A SENTENÇA DO PAE
Manoel Quentino, ficando só na presença do patrão, não se sentia á sua vontade. Foi pois com verdadeira satisfação que recebeu um recado de Cecilia, a pedir-lhe que a acompanhasse a casa.
Despediu-se de Mr. Richard, a quem dirigiu pela segunda vez mal formuladas desculpas, que o inglez recebeu com affabilidade, e ao mesmo tempo com ares de quem preferiria não ouvir fallar mais em tal.
Manoel Quentino foi ter com Cecilia, que estava na outra sala com Jenny.
—Cecilia, perdôa-me se duvidei de ti;—disse elle com a voz suffocada—perdoa a minha imprudencia de ha pouco, filha; foi uma loucura. Bem o vejo agora. Perdôa-a ao muito amor de teu pae...
A commoção não o deixou continuar.
Cecilia lançou-se-lhe, chorando, nos braços.
—Manoel Quentino, que está a fazer?—disse Jenny—Não vê como a afflige?
—Menina—respondeu Manoel Quentino, voltando-se para ella—perdôe-me tambem se pude imaginar que a sua protecção de santa...—de verdadeira santa, miss Jenny—que essa abençoada protecção podia deixar-se vencer. E, por quem é, não se esqueça de velar por ella, por minha filha!
—Mais valiosa protecção encontra Cecilia era si mesma—respondeu Jenny.—É um coração forte.
Manoel Quentino tinha a cabeça da filha encostada ao peito; ouvindo estas ultimas palavras, cingiu-a ainda mais a si, e murmurou para Jenny, procurando não ser percebido por Cecilia:
—Forte?... Era... emquanto lhe pertencia.
Jenny demorou o olhar nas feições do velho.
Aquella resposta dava a entender que algumas suspeitas lhe restavam ainda da verdade; que elle podia estar convencido já da innocencia da filha, que podia julgar com menos severidade e duvida as tenções e procedimento de Carlos, mas sem haver fechado de tal maneira os olhos á evidencia, que suppozesse que nada havia de commum entre os corações dos dois.
Jenny respondeu, percebendo isto:
—Forte ha de sel-o sempre; resta fazel-o feliz.
—Se miss Jenny o não conseguir, quem mais o conseguirá?
—Trabalharei—disse Jenny, sorrindo.
—Dê-lhe a serenidade do seu coração e tel-a-ha salvado.
Jenny, que abraçava n'este momento Cecilia, ouvindo estas palavras, meneou a cabeça, e, entre risonha e melancolica, disse ao ouvido da sua amiga:
—Não é assim que eu desejo salvar-te.
Pela primeira vez a tratava por tu.
Emquanto se passava esta scena, Carlos de volta ao quarto engolfava-se em pensamentos profundos. Tudo quanto succedera lh'o estava reproduzindo a memoria, e cópia de affectos e de paixões agitavam-lhe o coração em palpitar desordenado.
Que lhe competia fazer? Como devia sair da posição em que se achava? De que maneira compensar com uma resolução nobre, digna dos sentimentos que percebia no coração, a insuperavel timidez, que durante o jantar se apoderára d'elle.
N'isto pensava Carlos, quando o criado lhe entrou no quarto, annunciando que Mr. Richard Whitestone o mandára chamar ao gabinete.
Carlos esperava esta entrevista, que, depois do succedido, podia dizer-se inevitavel; elle proprio a procuraria talvez espontaneamente; mas, apesar d'isso, não se sentia preparado para ella; nem outra cousa lhe succederia, talvez, quando mais espaçada fosse.
Causou-lhe pois o effeito de imprevista.
Vacillavam-lhe os passos ao dirigir-se ao gabinete do pae, como se fora um réo, caminhando para o tribunal, em que vae ser julgado.
Quando Carlos entrou, Mr. Richard estava em pé, encostado ao marmore do fogão. Tinha a expressão tão severa, quanto era possivel á sua physionomia ingleza, e conservava na mão a carta de Carlos, como quem acabava de a ler n'aquelle momento.
Carlos parou no meio da sala, esperando que o pae lhe dirigisse a palavra.
Mr. Whitestone estendeu para o filho a carta aberta, perguntando com modo rapido e incisivo:
—Que ha de verdade n'isto que se diz aqui?
—Tudo—respondeu Carlos, procurando dar á voz a firmeza, que não sentia.
Mr. Whitestone enrugou a fronte ao ouvir a resposta; fez um leve movimento de hombros e de labios, e, passando a carta para o filho, apenas lhe disse:
—Ahi a tem. Rasgue-a, queime-a. Deve fazel-o... porque destruirá assim a prova de uma nova... infamia.
