Auréola
- Capítulo 1
- z
- Capítulo 2
- y1
– Estamos no dia anterior ao das eleições e a luz vai deslocando e confundindo as sombras entre as quatro paredes que, juntas com a perspectiva e com o contraste, me dão a dupla sensação de clausura e abrigo. Lá fora, o campo, a terra, os homens, um universo curvo e quadrado prestes a nascer, já envelhecido, ultrapassado, redivivo. Aí fora, você. Intuí que receberia a tua ligação. Ou a tua visita. Para mim ambas as coisas são um só encontro. Não demorou muito para nos falarmos... – Como está o tornozelo, F.? – Melhorando. Hoje já consegui ficar alguns poucos minutos de pé. – Justo um dia antes das eleições! – Ou justamente por causa disso... No entanto, estou aproveitando esse recolhimento brusco. Dei uma olhada nos meus livros, que me assombram com suas lombadas e grossas páginas. Sim, trouxe alguns comigo, ou me trouxeram... Ah, dei uma rápida folheada em diversos deles: O Príncipe de Maquiavel, O Leviatã de Hobbes, O Manifesto Comunista de Marx e Engels, A República de Platão. – Maquiavel. Quero te informar que há uma nova procura, mundial, por romances distópicos e por Maquiavel... – Não à toa: é o zeitgeist deste século ou, tomara, da primeira metade dele apenas... – Acho incrível este teu empenho absolutamente raro, mas eu incluiria Darcy Ribeiro, Sérgio Buarque de Holanda e aquele do João Ubaldo Ribeiro... – Ah! Calma! Há uma segunda leva de livros que me trouxeram. Tenho O Povo Brasileiro (1995), de Darcy Ribeiro, cheio de ideias originais, trepidante, de estilo movimentado e simples, com o pungente subtítulo "A formação e o sentido do Brasil". Abaixo desse na pilha, o profundo e inspirado Raízes do Brasil (1936), de Sérgio Buarque de Holanda, sobre a natureza do brasileiro e da sociedade brasileira a partir da caracterização do português e de sua herança. Livro que merece a reputação, o respeito e a consideração obtidas. Traça as cidades, analisa a atitude diante do trabalho, o modo de ser, chega até a organização política. O papel do colonizador no nosso destino, configurando um Brasil contemporâneo enquanto realidade não mais luso–brasileira, mas, como ele próprio define, "americana". Depois, o sólido e abrangente História dos Índios do Brasil (1992), com escritos de vários especialistas, organizado por Manuela Carneiro da Cunha, que trata de arqueologia, linguística, do histórico do índio no passado e hoje. Logo abaixo, O Abolicionismo (1883), de Joaquim Nabuco, e fiquei feliz de encontrar uma boa edição. O claro, sintético, penetrante Ser Escravo no Brasil (1982), de Kátia de Queirós Mattoso, tava logo depois. Uma visão geral, sem aparato erudito, tratando da raiz africana, da escravização e tráfico, terminando nas reações dos escravizados: tentativas de alforria, fuga, rebelião. O especializado A Escravidão Africana no Brasil (1949), de Maurício Goulart, e A Integração do Negro na Sociedade de Classes (1964), de Florestan Fernandes, demonstrando com profundidade a exclusão sócioeconômica do antigo escravo depois da Abolição, vinham logo depois. Esses últimos livros que citei são livros–chaves para entender um dos maiores dramas da história brasileira, ainda pertinente no desequílibrio nacional hoje em dia. Fiquei surpreso também de encontrar Casa Grande e Senzala (1933), de Gilberto Freyre, logo depois deles, pois, passado o trinome, os três elementos formadores (português, índio, negro), se deparar assim com a caracterização da sociedade que eles constituíram no Brasil... É certo que este livro é polêmico, sempre foi alvo de várias crises, sobretudo da esquerda, mas seu estilo de escrita continua perspicaz, por ser livre, e completa, de certa forma, a noção de raça pela de cultura. Nunca gostei desta palavra, "raça", prefiro etnia, mas tudo bem, quando usada com boas intenções... Quem leu sabe que mostra o papel do negro no nível mais íntimo da vida familiar e mesmo no caráter brasileiro, e esta foi talvez a sua inovação. Ainda disseca a relação entre as três raças, etnias, e