Vã confiança: a Doutrina Monroe - sua origem

Os que hoje averbam de infundadas as apreensões públicas diante do movimento anexionista desenvolvido na América do Norte, são os mesmos, cujo entusiasmo pela doutrina de Monroe não to­leravam ontem a opinião daqueles que lhe desconheciam o caráter de influência tutelar para o Brasil. Confessam agora que, a respeito da doutrina de Monroe, o engano era seu; mas sustentam, ao mesmo tempo, ser nosso o desacerto em relação aos perigos da tendência anexadora. Ora mais difícil é antever o futuro que conhecer o passado. A todos se mostra o passado no espelho da história. Só a poucos pela previdência se entremostra o futuro. Era a significação da doutrina de Monroe uma questão, que se achava toda no pretérito. Não a exergaram; e, todavia, se presumem com o des­cortino, para avaliar as conseqüências da expansão americana, problema que está inteiramente no porvir. Podem os que não tiveram sequer o merecimento trivial da memória, assumir a autoridade extraordinária da previsão?

Debalde se abrigariam eles agora à evasiva exculpatória de que a política absorvente, hoje professada nos conselhos de Washington, contradiz a doutrina de Monroe. Não é exato que, neste ponto, o último quartel do século dezenove esteja a desmentir o primeiro. Não é exato que, neste particular, as fracas repúblicas da América do Sul se possam queixar da grande república da América do Norte. Não há nenhuma incoerência, violação nenhuma dos princípios de Monroe no procedimento atual dos americanos. Esses princípios nunca exprimiram senão um interesse dos Estados Unidos, nunca encerraram compromisso nenhum, por parte deles, a favor dos povos sul-americanos.

Há trinta e três anos escrevia o mais célebre dos publicistas argentinos: “O exemplo recente de Valparaíso, bombardeada em presença de uma esquadra dos Estados Unidos, a qual o não estorvou, porque a Europa, convidada a isso, não quis encarregar-se de executar a doutrina de Monroe, que a excluía de tais encargos, deve acabar de provar à América do Sul o que vale para sua defesa a doutrina de Monroe.” E, restabelecendo a verdade contra a versão corrente, que transformava essa doutrina em instrumento comum da solidariedade deste continente contra o outro, acrescentava: “Não tem a doutrina de Monroe sentido tal de aversão à Europa, por um motivo simples, a saber, porque foi inspirada pela Europa livre em ódio da Europa absolutista. Canning, para se utilizar da independência americana como de uma arma de guerra contra a Santa Aliança, inspirou às duas Américas as famosas idéias da declaração de Monroe e do Congresso de Panamá, como antítese do congresso europeu que a Santa Aliança promovia, a fim de reconquistar o novo mundo a benefício da sua preponderância no velho. A uma contra-campanha, em 1823, em sentido inverso, à anteriormente oposta contra a invasão da França na Espanha, preferiu Canning reduzir esse país a uma potência de terceira ordem, arrebatando-lhe os domínios americanos, que constituíam todo o seu esplendor, e pôde dizer, com títulos superiores aos de Monroe, que “chamava a existência o novo mundo, a fim de restabelecer o equilíbrio no antigo.”

Estas noções essenciais à compreensão da doutrina de Monroe, que já em 1866 vogavam no Rio da Prata, eram desconhecidas no Rio de Janeiro em 1893, e ainda o são em 1899. Cuida-se, ainda hoje, que a fórmula de Monroe tinha sido adotada por uma inspiração espontânea dos Estados Unidos, com o intuito de assegurar, à sombra do seu prestígio e da sua força, a independência das nações americanas. Nada mais falso.

Pelos fins de 1822 os representantes das monarquias envolvidas naquele pacto dos reis, contra os povos, reunindo-se em Verona, tinham anunciado o propósito de “repelir os princípios revolucionários, onde quer e sob qualquer forma que se manifestassem”, e, separando-se nessas disposições, ao mesmo passo que, num tratado secreto, se comprometiam reciprocamente a “acabar com os governos representativos na Europa”, tencionavam estender essa política ao continente americano, a cuja emancipação geral faltava apenas a nossa. Canning, sucedendo a Lord Castlereagh, e mudando o espírito ao gabinete inglês, não acedeu a esse pensamento, e rompeu com os interesses da Santa Aliança, declarando-se resolvido a operar em direto antagonismo com ela, se contasse com o concurso dos Estados Unidos. Era o tempo em que, por outro lado, no seio destes os maiores homens de estado nutriam a opinião dada por Jefferson em resposta a uma consulta do presidente Monroe: “A Grã-Bretanha é, de todas as nações do globo, a que maior mal nos pode fazer, e, com ela ao nosso lado, não nos teremos que recear do mundo inteiro.”

