Uma dessas tardes enfadonhas de céu cor de chumbo invadia a passos lentos a natureza. As últimas horas do dia pouco destoavam das primeiras. Aos golpes do vento que soprara pela manhã sucedera uma aragem úmida, que punha em agitação os ramúsculos tenros da crista das árvores, e o silêncio no mato se tornara quase absoluto.
Eustáquio e todos os que se achavam com ele sentiam o mal estar que lhes comunicava o tempo. Pelas janelas da casa abertas para o ocidente, podiam ver o sol, que baixava gradualmente para o horizonte, rodeado de nuvens, como gigantesca medalha de ouro envolta em flocos de algodão amarelado; mas as reflexões de cada um não nos deixavam atentar para esse espetáculo.
Depois das últimas palavras do padre Jorge ninguém mais falara. Ninguém se lembrava de que eram horas de jantar. Todos esperavam pelo ataque dos bandidos. Branca com algum medo, Rosalina com impaciência, porque queria ver logo seca a fonte das inquietações dos seus benfeitores. Eustáquio e o seu amigo, confiados nos defensores da casa, só contavam com a sua vitória e o extermínio dos malfeitores. Apesar disso, vagos receios vinham turvar-lhes a tranqüilidade.
Assim estavam quando da orla da mata virgem partiu um assovio estridente.
Eustáquio e o padre Jorge se olharam. Ambos tinham empalidecido. Quase tiveram medo.
Branca e a sua amiguinha os fitavam, esperando que eles exprimissem um juízo acerca do silvo.
— Um sinal! balbuciou o padre Jorge.
Ao pronunciar a última sílaba de "sinal", um outro assobio confundiu-se com a sua voz. A este silvo seguiu-se uma vozeria estrondosa. A algazarra era nos fundos da casa. Eustáquio tomou uma pistola e, passando pelo corredor central, chegou à cozinha. Nesse momento fortes pancadas fizeram tremer uma porta da cozinha que dava para o roseiral e que estava fechada, enquanto vários tiros estalavam da parte de fora.
Eustáquio ouviu também o ruído de estilhaços de vidro que caíram no chão da sala, donde acabava de sair.
— Oh! atacado por dous lados exclamou ele, engatilhando a pistola que empunhara.
A cousa vai mais rápida do que eu esperava, disse o padre Jorge, apresentando-se na cozinha.
— Vai! vai! repetiu Eustáquio em tom gutural. E depois, olhando espantado para o amigo, gritou:
— Estais ferido!
Pelo rosto do padre descia um fio vermelho.
— Isto não é nada!... Um fragmento de vidro tocou-me a testa.
— Que vidro, padre Jorge?...
— Uma das vidraças da sala foi despedaçada por algumas balas. Vem ver!
Eustáquio lançou um olhar à porta da cozinha e, vendo-a solidamente trancada, voltou com o amigo para a sala principal.
Branca, tendo ouvido chorar o seu filhinho, que os tiros tinham acordado, recolhera-se à alcova juntamente com Rosalina e fora acalentar a criança.
No roseiral repetiam-se detonações e gritos.
Uma luta terrível parecia ter lugar aí. Como dissera o padre Jorge, uma das vidraças da sala fora quebrada por alguns projéteis perdidos. Os dous amigos precipitaram-se para ela, que estava menos longe deles, e, sem receio de se cortarem, enfiaram a cabeça pelos caixilhos, que sustentavam ainda agudas pontas de vidro.
A vista do roseiral era de aterrar. Uma fumaça escura se enovelava pelas roseiras, espalhando forte cheiro de pólvora. No chão estavam estendidos três mortos. Dois paraenses e Ruperto haviam já sucumbido. Um dos indivíduos ultimamente engajados jazia ferido junto de uma estaca. Dos outros defensores de Eustáquio um, paraense, desaparecera e os restantes combatiam.
Eustáquio e o padre Jorge, petrificados de espanto, viram sem compreender o verdadeiro* dos paraenses cercado por três homens, de catadura inflamada pela raiva brandindo fouces e punhais sobre ele, e nesses três homens reconheceram os novos engajados!