dá uma significação inédita ao fato da mestiçagem. Há vários pontos de vista ainda pertinentes neste livro, como o de que nosso país, o Brasil, é uma prefiguração do mundo futuro, porque já está adiantado na fusão inevitável de etnias e culturas, ponto de vista esse que até o Stefan Zweig sentiu e registrou no Brasil, País do Futuro ( ), que também estava na pilha. Mas não pense que acabou, não! Nesta mesma pilha, logo abaixo desse livro, ainda sobre a sociedade colonial fundadora, encontrei outro clássico, Formação do Brasil Contemporâneo, Colônica (1942), de Caio Prado Júnior, que se detém ao nível econômico, mais do que ao cultural. Com a noção de um geógrafo, demonstra a expansão demográfica que estabelece aos poucos o perfil do nosso território. A dimensão material é privilegiada, através da organização sóciopolítica, e de forma muito coerente. D. João VI no Brasil (1909), uma das maiores obras da nossa historiografia, e O Movimento da Independência (1922), de Oliveira Lima, trata da independência política. Sim, você deve ter percebido, como eu percebi, que os livros estavam organizados de forma coesa, "cronológica", entre aspas, ou seja, proposital, porque, logo depois da sociedade colonial bem representada, me deparei com estes dois livros. E, abaixo, A América Latina, Males de Origem (1905), de Manuel Bonfim, creio que indispensável ainda hoje, pois analisa a brutalidade e mesmo as diversas crueldades das classes dominantes, parasitas do trabalho escravo, tendo depois promovido a separação política para conservar o status quo e prolongar seu domínimo. Este livro garante, assim, uma espécie de conclusão lógica do conservadorismo como marca da política e do pensamento brasileiro a impedir a marcha da justiça social. Veja que estamos falando de um livro de 1905! Mesmo sem a envergadura de um Oliveira Lima, monarquista e conservador, Manuel Bonfim tinha espírito socialista e, por isso mesmo, capaz de desmascarar a desigualdade e a opressão no Brasil e em toda a América Latina. O livro termina, no entanto, com esperança e força, de forma praticamente espiritual, com a palavra "luz", como se nos encorajássemos ainda hoje, agora, já. Muito bem. Se você ainda estiver me acompanhando, sabe que estamos na instalação da monarquia pelos conservadores, e iniciando o período imperial, por isso o livro imediato a aparecer foi Um Estadista do Império (1897), de Joaquim Nabuco, mesmo que seja familista, girando em torno de um único personagem, pai do autor, provavelmente por conta disso é que logo em seguida está o Do Império à República (1972), de Sérgio Buarque de Holanda, que traça o caminho que levou à mudança de regime. Este volume faz parte da coleção História Geral da Civilização Brasileira, dirigida por ele. Funcionamento da administração e vida política, dilemas do poder, caracterização peculiar do parlamentarismo brasileiro, regido pelo imperador. Na pilha também tenho uns livros do Machado de Assis, e me chamou a atenção o livro de crônicas selecionadas, este gênero tão genuinamente brasileiro, pois Machado foi grande testemunha–ocular da época, de reviravoltas pelo mundo, da passagem da monarquia para a república, da escravidão para o liberalismo, do século 19 pro século 20... Enfim, já neste fim de século 19 e início de século 20, período republicano, temos a expansão e o isolamento geográfico cultural entre populações sertanejas e civilização urbana, dois Brasis praticamente alheios um ao outro. Eu sabia que não poderia faltar Os Sertões (1902), de Euclides da Cunha, livro estupendo, uma obra prima, que mistura ciência, alto jornalismo (como realmente deve ser o jornalismo), fraseado às vezes poético. Estudo do homem, da terra. É incrível. E a indignação, está ali, toda a indignação diante da miséria e do extermínio de Canudos. Assim como houve com Tiradentes na monarquia, Canudos (em proporções e contextos diferentes) na República militar. Seguimos, e nos deparamos com o período da Proclamação da República até