Mal chegados, atracou o barco e saltaram os viajantes, seguidos do cão.

Sombra da Noite, por maior segurança, escolhera para desembarque uma praia de pescaria, das muitas que possui Nápoles, e disfarçadamente vestido de pescador, carregava cantando à moda destes, o peixe que apanhara durante a viagem.

Seriam, quando muito, dez horas da noite, hora essa de se prepararem os pescadores para a pesca noturna em alto mar.

Tudo estava pronto; viam-se as redes esticadas, amontoados os archotes e cheias as borrachas.

Dirigiram-se os dois e Castor para uma tasca fronteira à praia; aí, segundo o costume, esperavam os pescadores, com as competentes mulheres e filhos, a vez da maré, entretidos a cear ou a beber. Os recém-chegados, que, a despeito da vontade e do disfarce, chamavam a atenção geral, foram-se sentando com a afetada indiferença e bebendo com sofrível vontade.

Sombra da Noite tratou logo de se desfazer do peixe, arranjar pouso para a noite e ajustar preços; feito isto, saiu com o companheiro da tasca e, sempre acompanhado de Castor, desprezaram a praia e entranharam-se pela cidade.

Miguel não conhecia Nápoles e, carregado da sua rabeca, deixava-se ir acompanhando o guia; assim palmilhavam muitas ruas, a princípio tomando para a esquerda, seguiram depois transversalmente, ora atravessavam uma rua estreita e deserta, ora uma larga e concorrida, até que afinal chegaram a um lugar espaçoso e arborizado; depois de ligeira hesitação, venceram o largo e meteram-se por uma bonita rua, larga, bem calçada e mais concorrida que as outras.

— É esta, disse o pescador sem parar. Miguel levantou os olhos para uma tabuleta e leu: Rua de Toledo. O coração bateu-lhe mais apressado.

Continuaram a andar, silenciosos. À proporção que o faziam, diminuía o número de transeuntes, era a noite que se adiantava. Uma vozeria confusa e alegre partia dos cafés e dos grupos rareados.

Castor, de cauda interrogativa e focinho baixo, ia na frente, farejando sofregamente as pedras estranhas para o seu faro.

Nem sequer olhavam os viajantes para as preciosidades naturais e artísticas que se desenrolavam a seus olhos; contudo ali estava um artista, não sem alma para ver, sentir e admirar, mas não tomado de suas preocupações, tão pasmado e absorvido por uma idéia fixa, que não lhe dava a alma pressa de regalar a sede do artista, quando um coração se ressequia à mingua de outro carvalho. Um artista, um lazarone e um cão, isto é, o primeiro abstrato, o segundo rude e o terceiro irracional, são justamente as espécies mais refratárias ao belo, mas em verdade é que pareciam identificados pelo mesmo interesse e levados pelo mesmo fim, porque, igualmente apressados, caminhavam no mesmo compasso, se é que dois homens podem andar pelo compasso de um cão.

De repente Castor se pôs a ladrar contra um portão de ferro, que servia de vasta entrada para um jardim, em cuja casa muito se dançava e folgava. A música do baile absorvia os latidos do animal, este porém, ladrando cada vez mais, enfiava a cabeça e patas pelos intervalos dos varões lanceados da grade.

Nas salas principais do edifício estorcia-se o baile em convulsões sensuais; da rua viam-se rodar vertiginosamente as cabeças muito frisadas e as espáduas nuas de alabastro e banhadas de luz.

Sombra da Noite parou, olhou com atenção para a fachada do edifício e, calcando a cinza do cachimbo disse secamente:

— É aqui!

Miguel estava imóvel e distraído; tinha os olhos arregalados e as mãos frias; a luz imensa, a música, o luxo, o zunzum das sedas e veludos, ofuscavam-o, ao mesmo tempo que o enchiam de raivosa tristeza.

— Agora, disse o outro em voz baixa, podemos entrar por ali, sem risco de sermos vistos. Conheço uma ruazinha particular pertencente à casa e por onde é permitido ao povo transitar.

