Enquanto Miguel, encostado à árvore, era todo meditação e cismar, do alto indeciso da ladeira alvejava um vulto trêmulo, cujas roupagens flutuantes se desvaneciam nas sombras transparentes da noite.

O coração do moço estremeceu, como o ferro quando se avizinha o imã: era Rosalina que se aproximava.

Com aquela cega e santa confiança, que as singelas camponesas têm em si, com o desamparo dos corações que não se arreceiam das trevas nem da luz, descia a ladeira, descuidosa, a filha do pescador, procurando descobrir nas sombras o vulto querido do seu amado.

Assim que o divisou, deitou a correr francamente para ele com os braços abertos.

Mais parecia descer voando, que correndo; Miguel com os olhos do coração via-lhe as asas, que a amparavam no vôo.

O vento, repuxando-lhe para trás as saias e os cabelos, contornava-lhe a redondeza correta da cabeça e as curvas voluptuosas e macias do corpo; era como se a mão invisível de um gigante a segurasse por trás, e pouco a pouco a viesse aproximando dos lábios de Miguel.

Nessa ocasião, para ele Rosalina mais que nunca parecia um anjo; para os amantes - vir por cima - é sempre baixar do céu quando se trata do objeto amado.

Era aquilo um descer vertiginoso e quase fantástico: as pedrinhas do chão desprendiam-se e rolavam com ruído até a praia; os belos e adestrados pés de Rosalina corriam pelo solo conhecido, com a facilidade com que deslizam pelo telhado os dedos de um mestre de piano. Atravessando a alameda, ora recebia em cheio o luar pelos claros da folhagem e pelos espaços de entre as árvores, ora se cobria rapidamente de sombra, para reaparecer logo na luz. Miguel correu ao encontro de Rosalina, recebendo-a em cheio nos braços.

Vinha ofegante de cansaço, e nesse estado se abandonava de si, para de todo se entregar negligentemente aos braços do amante.

Assim ficaram por algum tempo silenciosamente abraçados; ela a respirar sofregamente e ele a fartar-se de vê-la, queimando-a com esse olhar, que parece o reflexo vermelho do incêndio que cai pelo coração.

Desabraçaram-se para segurar as mãos um do outro; os amantes, quando sós, nunca têm as mãos ociosas.

— Oh! Como estão frias! Disse Rosalina, tomando entre as suas as de Miguel.

— Tenho-as frias como tenho despedaçado o coração. Não há calor nas ruínas! - volveu tristemente Miguel e recolheu-se a cismar; porém, pouco depois, tomado de súbita agitação, ergueu com força a cabeça e rompeu a falar desordenadamente, como se a dor, que desde a véspera prendera em ferros, rebentasse à vista de Rosalina, medonha e troadora, rompendo cadeias, violando represas.

— Ouve Rosalina! Eu tinha uma fortuna, uma esperança, uma alegria, uma única felicidade, desde o princípio de minha vida, isto é, desde que te conheço, meu amor! Teu pai entendeu para si de transformar numa chaga sempre aberta isso que era o meu único sorriso. Vais partir para Nápoles e vais rica; conheço bem os costumes dessa cidade: são maus e perigosos, principalmente para os ricos! Serás porventura a mesma quando lá te vires, cercada de opulência e de aduladores?... Essa dúvida me mata!...

E soluçou.

— Miguel!...

— Tenho medo, minha Rosalina; pode muito a ausência! Tenho medo de que te esqueças por uma vez do pobre artista! E que seria de mim se me deixasses de amar? Desaparece, e nada mais aqui fica que me aproveite! Apaga a luzinha que conduz o viajante, e vê-lo-ás perdido; toma o cajado ao cego, e vê-lo-ás cair; priva do sol a planta, e vê-la-ás murchar; arranca do desgraçado a crença em Deus, e vê-lo-ás sucumbir. Pois bem! Tu és a estrela que me guia ao futuro, o cajado que me ampara na vida, a luz que me dá crenças e a crença que me dá forças. Desaparece e eu cairei nas trevas e morrerei sem crenças! Repito, Rosalina! - disse Miguel comovido e enxugando as lágrimas - Repito! Tenho medo que te esqueças para sempre de mim!

— Não, meu amigo, não me é mais possível esquecer-te - volveu a moça, conchegando para si o amante e passando-lhe os braços em volta do pescoço. — O amor que tenho, meu amigo, não entrou neste coração já feito e desenvolvido, não! ele aqui nasceu, fecundado por ti, foi pequenino e hoje está crescido, eduquei-o pouco a pouco como se educa um filho querido, que sai de nossas entranhas; amamentei-o como a minha primeira esperança; alimentei-o depois com a tua dedicação; santifiquei-o ao calor religioso de teus sacrifícios e fielmente rebustecí-o ao clarão vivificante do teu talento. Amei-te, porque és nobre, forte e dedicado! Hoje o nosso filho querido, o nosso amor é dono absoluto de mim; o coração, com a franqueza de mãe, habituada a fazer-lhe todos os caprichozinhos, já não reage. E parece-te que eu seria capaz, que poderia, ainda se quisesse, enxotá-lo da casa? Não sabes que depois da recusa de meu pai eu mais e mais te quero? Oh! mas ele consentirá em tudo! meu pai é bom e ainda não te conhece bem; logo que assim aconteça, gostará necessariamente de ti. E muito mais sabendo que eu te amo tanto e tanto!

E dizendo isso, Rosalina cada vez mais estreitava o amante com carinho.

E ele, com os lábios juntos aos dela, sentia caírem-lhe dentro aquelas palavras como beijos incendiados.

Todas as trevas de seu passado dispersaram-se espavoridas como um bando de aves negras ao contato da luz daqueles beijos.

Sentia-se novamente feliz, dessa felicidade, ou talvez, desta vaidade que enche os corações ainda moços e enamorados, quando embevecidos recebem dos lábios da mulher amada a confirmação da própria fortuna. E assim foi que Miguel, possuído do inesperado contentamento, rindo e chorando, murmurou em segredo e desordem junto aos ouvidos de Rosalina:

— Fala! meu amor! Continua a dizer dessas coisas! Enlouqueço de te ouvir dizer assim a nossa felicidade! Dize! Dize que me amas muito e que me amarás sem fim.

E o roçar dos lábios dos amantes desprendeu um beijo, semelhante à chispa, que o atrito do ferro levanta da pedra.

Uma faísca é sempre perigosa: pode fazer explosão.

Súbito, um jato de luz vermelha inundou rápido o grupo abraçado dos dois amantes.

Se Satanás existe, deve ser dessa cor a sua aureola.

Rosalina soltou um grito horrorizada, grito igual ao da cotovia ao sentir a bala do caçador, e caiu sem sentidos nos braços de Miguel, que imóvel, hirto, chumbado à terra, parecia uma estátua de bronze, tendo nos braços uma mulher bela e pálida, de uma beleza e de uma palidez de mármore.