os anos 30, nas zonas adiantas, e mesmo ainda hoje, em zonas "distantes", com os "coronéis", chefes políticos locais em torno de um contexto de oligarguia dos proprietários rurais e manipulação política numa sociedade de privilégio. Por isso, na pilha, Coronelismo, Enxada e Voto (1949), de Vitor Nunes Leal, sobre os mecanismos políticos da chamada República Velha (1889–1930), inclusive analisando aspectos positivos dos líderes municipais. Da oligarguia de base rural, passamos para a burguesia de base industrial, e pensamos logo na Revolução de 1930. Há vários livros sobre isto, mas na minha pilha estava o fundamental A Revolução Burguesa no Brasil (1974), de Florestan Fernandes, denso e cerrado, tratando do cruzamento entre dimensão e histórica e tipos sociais, o que culmina na nova modalidade de liderança política e econômica. Talvez você pergunte: E o imigrante, além do português, do índio e do negro? Estava lá, na pilha: A Aculturação dos Alemães no Brasil (1946), de Emílio Willems, Italianos no Brasil (1959), de Franco Cenni, Do Outro Lado do Atlântico (1989), de Ângelo Trento, e mais outros cinco, sobre a imigração de vários outros povos, japoneses, por exemplo, que vieram aos montes, espanhóis, e o papel dos franceses no ensino, etc. Não pense que tenho memória tão prodigiosa assim! Há outros livros na lista que depois te forneço os títulos, pois os autores eu sei de cor: Oliveira Viana, Alcântara Machado, Fernando de Azevedo, Nestor Duarte, Raimundo Faoro, Celso Furtado, Fernando Novais, José Murillo de Carvalho, Evaldo Cabral de Melo... Esqueci algum? Os últimos livros, como você deve ter presumido, tratam dos governos complexos de Getúlio Vargas e de toda a diversidade social neles e no resto do mundo, depois JK, período de abertura política, Brasília, Jango, 21 anos de ditadura militar (consigo me lembrar que há inteira aquela série obrigatória do jornalista Elio Gaspari, "A Ditadura Envergonhada", "A Ditadura Escancarada", "A Ditadura Derrotada", "A Ditadura Encurralada", "A Ditadura Acabada", e também "1964", de Almino Affonso, ministro do trabalho de João Goulart), depois três livros sobre a redemocratização e, por fim, outros sobre Collor, FHC, Lula, Dilma etc. Ufa!
– Ufa! Não diria para ler tudo logo, se bem que tenho certeza que você já deve ter adiantado as leituras, mas te digo que a própria decisão da tarefa de ler isso tudo já altera a noção de tempo, um tempo muito mais substancioso do que o corriqueiro, e já motiva e estimula este momento que você está vivendo... – Sim. Antes de você me ligar, estava lendo Leaves of Grass do Whitman. Já estou nas páginas finais. Um livro tido como obrigatório, e é claro que eu já conhecia, mas confesso nunca o ter lido a fundo. Que extraordinário experimento esse do Whitman! A ideia de escrever uma epopeia, um épico da democracia! Não há personagem principal. Ou melhor, todos são o personagem principal! Cada leitor, o próprio autor e até mesmo quem não leu são o protagonista! Há ideia mais democrática do que essa? Traz no plano concreto da poesia todo o ideal de liberdade e democracia da essência americana tal como ela pretendia ser. Hoje em dia, nos Estados Unidos e no Brasil, na Europa ou no Oriente, é claro que tal palavra anda meio prostituída... Não era o Saramago quem denunciava isso? “As grandes decisões hoje não vêm do povo nem dos políticos eleitos”, algo assim, como de fato deveria ser numa democracia. FMIs, bancos mundiais, cúpulas internas, grandes organizações financeiras internacionais é quem decidem, mandam, desmandam, governam. “Onde é que está a democracia?!”, ele questionava. Seja lá qual for o presidente americano eleito, democrata ou republicano, conservador ou mais liberal, quem manda mesmo são uns engravatados secretos que determinam o que pode e o que não pode ser feito. Aqui mesmo, você e eu sabemos, todo brasileiro usa aquela expressão: fulano ou determinado político é “testa–de–ferro”... Se você soubesse como eu desejo que esses “bastidores”, ou