O paraense defendia-se valentemente a coronhadas, e os seus adversários recuavam para longe, a cada volta que ele descrevia com a sua espingarda segura pelo cano.
Uma palavra repetia ele com indignação:
— Traidores! Traidores!
— Padre Jorge, badrou Eustáquio, que tivera de súbito um pensamento, eles não são traidores!... Ainda há pouco ouvimos um sinal... Era para eles, que, apenas o ouviram, romperam a luta. Não são traidores! Fazem parte da quadrilha que me persegue! Conseguiram introduzir-se em minha casa e estão desempenhando um papel de que foram encarregados!
— Sim, meu amigo, sim! E sou eu quem tem a culpa desta desgraça... Perdoa-me! Um excesso de prudência me fez imprudente... Fui muito precipitado aconselhando-te engajamento de indivíduos que eu não conhecia... mas fui levado por um grande receio de que não fosse suficiente o pessoal que tinhas para tua defesa. Demais, as aparências dos malvados me iludiram!
— Oh! vão matar o paraense! exclamou Eustáquio, que, sem dar atenção ao padre Jorge, acompanhava os rápidos momentos do combate do roseiral.
O intrépido caboclo, que a princípio resistira com vantagem, começava a fraquear.
O marido de Branca levantou a pistola que tinha na mão e, através dos caixilhos, desfechou um tiro... Uma bala foi tocar o peito de um bandido, cuja mão chegara a garganta do paraense. O miserável sentiu afrouxarem-se-lhe os músculos. Ajoelhou-se e caiu de frente sobre o ferido que estava por terra.
Na mesma ocasião uma pancada formidável descarregada pelo caboclo esmagou o crânio de outro inimigo, cujo companheiro restante fugiu para o lado dos fundos da habitação.
Senhor do campo, o paraense arrancou tranqüilamente um pedaço da camisa, rasgada na luta, e com ele limpou o sangue de alguns ferimentos leves que recebera.
Em seguida aproximou-se da janela ocupada por Eustáquio e o seu amigo e pediu-lhes água:
— Entre para beber, disse-lhe Eustáquio.
— E traga aquele desgraçado, acrescentou o sacerdote, indicando o malfeitor ferido, que gemia esforçando-se por livrar-se do cadáver que caíra sobre ele.
Um minuto depois, era o ferido deitado a um canto da sala principal da habitação pelo paraense, que fechou a porta que dava para fora, e, havendo saciado a sede causada pelo combate terrível em que ele tomara parte, contou a Eustáquio o que se tinha passado.
Estavam os paraenses e Ruperto assustados por causa dos estranhos assobios no momento em que viram se transformar a fisionomia dos novos engajados, que eles reputavam seus verdadeiros companheiros. Antes que pudessem servir-se das suas armas, foram atacados violentamente. Um dos paraenses caiu logo morto pelas mãos dos engajados convertidos em inimigos. Ruperto e os outros paraenses, mais ou menos feridos, foram forçados a recuar do lado dos fundos da habitação, onde principiara a luta, até o lado do Iapurá. A retirada, porém, não foi apressada. Tiveram tempo os que a efetuavam de ver um indivíduo de cor branca e cinco negros transporem as paliçadas e, chegando à porta da cozinha, arremessarem-se a ela manejando fouces. Na frente da casa findou-se o combate, depois de sucessivamente rolarem por terra dous paraenses, Ruperto e dous inimigos, mortos, e outro destes feridos, e quando o último dos malfeitores fugiu, entregando com o campo a vitória ao último dos verdadeiros defensores de Eustáquio.
O padre Jorge chegara-se para o ferido. Abrindo-lhe o peito da camisa, descobriu um golpe profundo que lhe dera a faca do paraense. O desgraçado malfeitor estava perdido. Acreditando que o ferido desejava beber água, o padre Jorge, levantando-lhe com uma das mãos a cabeça, com a outra aproximou-lhe um copo da boca. O bandido moveu convulsamente as pálpebras e lançou ao sacerdote um olhar de rancor.