As faces de Carlos cobriram-se de intenso rubor.
—Meu pae!—balbuciou elle.
—Repito-o; de uma infamia—proseguiu Mr. Richard com redobrada acrimonia.—Não sou eu o primeiro que lh'o diz; e se já se calou vergonhosamente diante da primeira accusação, não é muito que escute a segunda com a mesma... humildade.
E acabando de dizer isto, pôz-se a passeiar no quarto, como costumava quando assim exaltado, e continuou:
—É falso orgulho esse que... todo se alvoroça ao ouvir uma palavra e com tanta facilidade se conforma, ao que é bem peior, á feia acção que ella exprime. É orgulho de theatro... Não comprehendo devéras.
Carlos respondeu:
—Eu posso estranhar que a accusação me venha de quem me devia conhecer melhor, e de quem não está dominado, como o primeiro que me accusou, por um excesso de paixão violenta, mas desculpavel. Estranho e lamento que, no curto periodo de alguns dias, tenha já ouvido duas vezes de meu pae a accusação de... infame.
Mr. Richard, que, emquanto o filho fallára, ia augmentando a velocidade dos passos, com que media a sala, parou repentinamente n'este ponto e fitou Carlos com um olhar cheio de fogo.
—Estranha, por quê? Faz favor de me dizer? Não me apontará algum nome mais exacto para dar ás suas acções?... Devéras que não sei... Julgo que não quererá arguir-me de demasiado severo?... Repito o que já lhe disse no outro dia. Tenho sido em excesso benevolente comsigo, tenho fechado de proposito os olhos a muitos desvarios seus, desculpando-lh'os com o verdor dos annos. Mas acções ha, que nem a creanças se desculpam... E, sempre que nos actos de um homem existe o caracter de... baixeza...
Carlos não pôde suspender um movimento instinctivo de reacção, ao ouvir esta palavra.
Mr. Richard, percebendo-o, repetiu com mais força, e olhando fixamente para o filho:
—De baixeza... e de villania!... Em taes casos, é criminosa a indulgencia; e nunca é demais toda a severidade de opinião contra esse homem. Escusa de protestar com esses movimentos e gestos. Mais severamente do que eu, o accusava ha pouco a sua propria consciencia, obrigando-o a calar-se e a abaixar a cabeça diante das arguições d'aquelle homem... que... que... que tentára deshonrar.
—Eu já lhe disse, senhor—acudiu Carlos, com vehemencia desusada para com o pae—que tudo quanto escrevi n'essa carta é verdadeiro. Seria imprudente, fui de certo; d'isso me accuso eu; mas diz-me a consciencia que estou sendo severamente julgado e por isso...
—Era bom que a sua consciencia tivesse acordado mais cêdo. Escusava de ter deixado que da bôca de um estranho, e diante de testimunhas, caisse sobre o nome de seu pae e de sua irmã uma accusação grave e que nós mentissemos para o salvar. Esses escrupulos veem bastante tarde. Deve confessar.
Carlos curvou a cabeça e ficou silencioso.
Mr. Richard ficou tambem algum tempo calado, depois proseguiu:
—É verdadeiro tudo quanto diz n'essa carta! Lembre-se de que ainda ha poucos dias marcava n'esta mesma casa, na casa em que habita sua irmã, entrevistas a...
Carlos não o deixou continuar:
—Peco-lhe que não renove essa insinuação, senhor; já dei a minha palavra em como ella era injusta. Não posso offerecer prova mais convincente, mas custa-me devéras ver que me recusam esta. No dia em que succedeu o facto, a que allude, n'esse dia em que pela primeira vez ouvi o epitheto de infame da bôca de meu proprio pae, já eu me sentia bem outro do que tinha sido até alli. Creia-me, senhor; não é uma vã inclinação, um ephemero capricho de rapaz, o que sinto por Cecilia. A unica importante mudança de caracter, que tenho experimentado na vida, operou-a ella sem uma palavra, sem uma tenção formada, sem denunciar um desejo. Adivinhei-a talvez, mas não que ella se me revelasse nunca. Cecilia só de per si conseguiu, e sera esforço, o que nem as reprehensões de meu pae, nem os conselhos e os pedidos de Jenny haviam conseguido nunca, por isso creio na sinceridade dos meus pensamentos para com ella, por isso...
Mr. Richard escutava o filho com manifesta impaciencia; parecia que lhe seria quasi tão desagradavel o ver Carlos conseguir justificar-se, da maneira por que o estava fazendo, como persistir sob a accusacão de menos leal, que lhe tinha sido feita.