seja, que essas zonas secretas, antidemocráticas, afastadas sejam cada vez mais escancaradas, desmistificadas, descobertas, desmanteladas! Acho que tenho dado alguma contribuição neste sentido, dentro das minhas possibilidades específicas... Mas, enfim, neste livro estupendo há o Walt Whitman como personagem, seja uma porção dele ou projeção sua, mas há também o leitor, e também cada leitor do futuro. O personagem de Leaves of Grass é completamente incomum, porque não é o autor que escreveu o poema, é muitas pessoas simultaneamente. Ele pergunta determinadas coisas a um certo Whitman sobre o que ele vê, o que ele ouve, mas, na verdade, são perguntas direcionadas a nós próprios, ao próprio leitor, ou seja, cada um de nós, enquanto lemos esta obra, nos tornamos um personagem de Walt Whitman. – Que curioso! E a sua empolgação me deixa com vontade de ler também! – Quiçá este é o experimento mais marcante de toda a história da literatura! Pelo menos neste momento, com nosso zeitgeist transnacional à flor da pele, é esta a impressão que me dá! Não obstante, estamos falando dum ótimo poeta. – Não foi o Jorge Luis Borges quem declarou que a democracia é um abuso de estatísticas e nada mais? – Acho que sim. No plano das ideias abstratas, é assim mesmo que ela faz parecer. Foi o mesmo Borges, porém, quem viu Whitman de forma soberba, revelador de uma felicidade espinosiana sublime, panteísta e também tirana, esse prazer carnal, essa totalidade, inclusive política... Sabe, de qualquer forma, Rousseau achava que sociedade e corrupção são praticamente sinônimos. Cito isto porque, com ou sem Brasília, e antes dela, esta conclusão cada vez mais me parece correta. Mas, diante desta conclusão, é preciso fazer alguma coisa. Diante de qualquer horror e corrupção, cabe ao homem íntegro e ético dizer a si mesmo e aos seus que jamais agirá igual. A declaração o compraz por si só e o livra de qualquer melancolia, revolta impotente ou impacto. – Podemos falar sobre o episódio de ontem? – Melhor não. Seria incrível que aquele dia sem símbolos ou premonições significasse a minha morte. Quero pensar no agora. Só o agora existe. Longo silêncio. – Não quero que fiques sem jeito por conta das minhas frases marcantes e do meu temperamento atual flutuante, falando sobre política de forma aparentemente abstrata... – Não, não me parece abstrato... – Que bom, porque nem eu acho que estou sendo abstrato. – Você demonstra concretude, certeza, como nunca antes, talvez. – Não pareço louco? – De jeito nenhum! – Que bom! O ato de ontem me fez pensar em muita coisa. Ou me fez sentir muita coisa. Ou ambas as coisas. Soltei um longo “ufa”... – Eu imagino... – Mas insisto no agora. Insisto! Tudo nos acontece de forma precisa no agora. Os séculos existem? Os fatos só ocorrem no agora. Mas a memória acalanta. Sabe de uma coisa? Você me fez lembrar de um antepassado meu, não importa agora o grau de parentesco. Era anticapitalista, isto é, contra o financismo centralizador, a vida mercantilizada, os grandes oligopólios, contra a elite dita burguesa. No entanto, não concebia um mundo governado por operários. Apontava antes para um humanismo total. – Parece que está falando de si mesmo. – Talvez. A memória já me confunde... Não, não estou ficando gagá, de jeito algum. Mas vou contar outro detalhe sobre este meu antepassado e você vai ver só onde quero chegar. Era comunista, quer dizer, chegou a entrar no Partido, depois saiu. No começo, como todos os comunistas, queria redenção, imaginava um mundo sem fronteiras, um mundo de paz e de justiça social. Logo se desencantou com o imperialismo soviético, antes mesmo dos crimes de Stálin serem descobertos, o que, como você sabe, desestabilizou e dividiu completamente a esquerda mundial. Muito antes. Porque ele assistiu, por exemplo, Outubro Vermelho e O Encouraçado Potenkin e não gostou. São filmes belíssimos, sem dúvida, mas lembro dele dizer, eu era muito pequeno, ele já quase moribundo: “Em nenhum momento se prestou uma única