm as embarcações aqui!... Ainda no outro dia, aquella grande desgraça dos oito pescadores que naufragaram!... Muita pena teve Cecilia, quando as folhas contaram de um que deixou uma creancinha orphã! Pobre Cecilia!... tem um coração!... Coitada!... É um anjo... Assim que me lembro d'aquella tristeza em que anda...
E ahi estava a ideia fixa com elle! Parece que ella propria fora a que dispozera esta fileira de ideias associadas, para conduzir a si o pensamento.
A impressão produzida pelo mercado desvanecera-se de todo; Manoel Quentino proseguiu no passeio, já outra vez melancolico.
Mais adiante, tendo passado a ultima casa, que lhe tolhia a vista do rio e a da margem opposta, volveu naturalmente os olhos para o vulto escalvado e sombrio da Serra do Pilar, coroada pelo seu convento em ruinas e a sua igreja circular. Os tristes vestigios das guerras civis estão ainda n'aquelle logar muito evidentes, para que a lembrança d'ellas não acuda subita ao espirito de quem quer que o contemple por momentos.
Manoel Quentino, como quasi todos os portuenses da sua idade, havia sido mais do que simples espectador das scenas tragicas d'essas memoraveis épocas.
—Ha vinte e tantos annos—pensava elle—não havia, a estas horas, tanto socego, por aquelles sitios, não. Nem tambem estes passeios pela beira do rio eram tanto de appetecer como agora. Havia mais perigos, do que o dos nevoeiros do Douro. A fallar a verdade sempre era um tempo aquelle!... O que eu passei!... Parece-me que ainda foi o outro dia, e já lá vão vinte e tantos annos!... Oh! mas que alegria tambem, quando se abriram as linhas!... N'esse tempo era ainda a mãe de Cecilia uma creança. Só quatro annos depois é que eu principiei a pensar n'ella... Pobre rapariga!... Parece-me que ainda a estou a ver!... delgadinha, desmaiada, boa para todos, mas trabalhadeira ao mesmo tempo... É por isso que receio... Valha-me Deus! assim que me lembro da tristeza da pequena!...
E da Serra do Pilar e do tempo do Cerco conseguira aquella ideia dominante achar caminho para se lhe insinuar de novo no pensamento. E, o que mais é, parece que cada vez trazia comsigo maior cortejo de sinistros presagios.
Ao chegar á fonte do Carvalhinho, subiu uns degraus de pedra que alli ha, e beheu, mesmo do caneiro, alguns goles de agua; cousa que nunca se esquecia de fazer, porque tinha fé particular nas virtudes medicinaes d'aquella excellente agua.
—Ah!—dizia elle outra vez distrahido—Consola beber uma agua assim! Para aguas o Porto! Dizem que em Lisboa são más as aguas! Pois é das cousas mais precisas para a saude. É verdade que eu vejo por aqui tambem muitas doenças, apesar das aguas boas. E sobretudo a gente nova está saíndo tão franzina e tão fraca, que é uma cousa por maior! E o medo, que eu tenho, quando reparo em Cecilia! É tão delicada, tão...
E ahi estava outra vez assombrado para grande espaço de tempo.
Chegou á quinta chamada da China,—um dos passeios favoritos das classes populares portuenses.
Desciam a rampa, que antecede o portão, alguns bandos de gente do povo, rindo, cantando, em plena festa; iam em direcção ao rio. As barqueiras de Avintes aproximavam os barcos da margem para os receber; outras, ainda a grande distancia, chamavam, com toda a força d'aquelles pulmões robustos, as pessoas que vinham por terra. Cruzavam-se os barcos, movidos pelos vigorosos braços d'estas engraçadas e joviaes remeiras, e carregados com os frequentadores das diversões campestres do Areinho e da pesca do savel. Tudo era riso e cantigas no rio.
Manoel Quentino via tudo isto, e escutava entretido o canto de uma barqueira, que dizia:
As riquezas d'este mundo
Para mim não tem valor:
Eu sou rica nos tens braços,
Sou rica do teu amor.
E elle pôz-se a pensar:
—Como esta pobre gente vive satisfeita n'esta vida trabalhosa do rio!... Ao vento, á chuva, e sabe Deus o que tem em casa para comer! E é um gosto como ellas cantam e riem!... Raparigas de quinze e dezeseis annos consola vel-as já mover aquelles remos, que esfalfariam um homem, como eu. Não ha como estes ares e esta vida do campo, para fazer as pessoas robustas. Se eu adivinhasse que Cecilia aproveitaria com elles!...
E retomava o pensamento a posição de equilibrio estavel, de que por instantes se desviára.