— Beba! insistiu o padre Jorge. O miserável fechou então os olhos e voltou bruscamente a cara. Quis vomitar alguma blasfêmia... Só pôde expelir uma onda de sangue e soltar um grunhido cavernoso, o seu último suspiro.
O padre Jorge depôs entristecido a cabeça do morto no soalho e dirigiu-se para Eustáquio, que, sem ver o que se passava na sala, estava abraçando comovido seu dedicado defensor. O marido de Branca, ao aproximar-se o padre Jorge, separou-se do paraense e prestou ouvidos a umas marteladas aterradoras que retumbavam pela casa. A porta da cozinha era atacada ainda pelos golpes de fouces dos malfeitores, que chegavam para terminar a obra começada pelos seus companheiros.
— Meus amigos, disse a meia voz Eustáquio, dirigindo-se ao padre Jorge e ao paraense, a nossa situação, não dissimulemos, é quase desesperada. Se algum socorro não nos chegar de S. João do Príncipe antes do arrombamento da porta da cozinha, só nos restará correr para o roseiral, atacar os sete bandidos que querem invadir-me a casa e morrer em suas mãos, deixando Branca, Rosalina e o meu filhinho entregues a Deus.
O marido de Branca parou como que fatigado pelo esforço que fizera para pronunciar aquelas palavras.
Depois prosseguiu, maquinalmente, deixando ver a preocupação do seu espírito:
— Esse socorro não virá sem que se o vá buscar... Eu vou ao povoado. Em breve estarei de volta, trazendo-vos... a salvação.
O padre Jorge e o paraense quiseram dizer alguma cousa.
— Não há nada a observar, meus amigos, ponderou Eustáquio, em tom firme. É talvez perigoso alguém se aventurar lá fora, mas eu espero que serei feliz... Além do que, quando se trata de salvar a muitos, um pelo menos tem o dever de se arriscar... Eu parto... Até já!
E, antes que os seus amigos tivessem tido a idéia de o deter, Eustáquio encaminhou-se para a porta que dava para o roseiral. Quando suas mãos tocavam a chave da porta, ele ouviu uma voz murmurar-lhe ao ouvido, com a suavidade de um ósculo:
— Adeus!
Voltou-se... Ah! Branca jazia ensangüentada aos seus pés!
Uma detonação forte ressoara.
Enquanto o pobre marido se deixava cair sobre o corpo inanimado da mulher, o padre Jorge e o paraense, meio aturdidos pelo inesperado lance, olhavam com terror por uma janela para o roseiral. Lá fora, empoleirado sobre a cerca, avistava-se um negro. Um bacamarte fumegava-lhe nas mãos. O perverso ria-se do efeito do seu tiro.
Branca vira, da alcova, este miserável apontar uma arma para dentro da casa. Saíra ligeira do aposento e, verificando que Eustáquio era o alvo do bandido, possuída de um heroísmo de que ninguém a julgaria capaz, correra a defender com o seu o corpo do esposo. No momento em que este ouvia o seu doloroso adeus, a carga inteira do bacamarte lhe crivava as costas.
Passada a primeira impressão daquele desgraçado incidente, o padre Jorge e o paraense lembraram-se de fechar, por precaução, todas as janelas que se achavam abertas, deixando o interior da casa em uma meia escuridão, que o crepúsculo vinha aumentar. O infatigável engajado de Eustáquio arrastou um leito para a sala e nele deitou com todo o cuidado a infeliz Branca, que continuava desfalecida.
Inútil é dizer que Eustáquio esquecera a sua situação quase desesperada, o meio de salvação que ele resolvera tentar, tudo, só para entregar-se a sua dor. Quem o visse prostrado, com uma das mãos de Branca colada aos lábios, as feições alteradas pelo desespero, os olhos fechados, mas enxutos ainda, não reconheceria nele o enérgico homem que fora o subdelegado de S. João do Príncipe. Aos pés do leito soluçava Rosalina, orando de joelhos. Entretanto o padre Jorge examinara as feridas de Branca e as refrescava com água fria trazida pelo paraense, que nessa ocasião carregava algumas armas, olhando, ora tristemente para a jovem ferida, ora com ferocidade para o lado da cozinha, cuja porta via fender-se sob os golpes dos bandidos.