palavra ou um único ato generoso ou de diálogo com os inimigos! Estes são sempre vistos como demônios ou como ridículos... Panfletagem, fanatismo exacerbado...” E depois recitava Maiakóvski de cor. Por fim, antes de nos despedirmos: “Não que não existam seres capazes de matar um bebê indefeso num carrinho, uma mulher e uma idosa, mas devagar...” No entanto, tais considerações, sempre ecoando dentro da minha cabeça, jamais atolariam meu abalo estético monumental diante da cena monumental de Odessa... Não sei, às vezes penso também que o anarquismo levaria a um bom futuro: nenhum governo no mundo, nenhum mecanismo de poder, público ou privado. Ou, quem sabe, um governo municipal, como o de Spencer... Spencer denunciava brilhantemente, numa espécie de profecia, a intromissão tirânica i gradual do Estado na vida do indivíduo. – Qualquer controle soberano incomoda. – Por falar em Maiakóvski, estou aqui também com o meu xodó, que eu também trouxe para Brasília junto com todos os outros volumes que já citei: A Poesia Russa Moderna traduzida e coletada pelos irmãos Campos e pelo Boris Schaiderman. Preciso dizer, se é que já não lhe disse, como me anima o caráter vanguardista e revolucionário desses poetas! Coitado deles! Do futuro deles! Sorte a minha, que posso lê–los e animar minha alma subjetiva mas imanente. Sinto verdadeiro desdém pelo desejo de poder... Não o de Nietzsche, que é vontade de potência, mas o poder efêmero, de superfícies fofas, aparente, tão comum entre empresários e políticos! Como Marco Aurélio e Epiteto e outros estóicos entenderam: nem senhor, nem escravo, porque não há, nesta relação, um reconhecimento recíproco; logo, o senhor também é escravo. – Achar o meio termo. – Muito simples: o comunismo não dá certo, porque, se existe uma biodiversidade na natureza, vai existir sempre uma biodiversidade natural; e também porque, embora os homens possam ser iguais em direitos, não são iguais em qualidades... Da mesma forma, o capitalismo, com suas constantes crises, centralizações, injustiças e coerções, só falsamente ele “dá certo”: porque, embora haja uma mesma base psíquica e antropológica entre os homens, aquelas qualidades muitas vezes não conhecem limites, e também porque, naturalmente procurando os mesmos direitos apesar das diferentes qualidades, no capitalismo os homens não os encontram inteiramente... – Você fez simples dois sistemas complexos. E o que pensas das revoluções que... – Repara, todas as revoluções são desnacionalizações. – Em que sentido? – Também é preciso frisar a utilidade social das revoluções. As condições sociais em que elas se dão. Você acredita em milagres? – Não. – Acreditar na eficácia duma revolução é exatamente a mesma coisa que acreditar na realidade dum milagre. Estou me referindo à intervenção antinatural da vontade humana no curso natural da sociedade. Parece mais absurdo supor que um mago ou um taumaturgo ou um milagreiro possa brincar com as leis da física e da natureza do que supor que um grupo de homens aja diferentemente do que o outro grupo deposto. Os detentores do poder, por mais corruptos, desprezíveis e antiéticos que sejam, têm ao menos certa noção prática do poder, sabem, pelo menos, como administrar. Os revolucionários, mais ou menos do mesmo meio que eles, portanto suscetíveis aos mesmos vícios, não têm a mesma prática. Assim, para além da corrupção e da antiética viciadas, há ainda esta questão da incompetência. – Brilhante observação. – Tudo depende. Prefiro Gramsci, que alguns poucos marxistas heterodoxos implantam na educação: revolução sem armas, formativa, cultural. Mas não se deve estigmatizar as instituições políticas. Folheei um dia a Política de Deus, Governo de Cristo, de Quevedo, praticamente esquecido hoje em dia. Creio que consegui naquelas máquinas de livros no metrô de São Paulo, meses atrás... Os 47 capítulos pretendem mostrar que a vida i as palavras de Cristo são símbolosoluções a serem decifrados pelos políticos. Episódio da samaritana: os tributos