Chegou ao ponto da margem, chamado Rego Lameiro. Ahi opéra o Douro uma das suas subitas e surprendentes transformações. Expiram as collinas fronteiras de uma e outra margem, interrompidas por um valle deliciosissimo, onde a vegetação é mais abundante, mais povoadas as verduras, e onde se encorporam em riachos as aguas escoadas dos proximos declives. Apreciam-se tão raros intervallos, em que o Douro, o severo Douro, sorri, como se aprecia um raio de alegria em rosto habitualmente carregado.
N'este sitio alarga-se o leito das aguas, diminue portanto a força da corrente d'ellas, chegando, nas marés baixas, a permittir a formação de pequenos ilhotes de areia, para onde vão brincar as creanças dos pescadores. A tortuosidade das margens, furtando á vista o seguimento do rio, dá a este a completa apparencia de um pequeno, mas pittoresco lago. Os olhos descobrem, de um lado, o extenso areal de Quebrantões, ao qual succedem prados e leziras sempre verdes, veigas fertilissimas, arvoredos espessos e, escondidas por o meio, as risonhas casas de algumas pequenas povoações campestres; adiante as quintas da Pedra Salgada, e através do véo azulado da distancia, a aprazivel aldeia de Avintes; do outro lado o palácio do Freixo com seus torreões e balaustradas e as quintas e ribeiras de Valbom e Campanhã. E se é ao fim do dia, quando o sol doura todo o quadro, reflectindo-se afogueado nas vidraças voltadas ao occidente, e a viração da tarde enfua as velas brancas das pequenas embarcações do logar, e o céo é azul e as aguas limpidas, a paizagem compensa bem os privados de gosar as bellezas mais celebradas por viajantes e poetas, as analogas das quaes só a nossa cegueira nos não deixa ás vezes ver a dois passos da porta.
Era aqui que Manoel Quentino se sentava sempre durante alguns minutos, sobre uma pedra solta da margem.
—Como isto é bonito!—pensava elle—É que nem ha outro passeio assim, nos arredores do Porto. E a tarde então está tão serena e socegada, que até se percebe d'aqui tudo o que se diz no Areinho. Se eu tivesse dinheiro, era onde comprava uma quinta. Chegando aos sabbados, saía do escriptorio e mettia-me n'um barco... ou a pé mesmo... A final é um passeio... É verdade que se viesse Cecilia, sempre era longe. Ainda que ella não se cansa... Não se cansa?... não se cansava... agora...
E a ideia negra, aquella pertinaz ideia negra, a tomar outra vez posse de Manoel Quentino! e, com o ir adiantando-se a tarde, parecia cada vez mais negra, como se as sombras crescessem para ella tambem!
D'ahi em diante, não se modificou o processo das cogitações do velho. Uma fabrica de cortumes, umas creanças, a quem deu esmola, uns armazens, tudo quanto viu, após varias oscillações do pensamento, faziam caír Manoel Quentino na preoccupacão anterior.
De maneira que o passeio, aquelle passeio que o devia distrahir, antes lhe exacerbou o mal, que o atribulava.
Subia elle já a íngreme costeira, que leva do Esteiro de Campanhã até o sitio do Padrão. A tarde arrefecera subitamente. Ou fosse o resultado d'aquelle contínuo pensar em cousas tristes ou influencias de outras causas, é certo que Manoel Quentino principiou a não se sentir bom. Pesava-lhe a cabeça, como ourada; dobravam-se-lhe os joelhos de fraqueza; sentia um geral quebrantamento no corpo, que lhe dificultava já o regresso a casa; e depois a melancolia a condensar-se-lhe no coração, que parecia que lh'o estava a apertar com mão de ferro.
Quasi se arrastava por aquella custosa estrada acima desalentado e melancolico.
Chegando a uma das vendas, onde, aos domingos de primavera e estio, costumam celebrar festivas merendas alguns joviaes habitantes da cidade, chegaram-lhe aos ouvidos cantos e risadas, que, no atordoamento em que ia, o incommodavam; pareceu-lhe ouvir pronunciar o seu nome, no meio d'aquella vozeria; mas já não podia dispor da attenção para escutar o que diziam. Continuou caminhando.
De repente, appareceu á porta um dos da companhia a chamal-o.
Manoel Quentino voltou-se lentamente para elle, sem dizer palavra.
—Então d'onde vem, snr. Manoel Quentino?
—D'ahi de baixo—respondeu, com voz fraca.
—E não encontrou ninguem conhecido pelo caminho?
—Eu, não.
—Pois ainda agora o procuraram aqui.
—A mim?!
—Sim; então não sabe o que ha?—disse o sujeito, que lhe fallava com certos modos de importancia e cuidado.
O coração de Manoel Quentino principiou a bater desordenado.
—Eu não...
—Pois vieram, ha poucos minutos, procural-o aqui, para que fosse, já, já, a casa, porque...
—Porque?...—interrogou Manoel Quentino, passando-lhe um calefrio por todo o corpo e seccando-se-lhe subitamente a bôca, como em accesso de febre.