O amor proprio de Mr. Richard—porque emfim é forçoso confessar que Mr. Richard tinha amor proprio tambem—não se sentia muito lisongeado com esta sincera paixão de Carlos por Cecilia, a filha do seu guarda-livros.
Um enxame de preconceitos se alvoroçava todo a esta ideia; preconceitos que a razão clara e forte de Mr. Richard se pejaria de reconhecer como legitimos, mas aos quaes, sem o saber, se sujeitava.
Eram de diversas ordens.
Preconceitos de inglez, primeiro que tudo; nunca é com absoluta indifferença que o filho da Gran-Bretanha vê uma mulher de outro paiz roubar-lhe o coração de algum dos seus parentes. Ha em toda a alma ingleza a profunda convicção mais ou menos declarada de uma superioridade de raça, que a não deixa encarar desapaixonada alliancas d'estas.
Depois sobrevinham os preconceitos de commerciante, o qual, por mais consideração e estima que tenha por um guarda-livros, não póde de todo em todo olhal-o como de natureza igual á sua, e não se lisongeia demasiado com obter nora ou genro em casa d'elle.
Ainda o preoccupavam preconceitos de capitalista; por mais philosophicas doutrinas que estes expendam sobre a vaidade das riquezas, na pratica da vida não abstrahem d'esse elemento quando combinam calculos para resolver o problema da felicidade. Finalmente até preconceitos de pae lhe offuscavam a luz da inlelligencia, pois não obstante a severidade das arguições que lhe ouvimos, é certo que poucas mulheres no mundo lhe pareciam dignas do seu Carlos. Tudo isto o fazia pois escutar de má vontade a declaração do filho, a quem interrompeu precipitadamente.
—Está bom. Eu não preciso saber a historia das transformações do seu caracter, o qual até me parece ser demasiadamente sujeito a ellas. E se é essa a garantia unica que tem da sinceridade dos seus sentimentos, ha de concordar que é bem fraca. Mas seja como for; depois do succedido, parece-me escusado indicar-lhe o melhor partido que tem a abraçar.
Carlos elevou para o pae o olhar interrogador.
Mr. Richard guardou, por instantes, silencio; depois acrescentou:
—Dentro em oito dias sae um vapor para Londres...
—Mas...
Mr. Richard fingiu não ouvir a interrupção, e continuou:
—Ha muito que se faz necessaria uma entrevista pessoal com Mr. Woodfall Hope, porque...
—Não sei se me será possivel obedecer-lhe, senhor.
Mr. Whitestpne voltou-se com vivacidade para o filho, e, visivelmente irritado, disse:
—Espero que não commetta a baixeza de querer demorar-se aqui, depois do que se passou. Não me faça envergonhar de o ter por filho.
Carlos desacostumára-se a arrostar por muito tempo com a severidade do pae. Sentia-se incapaz de reagir diante d'aquelle olhar. Baixou a cabeça e calou-se.
Mr. Richard acrescentou instantes depois, em voz ainda severa, porém já menos rispida:
—Póde retirar-se e faça por ser homem de bem. Ha erros que deixam vestigios, que nunca se apagam mais. Respeite as familias, porque o contrario é deshonrar a sua. Se se lembrasse de que tinha uma irmã...
N'este ponto ouviu-se rumor á porta do quarto.
—Que temos?—perguntou Mr. Richard, impaciente.
Era um criado que vinha do mando de Jenny perguntar se Mr. Richard a podia receber.
Mr. Richard fez um signal affirmativo, e voltando-se para Carlos:
—Saia. Sua irmã precisa fallar-me.
Carlos curvou a cabeça e saiu sem dizer palavra. Era ainda o réo que deixava o juiz, não o filho que se despedia do pae.
Carlos encontrou-se com a irmã na sala contigua. Ella estendeu-lhe a mão, dizendo:
—Vês, Charles, vês o resultado das tuas loucuras?
—Loucuras, Jenny! Pois ainda lhes chamas assim?
—Principio a ter vontade de lhe dar outro nome, principio; e é por isso que venho aqui.
—Que vens fazer?
—Advogar a causa de uma má cabeça, em attenção a um pobre coração, que não tem culpa nenhuma em andar unido áquella estouvada.
—Ó Jenny!—exclamou Carlos, tomando, cheio de confiança, as mãos da irmã.
—Então! Deixa-me, que o pae espera-me.
E separando-se do irmão, disse a rir:
—Que difficil papel me fazem representar em toda esta historia!