dos reis devem ser leves. Episódio da distribuição de pães, i peixes: os reis devem remediar as necessidades. Repetição de sequebantur: o rei deve "conduzir os ministros, não os ministros o rei." – Por que tantas enumerações, F.?! Até parece um monólogo! Parece que você quer fugir de alguma questão que eu possa trazer, parece que está disfarçando... – Não, de jeito nenhum. Estou sendo chato? – Você nunca é chato! Aprendo muito contigo, mas... – Se me permite, gostaria de continuar minha linha de raciocínio, para que você veja onde eu quero chegar. Sei que divago e me disperso demais, mas é que você não imagina o quanto estou animado! Permite? – Por favor... Você espraia erudição... – Pois bem. É sobre a Renda Básica, ou Basic Income, preconizada por Paul Mason, David Graeber, Brian Eno e Eduardo Suplicy. E outros. Seria uma conquista inestimável, sem precedentes, superação e sofisticação humana. Seria justamente a síntese entre comunismo e capitalismo, superação ou simbiose da dialética entre direito e qualidade, da dicotomia indivíduo versus coletividade. Não acha? – Eu diria que é um projeto de socialismo democrático e de economia solidária, e que estava ou está nos seus próprios planos. – Sim, também, mas é algo absolutamente para este século. Os governantes é que ainda não se deram conta. Quer dizer, alguns deles já se deram... Por falar nisso, me desculpe por parecer tão chato, mas preciso dizer, já que temos mais algum tempo para continuarmos falando: reconcebi nesta manhã um livro que venho pensando há meses. Depois larguei o livro, que me pareceu impossível de continuar, fruto da minha angústia pessoalnacional e da minha necessidade de expressão. Posso revelar, no entanto, que seria uma terceira (e única) parte, não sei se para atiçar os leitores ou se para dar entender que tratava–se duma obra aberta, sem verdades absolutas, e apenas uma visão dentro de outras possíveis e incontáveis, como o futuro da nação. Dessa conclusão nasceu um poema que se constituiu de uma única palavra, único verso, única linha: OBRASILOBRABERTA. Oscilo. Dicotomias… Transito. Entre a política stricto sensu, como esquerdista, entusiasta da Renda Básica Universal, querendo que o Brasil encontre seu caminho, que não é nem cubano, nem soviético, nem chinês, nem americano, nem europeu, mas brasileiro; e entre a grande política do Nietzsche, da potência de si em devir, como diria Deleuze: interdepende de qualquer contexto, é a volta para o corpo e para o presente, onde deixo de lado ideologias e identidades e sou (d)obra de espaço–tempo em ação infinita, efetuador criativo e experimental de acontecimentos. Jorro de imanência! Modos de fuga e resistência. Política do plano existencial: a única realmente verdadeira?… Imanência ética em Espinosa. – Mas, F., até agora conversamos sobre assuntos intelectuais e nada de assuntos pessoais, íntimos, que foi realmente a razão primeira do meu contato... – Tenho medo do que você possa me dizer, e não quero que me diga nada. Nada. Porque, como já lhe disse, só acredito no agora, e no agora escolhi estar bem e ser feliz. Talvez isto seja política. E nada mais. Longo silêncio. Achando que fosse desligar, logo disse, apressadamente, recompondo meu tom: – Bom, você perguntou do meu tornozelo, foi a primeira coisa que me disse, nem mesmo disse um oi... – Sim – respondeu, rindo –, mas é que o teu, o meu, o nosso futuro me... – Ninguém sabe o que o amanhã pode trazer. Ilusão. Fico, portanto, com aquelas palavras mágicas do Pessoa: “Venha o que vier, nada será maior do que minha alma.” Longo silêncio. – Quem cala consente. – Eu consinto. A atmosfera pré–eleições contaminava o ar ofegante do outro lado da linha. – Não tenho medo de sofrimento. A opressiva, moralista e reprimida era vitoriana produziu Marx, Freud, Nietzsche. Acrescentei: – Acredito nele, no amanhã, viu? “O que não mata”... – “fortalece”... Quem lê autoajuda deveria ler Nietzsche, isso, sim. – Você deve saber que todo homem dionisíaco, conforme viu