E arrancando o companheiro do labirinto de reflexões em que parecia perdido, foi com ele atravessando a frente do edifício. Miguel ia atrás, caminhava de cabeça baixa e passos lentos. Desse modo, costearam o jardim pelo lado esquerdo, depois, embrenhando-se por uma sombria alameda de laranjeiras, Sombra da Noite disse ao companheiro:

— Esta rua cerca toda a casa; caminhemos por aqui.

Quando chegaram ao meio da ruazinha, o guia parou novamente, acrescentando em segredo:

— Daqui se vê perfeitamente o fundo de toda a casa. Aquela grande varanda em forma de arco, disse ele, apontando para a enorme balaustrada do andar superior, fecha toda a casa; por aí pouca gente pode agora transitar, porque naturalmente estão entretidos com a dança e com o jogo; os salões do baile são no centro, e a eles pertencem aquelas cinco janelas que o senhor viu da rua; dos lados estão os dois salões do jogo e dão também para a rua aquelas duas outras janelas, que o senhor viu de cada lado, porém, compreende? É tudo resguardado pela varanda, onde agora não chegam os convidados. Estão no diabo da festa! Daqui a pouco, ouve-se o barulho que fazem, porque o vento leva contrário. Olhe agora para baixo, continuou Sombra da Noite, debruçando-se nos ombros de Miguel e acompanhando a descrição com o indicador da mão direita, olhe! vê aquela grade de mármore? na parte escura!... Está inteiramente sombreada pelo diabo da varanda do andar de cima...

— Onde estão aquelas vidraças de cor? Perguntou Miguel, todo atenção.

— Justo, disse o outro estendendo a palavra e os lábios. Também é o único aposento do andar de baixo que tem luz. Pois ali, continuou, abaixando misteriosamente a voz e chegando a boca ao ouvido de Miguel, é o aposento da filha do senhor Maffei!...

Miguel encostou-se à grade do jardim, segurou a cabeça com a mão e ficou a fitar embevecido as vidraças coloridas da janela. Sentia uma tempestade na alma; luziam-lhe ali na sombra os vidros iluminados do quarto de Rosalina, como um farol no alto mar.

Teria ele encontrado o porto?

— Eu conheço, continuava Sombra da Noite, contendo Castor, que se queria precipitar pelas grades do jardim, não bem essas casas, conheço toda a cidade de Nápoles, palmo a palmo! Que quer? aqui fui criado, aqui brinquei, cresci e corri. Todas estas casas novas, que o senhor vê por cá, foram levantadas sobre as ruínas e um antigo convento de frades Em pequeno ainda apanhei esse convento; estes lados eram os da villa, de negras paredes, muito altas e feias. Com os diabos! parecia um cemitério! Hoje está tudo isto acabado, assim mesma a única coisa que conservam do convento é um cruzeiro de pedra, que deve ter ficado para aquelas bandas, e indicava com os beiços o lado oposto à casa. E se isso ficou, meu rico cavalheiro, foi porque não o puderam destruir e não por ser, como disfarçam eles, obra de grande arte e merecimento. Ora, quem não sabe que estes lugares não são bons?! Neste chão, dizia ele batendo com o pé, há sangue mau de frades, que os irmãos matavam para lhes ficar com os haveres, e depois enterravam aí pela quinta, sem que a mais ninguém constassem. Todas as noites, continuava o velho, engolindo a saliva, cada vez mais aterrado, ao badalar dos sinos grandes, aos sábados, à meia-noite, os diabos os frades levantavam-se das sepulturas e iam, rezando, rezando... agarrar-se à cruz, e cada uma a puxa para o seu lado por penitenciar os seus pecados. Há uma força que a prende a este chão amaldiçoado! Dizem até, e há quem tenha visto! que o cruzeiro falou!... e eu acredito! disse ele benzendo-se, todo trêmulo, com ambas as mãos.