—Porque... pelos modos... sua filha... estava bastante doente... Disseram que o tinham antes ido procurar ao escriptorio... mas...
Manoel Quentino já não escutava; encontrando forças no seu amor, sobresaltado assim, quasi deitou a correr por o mesmo caminho, pelo qual com dificuldade se arrastára até alli.
O que lhe dera o aviso pôz-se a rir, ao vel-o partir com tal pressa.
—Venham ver, venham cá ver!—dizia elle para os companheiros.
Um d'elles chegou á porta.
—Pobre homem! Chama-o. Olha que isso póde fazer-lhe mal.
—Ó Manoel Quentino! Psiu! Olhe que é hoje o l.°de abril, homem! Manoel Quentino!
Mas o pobre velho nem o ouviu; cada vez corria mais.
Estes homens tinham celebrado o 1.° de abril—este dia que, não sei por quê, o uso popular consagra a reciprocas mystificações—ferindo no mais doloroso o coração de um pae! E ainda poderam rir!
Louvado seja Deus! Ha gente assim graciosa no mundo!
—Vão lá agora segural-o,—disse o mystificador—deixa-o, maior alegria o espera ao chegar a casa.
E voltou a divertir-se.
No entretanto Manoel Quentino proseguia n'aquella marcha rapida, desordenada, como se desejasse fazer desapparecer de subito a distancia, que inda o separava da filha, e ia murmurando:
—Cecilia... pobre filha!... Ó nossa Senhora!... que desgraça! que desgraça! para que saí eu?... Não póde ser... Mas para me virem assim chamar... Quem sabe se... Grande perigo! grande perigo, por certo! Virgem Santa! E este caminho é tão longo!... E ella morta talvez por me ver chegar... Ó filha, filha...
E as lagrimas caíam-lhe em fio pelas faces.
O atordoamento de cabeça augmentava; a energia muscular, que a nova recebida momentaneamente lhe dera, cedia de novo logar ao mesmo desfallecer, que, antes, lhe vergava os membros. O pobre velho aterrava-se ao perceber isto.
—Oh! dae-me forcas, Senhor, dae-me forças para chegar depressa! Por misericordia!—dizia elle, tremendo—A minha pobre filha!...
E os ouvidos zuniam-lhe cada vez mais; diante dos olhos, passavam-lhe, de quando em quando, faiscas, manchas avermelhadas, nuvens de sangue; ouvia o bater das fontes e das carotidas; furtava-se-lhe o chão debaixo dos pés; andava e não se sentia andar; já não tinha poder de regular os movimentos, que se succediam sem a coordenação regular.
Uns homens, que passaram por elle, pararam a examinal-o, e Manoel Quentino ouviu-lhes ainda dizer:
—Olha como vae aquella alminha! ha de custar-lhe a dar com a porta de casa.
Estas palavras affligiram ainda mais este pobre pae, já tão afflicto. Tinha chegado á capellinha do Padrão.
—Que angustias, meu Deus! Valei-me, nossa Senhora!—murmurou elle.
Encostou-se algum tempo ás grades da porta, porque já não podia andar.
Fez uma oração fervente, d'estas orações que, se não abrirem de prompto caminho até o throno de Deus, é porque para sempre se fecharam já as portas do céo a todas as preces da humanidade. Mais sentida, mais do coração, do que aquella, é que se não fazem no mundo.
Pareceu ganhar vigor por um pouco. Proseguiu, mas com o andar mais tardo e vacillante. Cêdo porém voltaram as ameaças do mal. Um entranhado terror apoderou-se-lhe do coração, uma como mysteriosa consciencia de proximo perigo.
As luzes da illuminação publica appareciam-lhe coloridas de vermelho. A perturbação de vista augmentou; tudo girava em volta d'elle; os objectos tornavam-se-lhe indistinctos, afigurava-se-lhe que o terreno descia de repente, e em uma descida tão rapida, que elle teve de parar para não caír. Encostou-se á ombreira de uma porta.
Ouviu a voz de alguem, que já nem viu, dizer-lhe:
—O senhor não está bom? Entre para descansar.
—Não—disse elle com certo desabrimento, como se aquelle conselho lhe desvanecesse cruelmente a illusão, que fazia por conservar ainda.
E de novo tentou caminhar.
Estava proximo do cemiterio publico, chamado do Repouso; deu mais alguns passos.
Os mesmos symptomas atacaram-o de novo e com maior violencia; a vertigem foi completa; o chão pareceu faltar-lhe.
O bom do homem ainda pôde murmurar:
—Senhor!... Senhor!... por piedade!... pois hei de morrer aqui, sem ver minha filha?!...
E caíu sobre um dos bancos de pedra da alameda que está em frente do cemiterio.