Nietzsche, tem algo de Hamlet. Ambos não agem, porque lançaram em algum momento um olhar verdadeiro o bastante na essência das coisas, por isso lhes é repugnante agir, porque o agir, geralmente, pressupõe falta de conhecimento e ilusão. Hamlet é, provavelmente, o único personagem shakespeariano antitrono... Céus, como sou pernóstico, professoral! – Mas suponho que isto não pressuponha um desencanto, não te vejo com voz de desencantado... – É verdade. E sabe por quê? Porque minha parcela louca não permite que eu fique cabisbaixo. Estes três também esbarram na loucura. Digo três porque, desta vez, além do homem dionisíaco, incluo também o delirante Nietzsche, mesmo que em Hamlet a loucura seja propositalmente fingida para conseguir seus propósitos ou simplesmente para desviar dos chatos de Elsinore... A loucura acaba com a máscara, como escreveu Rotterdam no seu famigerado elogio a ela. Chega–se, mesmo, ao limiar da paralisia do agir. Logo, a ilusão é aniquilada. Surge uma verdade perturbadora... O príncipe humanista não hesita por mera indecisão, mas por uma certeza quase que absoluta. "Não a dúvida, a certeza é que enlouquece", nos escreveu Nietzsche no capítulo "Por que sou tão esperto". Mas, diante deste elemento de percepção da vida, é a arte quem a torna aceitável, em tudo que a vida possa ter de terrível e absurdo e enlouquecedor. Horror e nojo, sim, mas convertidos em representações com as quais se pode viver. De qualquer forma, mantenha a calma quanto às suas, minhas, nossas questões. Não se pode imaginar que eu rompa com meios supostamente fechados para entrar em meios supostamente abertos, porque, aonde quer que eu vá, só peço e reivindico que me tolerem. Seria este até mesmo o meu próprio epitáfio! Até que ponto uma sociedade pode suportar a verdade? Até que ponto, hein?! – gritei – É com essa pergunta que começamos a compreender o grau de democracia das sociedades...
As revoluções pretendem substituir um sistema por outro, mas acabam sempre numa autofagia. Mais sábio é revolucionar gradualmente, não através dum golpe revolucionário, mas através da democracia. Aprofundar a democracia. Ter ideias, planos, projetos políticos eficientes que possam fazer progredir a sociedade. – O problema é quando um governo torna–se tirano, incompetente, tirano e incompetente. – Para isto existe a desobediência civil, se é que você leu Thoreau, mas há exemplos concretos, de Gandhi a Luther King Jr. Sim, você tem razão: diante de um governo tirano, incompetente, diante da fome absoluta, diante de uma realidade pungente, não há saída senão o devir revolucionário. Deleuze distinguia, não? Devir revolucionário do futuro da história. Não são nem as mesmas pessoas, no geral. – E Artaud pôs em xeque toda uma estrutura religiosa, política e social, através da sua revolução pessoal. – Todos os artistas e vagabundos. – Acho que a frase de Thoreau continua valendo para este século: "Mesmo votar em favor do direito não é fazer coisa alguma por ele." E a conclusão: "É apenas uma forma de expressar publicamente seu desejo de que ele prevaleça." – No ponto. Tanta absorção intelectual produziu frutos. Depois desse diálogo falamos uma ou outra trivialidade íntima, coisas pessoais. Me ajudaram a deitar novamente. A sensação de impotência logo se dissipou pela esmagadora presença intelectual. Micropolítica, dizem, mas para mim é justamente a grande política... O teto branco refletia um papel em branco, uma vida em branco prestes a ser preenchida ou simplesmente contemplada. Jantei feliz e me preparei para dormir. A dor no tornozelo foi passando lentamente... Na penumbra que antecede o sono abençoei minha condição física e entendi que era uma forma de eu me autoconhecer. Madrugada adentro e durante a manhã do dia seguinte sonharia com um sonho longo, duplamente catastrófico e redentor, um verdadeiro sonho–pesadelo brasiliense de cinematografia terrível e ao mesmo tempo maravilhosa que parecia ter saído dum filme do Glauber Rocha, duma gravura de Piranesi...