Branca deu um gemido quase imperceptível e abriu os olhos.
— Oh! gritou Eustáquio, levantando-se de um pulo e segurando o braço do padre Jorge. Está viva! Não morreu não! Deus não quis matá-la. Ah! se ela morresse eu seria um réprobo. Ela morreria por minha causa!... Padre Jorge, ela coitada queria fugir e eu... miserável!... me opus! Me opus!... ali está a minha obra!...
O pobre homem apontou para a esposa. Depois, inclinando-se para ela exclamou:
— Mas tu não morrerás, não, Branca! Deus não será tão cruel para mim!...
E dos seus olhos irromperam as lágrimas, que até então se tinham recusado a conceder-lhe alívio ao sofrimento.
Branca encarava-o com doçura, ao passo que trocava com Rosalina infinitos beijos. A menina já a considerava salva.
O padre Jorge, que conhecia o estado da ferida e se lembrava dos malfeitores, não teve forças para fingir que estava também satisfeito. Afastou-se do leito de Branca e o paraense pode perceber que ele se arredara para chorar.
Com os olhos cheios de lágrimas, que lhe foi impossível conter, o sacerdote entrou na alcova da sala e deu uma volta pelo aposento. De passagem viu no seu berço o filho de Eustáquio, dormindo tranqüilamente. As pancadas incessantes com que os bandidos abalavam a porta da cozinha não perturbavam o sono do inocente.
— Pobre anjinho! disse consigo mesmo.
Antes de deixar a alcova, deparou com uma cruz. Apoiou os cotovelos sobre o móvel em que ela se achava e estas palavras rebentaram-lhe do peito:
— Por que não os salvais, meu Deus?!
E depois:
— Otávio, então desapareceste?!
Ao aproximar-se de novo da mulher de Eustáquio, o padre Jorge teve uma visão desagradável.
Apenas as frestas das janelas davam a fraca claridade que havia no interior da casa. Uma destas frestas projetava no soalho uma zona branca de luz, que ia bater no semblante lívido do cadáver do bandido que o paraense trouxera do roseiral. Aquele rosto, com a boca arregaçada pela última contração da morte, parecia sorrir de escárnio ante as cenas que se passavam na sala!
Desviou os olhos daquilo e, vendo Branca mover apressadamente as pálpebras, o padre pensou que ela queria dizer alguma cousa e abaixou-se para ouvi-la.
— Meu padre, disse ela, eu vou morrer... quero me confessar.
Por mais baixa que fosse a voz de Branca ao dizer essas palavras não deixou de ser percebida por Eustáquio, nem pela sua protegida.
A declaração de Branca fez voltar-lhes o desespero do ânimo.
— Não chorem, pediu-lhes a moribunda, eu vou para Deus...
O padre foi à alcova buscar a cruz que lá vira. Quando ia voltar ouviu um estrondo assustador. A porta da cozinha desabara afinal. Os bandidos tinham aberto passagem. Os seus passos ressoaram no corredor central da casa.
— Oh! está tudo acabado, disse com tristeza o padre.
E, empunhando a cruz, precipitou-se na sala.
O paraense, com admirável presteza e grande risco, fechara a porta que havia na entrada do corredor, e, afrontando as balas dos malfeitores, levantara novo obstáculo diante deles.
Este obstáculo, porém, era insignificante. Em poucos momentos devia chegar o desenlace do drama.
Enquanto isto tinha lugar, junto do leito de Branca era doloroso o que se via.
A infeliz moça agonizava. Debruçados sobre ela, como se pretendessem abrigá-la dos golpes do anjo da morte, Eustáquio e Rosalina pediam a Branca que não morresse... Mas não era possível. A moribunda, por um esforço supremo, ergueu os braços, querendo enlaçar os que regavam de lágrimas ardentes as suas faces resfriadas... os braços caíram-lhe como se de um só golpe houvessem sido decepados...
Exalou um gemido prolongado, e, de envolta com o seu estertor extremo, balbuciou:
— Meu filho!
Nesse momento chegou o padre Jorge. Era já tarde. Eustáquio e Rosalina apenas abraçavam então um corpo que o frio da morte conquistava com rapidez.
