Valério era fluminense; veio à luz com a revolução de 1831. O pai estava no campo, enquanto ele nascia humildemente, entre as lágrimas de sua mãe e os cuidados de uma velha comadre. Quando o pai voltou à casa, encontrou esse aumento na família. Beijou o filho, consolou a mulher, comeu alguma coisa, e foi passar a noite num dos clubes do tempo.
A paternidade é anterior à sociedade; mas os amores novos fazem esquecer os velhos, e a paixão política domina, em certos casos, os primeiros instintos da natureza.
Nascido entre lágrimas, foi Valério criado entre penas. O pai, que era um pobre militar, não tinha recursos de sobra para deixar à família, e morreu pouco depois da revolução. A mãe educou como pôde o pequeno até à idade de sete anos; a pobre senhora morreu sem poder vê-lo num colégio. Valério passou então à casa do padrinho, que era um general conhecido naquele tempo por suas façanhas e mentiras, mas no fim de contas boa alma e amigo de ser-vir. O general mandou ensinar ao afilhado os primeiros rudimentos da língua e um pouco de latim. Vendo os progressos do pequeno, determinou mandá-lo estudar direito, e nesse propósito estava quando faleceu sem testamento. Os poucos bens que tinha caíram nas mãos dos parentes, e Valério ficou senhor das calçadas da rua, na idade de catorze anos.
Como não é nossa intenção contar dia por dia a vida do rapaz, corramos um véu sobre os acontecimentos da sua adolescência até encontrá-lo em 1861, com trinta anos de idade, sem mais fortuna do que quando nascera, nem recurso certo para ocorrer às necessidades da vida. Tentara estudar direito, mas não conseguira alcançar os meios precisos para um curso regular. Não tinha ofício nenhum, e tinha coisa pior, que era ser incapaz de adotar qualquer ofício manual não só porque não o arrastava para aí a vocação, como porque, sentindo-se apto para uma carreira literária, temia perder a sua utilidade no mundo, adotando um meio de vida em que nada podia fazer.
Desistiu do intento de estudar direito; fechou os livros numa caixa, e contentando-se com o pouco que sabia de latim, geografia e história, entregou-se todo aos dois empregos de que tirava escassos recursos: escrevente de cartório e revisor de provas de tipografia.
Não consta em memória de homem que estes dois empregos tenham dado grandes rendas a quem os exerce. Valério vivia pobremente; recebia um mesquinho ordenado da tipografia e cobrava pela rasa o trabalho do cartório. De quando em quando algum translado de inventário lá lhe dava com que comprar um paletó. Mas, como nem sempre havia translado, nem sempre havia paletó novo. Os cotovelos, amigos da liberdade, operavam-lhe às vezes soluções de continuidade nas mangas. Nem era raro ver um botão solitário na cintura, tendo o outro caído de velhice.
Uma das coisas que Valério estudara com proveito era a gramática portuguesa. Por isso, sabendo que vagara uma cadeira de gramática num colégio público, Valério propôs-se à cadeira, e foi pedi-la ao funcionário competente. A cadeira foi dada a outro peticionário que escrevera nestes termos ao diretor: ".
Valério contentou-se com a tipografia e o cartório. Dividia o tempo entre esses dois empregos, e o pouco que lhe restava mal chegava para dormir. Ocupava um aposento numa casa da Rua das Flores e facilmente se imaginará que o aposento não primava pelo luxo. O mesmo espaço servia de sala e alcova; a mobília era escassa e pobre.
Tal era a vida de Valério aos trinta anos; abundância de apetite e escassez de jantares, isso e a segunda classe de Chamfort; muito trabalho e pouquíssimos recursos. Nulo passado, escasso presente, tristíssimo porvir. Quando Valério meditava sobre as condições da sua existência, a sua mocidade sem risos, o seu futuro sem esperanças, lançava um olhar melancólico para o suicídio, como a solução razoável do problema da vida, e perguntava entre si se a moral que desarma o braço do homem não era simplesmente uma moral de convenção. Imediatamente, porém, volvia a sentimentos melhores; encarava severamente a responsabilidade que lhe corria de carregar a vida dignamente, sem violência nem rebeldia; adiava o suicídio para o próximo desânimo.
Contribuíam para esta filosofia severa algumas horas de ambição e devaneio, em que Valério esquecia provas e translados, e lançava o espírito por esses espaços fora em busca de felicidades sonhadas e imaginadas grandezas. Não tinha objeto sua ambiciosa imaginação: ora vivia uma vida de amores, ora ocupava um trono de glória; agora imaginava-se Petrarca, mais tarde acreditava-se Pitt; construía castelos no ar, embriagava-se com perfumes do Oriente, dominava as turbas pasmadas, vivia um romance e repousava na história.
Quando descia dessas alturas vertiginosas, Valério tinha ao menos esquecido a miséria atual, porque sonhar é esquecer, e esquecer é muita vez toda a felicidade da vida.