Tais os motivos, que impeliram o governo americano à declaração de 1823. Da Europa, do sentimento liberal da Inglaterra veio a inspiração e o impulso. Nem sem esse apoio a doutrina de Monroe teria surtido o único efeito benfazejo, que se destinava e veio realmente a ter quanto às nacionalidades sul-americanas: frustrar os planos da liga absolutista de além-mar, empenhada em restaurar deste lado do oceano o jugo colonial recém-destruído. Há uma circunstância, entre outras, que basta, para certificar o peso decisivo da iniciativa e da cooperação britânica nesse movimento de consolidação da independência americana. Sabe-se agora pelas Memórias do Príncipe de Metternich, publicadas em 1881, que ainda no inverno de 1824, isto é, meses depois de conhecida na Europa a mensagem de Monroe, a França, a Áustria, a Rússia e a Prússia aquiesciam ao convite de celebrar, em Paris, uma conferência, cujo objeto era liquidar os negócios hispano-americanos. Não se realizou, porém, a tentativa, porque o reclamo dirigido à Inglaterra, cujo consenso era indispensável, encontrou da parte de Canning uma recusa “quase brutal”.

Mas por que assentiram os Estados Unidos às sugestões do estadista inglês? Por simpatia às repúblicas latinas deste continente? Porque estremecessem, inquietos, aos riscos da independência recém-conquistada pelas antigas colônias espanholas? Não. Por um motivo de conveniência imediata dos mesmos Estados Unidos. Porque estes se julgavam igualmente ameaçados com as pretensões da Santa Aliança, e sentiam o risco de que penetrasse até no seu território e na sua política interior a influência e a força dessa tremenda coligação. “Tamanha era ela”, escreve Von Holst, “que os próprios Estados Unidos se não julgavam ao abrigo da sua intervenção.” E que esse foi, de feito, o móvel da política do presidente Monroe, demonstrado está pela confissão de um dos seus ministros mais eminentes, Calhoun, o seu secretário da guerra. Acreditava, diz ele, o gabinete americano que a Santa Aliança também nos tinha de olho. Se não se lhe resistisse, recativaria a América do Sul. Violentos partidos surgiram neste país, uns pró outros contra ela, e “teríamos de pelejar em nossas próprias costas pelas nossas instituições.”

Esta explicação não foi contestada até hoje. Tem sido, pelo contrário, invocada, em sucessivas reproduções, nos livros americanos, e, ainda há pouco, num opúsculo sobre a A Doutrina de Monroe, dado à luz em Nova York e integralmente reestampado na Revista de Direito Internacional e Legislação Comparada, tomo XXVIII, o Sr. Bassett Moore, uma das maiores autoridades daquele país em matéria de direito das gentes, aludindo à atitude de John Quincy Adams na mesma questão (Adams e Calhoun eram os dois grandes estadistas do gabinete Monroe), observa: “Ele não acreditava que a Santa Aliança armasse a inaugurar entre nós a monarquia. Mas, se esta subjugasse as províncias espanholas, o último resultado viria a ser, ponderava Mr. Adams, recolonizá-las, dividindo-as entre as nações, que a formavam. A Rússia poderia apropriar-se da Califórnia, do Peru e do Chile, a França do México, e a Grã-Bretanha, se não lograsse contrastar o curso das coisas, senhorearia, pelo menos, a ilha de Cuba como seu quinhão na disputa. Qual seria, nesse caso, a situação dos Estados Unidos, com a Inglaterra em Cuba e a França no México?”