O barulho da queda da porta arrombada pelos malfeitores acordara o filho de Eustáquio. Os vagidos da criança respondiam ao apelo derradeiro da sua mãe.
— E ele não recebeu o batismo! disse o padre Jorge lembrando-se de que o filhinho de Branca não fora ainda batizado.
Antes de correr à alcova para administrar ao menino o necessário sacramento, o sacerdote conheceu que se rachavam as tábuas da porta que o paraense opusera aos bandidos... Através de fendas, avistou o clarão de alguma vela que os malfeitores haviam achado e acendido. A porta ia desprender-se das dobradiças!
— Meu amigo, disse então a Eustáquio, encomenda a Deus a tua alma e...
— Ah! ah! ah! ah!
Uma gargalhada horripilante de louco, que João Caetano não poderia repetir no palco, retroou na sala.
Através da escuridão que aí havia, o padre Jorge tentou distinguir quem a soltara. Acreditou que já estavam na sala os bandidos. Não era isto.
— Meu padre, continuava uma voz em que o padre Jorge reconheceu com indizível dor a do seu amigo, tu queres... que eu encomende?... E a tua?... A Deus? Ah! Ah! Ah! A Deus?... A minha... já está encomendada!... E Branca?!...
O acento selvagem destes vocábulos desconexos fez o sacerdote tremer.
— Meu Deus! Será castigo? exclamou ele, persignando-se com terror...
A porta do corredor desprendeu-se. O fim chegava.
A claridade de uma vela alumiou a sala. A essa luz, o padre Jorge conseguiu ver o seu malfadado amigo encolhido perto do sofá, como um animal espavorido; Rosalina desmaiada no chão; o paraense no meio de um bando de homens, combatendo como um leão furioso, e ainda a cara do cadáver, contemplando tudo com o escárnio que a morte estampara nela.
Imediatamente porém apagou-se a luz, e o padre pôde somente perceber depois que a sala era o teatro de um combate horrendo, de uma luta cega. Quis, rompendo as trevas, chegar ao berço do menino, cujo choro o rumor da luta abafara, mas não tinha avançado três passos, quando uma bala desviada do meio dos combatentes o fulminou...
Alguns minutos mais tarde, apenas dons homens andavam pela sala.
A vela que puderam reacender deixava ver que eram um negro e um dos bandidos espanhóis. O negro era o miserável José, que o leitor conhece, e o outro era o chefe da quadrilha dos inimigos de Eustáquio. Estes dous velhacos se tinham refugiado na cozinha durante o combate e apareciam depois de tudo acabado. Ao redor deles estavam estendidos numerosos cadáveres e Rosalina ainda desmaiada.
Entre os cadáveres via-se o do mísero inocente, filho de Branca, o de Eustáquio, que fora barbaramente morto sem tentar defender-se e o do paraense que caíra dilacerado por muitos golpes; mas depois de haver tirado a vida a cinco malvados.
Quando Rosalina voltou a si, achou-se ao ombro de um indivíduo, que a carregava brutalmente para as florestas. Fez um esforço enérgico para escapar das mãos que a prendiam. Foi debalde. Olhou em torno de si, procurando com os olhos o anjo de salvação que tantas vezes a socorrera.
Avistou então a alguma distância um outro indivíduo que a noute não deixava claramente perceber e diante dele uma sombra, que corria a agredi-lo.
Adivinhou logo quem era a sombra.
Quis gritar. A mão grosseira do seu carregador tapou-lhe a boca e ela sentiu que ele deitava a correr para a mata. Fez uma contorsão desesperada, mas, exausta, deixou pender depois a cabeça para as costas do infame que a arrebatava...
A sombra que Rosalina avistara era Otávio Dugarbon; porém o bravo menino não chegava a tempo...
Passara grande parte do dia escondido nas ribas do Iapurá, a pouca distância da habitação de Eustáquio.
A demora dos malfeitores fê-lo crer que eles não apareceriam naquele dia. Deixando o seu posto, ele seguiu para S. João do Príncipe, onde demorou-se até cair a noute.