O sentimento propulsor do célebre documento americano foi, pois, simplesmente o receio do embate com a mole irresistível de forças, com que entraria na arena dos destinos da América o poder coletivo da Santa Aliança. Para os Estados Unidos não consistia o mal em que as províncias escapas da tirania espanhola revertessem a ela. Nada tinham feito eles em socorro das colônias revoltadas. “En cuanto a los Estados Unidos”, escreve um publicista colombiano, o Sr. Samper, definindo a posição dessa nacionalidade no movimento da emancipação hispano-americana, “es curioso observar que, sendo esa potencia la más interesada en favorecer nuestra independencia, se mostró sin embargo mucho menos favorable que Inglaterra, indiferente por lo común hacia nuestra revolución y mui tardía en sus manifestaciones oficiales, como parsimoniosa en procurarnos los auxilios de armamento que solicitábamos, con nuestro dinero, de los negociantes y arma­dores.”

Só incorrendo em um anacronismo palpável, podia ter atribuído o Sr. Calvo à proclamação da doutrina de Monroe a linguagem do embaixador inglês, Lord Wellington, a favor das colônias americanas no Congresso de Verona, quando este se celebrara em agosto de 1822, ao passo que a mensagem, onde se enunciou essa doutrina, tem a data, quinze meses posterior, de 2 de dezembro de 1823.

Em 1816, quando a revolução americana batia à porta das potências liberais em busca do apoio, que a salvasse, os Estados Unidos harmonizavam ainda com as cortes européias que opinavam pela manutenção do domínio espanhol. Mitre, na Historia de Belgrano (vol. III, p. 310), registra o relatório, onde o célebre patriota argentino aludia “ao interesse manifestado pelo resto das potências, inclusive os Estados Unidos d’América, em que nos conservemos unidos à Espanha, com o fim de contrabalançar o poder marítimo da Inglaterra”. Ainda em 1819 recusava o governo americano admitir os cônsules de Venezuela, e só em 1823 reconheceu a independência da República Argentina.

Pelo que toca ao Brasil, nunca as suas aspirações à independência encontraram gasalhado entre os estadistas americanos, o mais radical dos quais, Jefferson, ainda em 1816, a repelia. No ano seguinte era acolhido ali com irrisão o emissário pernam­bucano, deputado ao seio daquela democracia em busca dessa generosa fraternidade imaginada por nós desde aqueles tempos, não perdendo tempo o gabinete de Monroe, então no começo da sua primeira presidência, em denunciar o fato ao ministro português Correia de Serra. Só, em suma, depois de reconhecida pelo governo de Lisboa, graças aos esforços da Inglaterra, em 1825, é que os Estados Unidos pactuaram conosco o tratado de amizade, bem que já contasse dois anos de existência a doutrina de Monroe. Mas o primeiro representante da América do Norte no Rio de Janeiro, Raguet, suscitou os maiores obstáculos aos nossos primeiros esforços de organização constitucional, acusando a nossa marinha de cobardia, ameaçando-nos de um rompimento com o seu país, e declarando que não éramos um povo civilizado.

Com essa frieza e indiferença pela sorte das nações latinas no continente americano, não podiam ter tido em mira os Estados Unidos estabelecer nos princípios de Monroe um escudo à independência delas. Se a Espanha tivesse forças suficientes, para se reempossar no seu antigo senhorio, a república norte-americana lho não impediria. É o que solenemente declarava, em abril de 1826, no congresso federal, um dos mais altos intérpretes da política de seu país, Daniel Webster. Negociamos com esses governos, tal qual no caso de qualquer guerra civil, como governos de fato, dizia o grande orador, “sem pôr, todavia, em questão o direito da Espanha a reduzi-los outra vez à obediência, se o pudesse (not questioning the right of Spain to coerce them back to their old obedience, if she had the power)”. Nem com o tempo mudou essa inteligência; porque, ainda em 1889, o Sr. Koerner, no seu estudo sobre a doutrina de Monroe, inserido na Enciclopédia Americana, escreve: “Se a Espanha quisesse reconquistar as colônias rebeldes, era fazê-lo (If Spain would reconquer them, she might try). O que os Estados Unidos lhe não consentiriam, seria que o fizesse com o auxílio das potências aliadas.”

Nas origens dessa expressão do ascendente continental daquela nacionalidade se acha nitidamente impresso, pois, o seu caráter essencial de simples fórmula preservativa da influência dos Estados Unidos e seus interesses no continente onde reinam, e que sempre aspiraram a absorver.

Deixar aberto esse campo à dilatação vindoira do seu império era, como nos vai mostrar o exame ulterior do assunto, à luz da teoria e dos fatos, o intento substancial da fórmula de Monroe.