Voltou então para o lugar que ocupara de dia, indo pelo rio, embarcado em uma pequena canoa, para não ser apercebido.
Estava a meio caminho, quando alguns tiros longínquos chegaram-lhe aos ouvidos. Sem demora encostou à margem a sua embarcação, saltou em terra e, tirando da cintura uma faca, única arma que nessa ocasião levava, lançou-se de carreira para a habitação de Eustáquio. Quando lá chegou, apenas viu dous indivíduos, que, sem pressa, saíam de dentro do cercado daquela habitação. O fardo era Rosalina, desmaiada. Um outro homem corria na frente.
O bandido ouviu os passos... olhou para trás, e, com pavor, viu aquela sombrinha que o ia acometer. Como os gladiadores da antiga Roma, saltou para o lado, fez fincar-pé e ergueu acima da cabeça um punhal, que tirara do seio, para baixá-lo sobre o seu agressor.
Otávio, com felina agilidade, furta-se ao golpe da arma, que desce rasgando somente o ar Agacha-se. Ergue-se, cosendo-se ao corpo do malfeitor e, sem que este o espere, mergulha-lhe no peito toda a lâmina da sua faca.
O bandido não deu um só gemido. . . Caiu sobre a menina, que foi atirada ao chão pelo peso do corpo do seu adversário.
De súbito, Otávio sentiu nas costas uma dor aguda e soltou um grito involuntário. Antes de cair, o malfeitor apunhalara-o pelas costas. O menino levou a mão à ferida e arrancou a arma, que os dedos de um morto já não seguravam.
Em seguida, horrorizado pela idéia de ter sobre si um cadáver, moveu-se bruscamente e fez rolar para um lado o peso que o oprimia.
Nesse momento, um brado pungente veio perturbar o silêncio da noite. Uma voz de criança gritou ao longe:
— Otávio! Otávio!
— É ela! É ela! exclamou o menino em francês.
O chefe da quadrilha fugia pelo mato com Rosalina ás costas. Otávio quis levantar-se para socorrer a quem o chamava. O infeliz não teve forças. Erguendo-se, por um instante, caiu prostrado.
— Meu Deus!... disse, apenas, e rompeu em soluços.
— Otávio! Otávio! repetiu mais longe a voz de criança.
— Ai! gemeu com desespero o menino.
Por um esforço inaudito, pôs-se de pé, mas não conseguiu dar um passo sequer... Caiu de novo... Ficou sem movimento no chão... Balbuciou:
— Meu pai, está satisfeito?
E morreu...
— Otávio! Otávio!
Estes gritos lancinantes partiram ainda uma vez do âmago das trevas, mas já fracos... imperceptíveis quase.
Depois, mais nada... a noute a ciciar um cântico sobre a hecatombe.
Alta noute, no mesmo teatro das cenas de sangue que acabamos de narrar, passou-se uma cousa indescritível.
Um homem apareceu correndo do meio da escuridão dos bosques. Trazia nos braços uma carga, que não parecia pesar-lhe.
Inesperadamente ele parou.
Tropeçara em um objeto.
— Mais outro?! murmurou ele, em francês.
E abaixou-se para ver em que esbarrara.
Nessa ocasião o minguante da lua, levantando-se, mostrou-se no céu e difundiu alguma luz pelo campo.
Então, como se essa luz viesse queimá-lo, o desconhecido deixou partir dos seus lábios um som apenas comparável ao uivo derradeiro do cão a morrer.
— Morto! disse depois.
O objeto em que tropeçara era o cadáver de Otávio.
Depôs então o seu fardo em terra e ajoelhou-se ao lado do menino morto.
Aquele fardo era o corpo de Rosalina. O desconhecido o encontrara na floresta, despido e sacrilegamente maltratado, e o trouxera envolto no seu capote.
Com dous estertores pronunciou dous nomes e chorando debruçou-se para os cadáveres.
— Meus pobres filhos! exclamou ele.
Em tom de desespero acrescentou: - Meu Deus! Meu Deus! Ambos assassinados!
E, abatido pela dor, estirou-se ao lado dos douscadáveres.