Às dez e meia apareceu o coronel Borges acompanhado da família, que se compunha da mulher, senhora de quarenta e cinco outonos, e de uma filha, menina de dezoito primaveras. O coronel pertencia a essa classe indefinível de homens que estão entre a primavera e o outono, nem velhos, nem moços, mistura de Saturno e Antínous.

O escrivão recebeu o coronel com vivas demonstrações de amizade e respeito, às quais o coronel respondeu com esse ar solene e grave das capacidades e das nulidades. A entrada dos novos convidados fez impressão na sala; sentia-se a superioridade social do homem que, além do mais, tinha a ventura de ser pai de uma formosíssima filha. Os rapazes sufocaram na garganta um grito de admiração; e as moças disfarçaram um gesto de despeito.

Valério deu lugar a que passasse a família; a filha do coronel passou rente com ele. Ia cheia de perfumes e bálsamos; o rapaz respirou-lhos sem querer, e pela primeira vez sentiu a vertigem que pode causar uma mulher quando sabe escolher os aromas do seu uso. Não lhe escapou a pasmosa beleza da moça. Acompanhou com os olhos aquela figura elegante como uma palmeira, flexível como um junco, temperado com a graça do gesto e a soberania do porte. A moça sentou-se entre a mãe e a senhora do escrivão. Pôde ser contemplada a gosto por todos. Era excessivamente clara, uma dessas brancuras de mármore, aspecto de estátua onde se não supõe haver coração. Tinha olhos negros, plácidos, embora rutilantes, resguardados por longos cílios que ela às vezes apertava, menos por defeito de vista que por sestro. Penteava-se segundo a moda do tempo, mas sem afetação. Sorria discretamente, e quando bastava para mostrar duas ordens de dentes corretos e alvos. O seu vestuário não exagerava a moda corrente, mas era luxuoso e perfeitamente acomodado à elegância das suas formas.

Valério contemplava admirado a beleza da moça e o mesmo faziam os demais rapazes, que já se preparavam para suplicar-lhe a honra de dançar uma polca ou uma quadrilha. Parece que a rapariga estava acostumada àqueles triunfos, porque apenas se sentou, correu os olhos pela sala sorrindo com um ar de satisfação íntima; a mãe também se alegrou, e quanto ao pai, depois de conversar um pouco com alguns sujeitos a quem conhecia, foi para o interior da casa a convite do escrivão, que queria obrigá-lo a comer uns acepipes expressamente preparados para esse fim.

Não tardou que a filha do coronel dançasse, e Valério pôde admirar-lhe a graça, a reserva, a elegância dos seus movimentos. O pobre escrevente não lhe tirava os olhos de cima; duas ou três vezes encontraram-se os seus com os dela; Valério corava de vexado, como se o surpreendessem a cometer um crime. Quanto à moça, não se perturbava nem parecia zangar-se; olhava também para Valério com um olhar longo e tranqüilo. O rapaz chegou a supor que era um movimento de simpatia, e Deus sabe que sonhos não lhe passavam então pelo espírito atordoado; a verdade, porém, é que a moça gostava de ser admirada; era uma dessas belezas capazes de vender o patrimônio do amor por um prato de admirações.

À meia-noite foi servida uma ceia volante; Valério deixou discretamente o seu posto e foi para dentro descansar e comer alguma coisa. Confessou de si para si que estava com fome. Sentou-se ao pé de uma mesa pequena, recebeu de um criado uns pastelinhos, e começou a ruminar tranqüilamente. Cumpre acrescentar que ao bom do rapaz repugnou ver comer a jovem rainha da noite. Era escrúpulo de calouro. É mais poético não assistir à operação dos queixos quando se ama a uma mulher, mas — ai triste! — nem por isso fica suprimida a operação. O estômago não tem sexo; e a natureza tem exigências fatais. Aqueles lábios, que nos parecem exclusivamente feitos para risos e beijos, são a entrada indispensável de covilhetes e pastéis. É possível que na próxima edição da obra, o autor da criação corrija esse gravíssimo ponto; mas por enquanto a obra há de ser lida assim... ou morre de traça nos livreiros.

Perto do escrevente estavam algumas pessoas, ocupadas também em dar que fazer ao estômago, exceto o coronel, que tendo já comido, conversava paternalmente com o escrivão e mais dois sujeitos.

— E quando se publica esse folheto? perguntou o escrivão.

— Creio que breve, respondeu o coronel; o autor, que, como lhe disse, é meu amigo íntimo, promete que dentro de uma semana estará à venda.

— Estou ansioso por ver isso! exclamou um velho com feições de militar; ataca o governo?

— Se eu lhe digo que é uma filípica! tornou o coronel. É um opúsculo de fazer época.

— Disso precisamos nós.

Os ímpetos de oposicionista do militar não agradavam ao escrivão, que tinha filho em não sei que secretaria de Estado. Por isso tratava de desviar a conversa do assunto do opúsculo.

— Sempre queria vê-lo dançar, coronel!

— Qual! já não é para mim.

— Como se chama o opúsculo? perguntou o militar.

— Não sei se devo confiar tanta coisa; o autor não me autorizou .. mas... é verdade que daqui uma semana... chama-se o opúsculo: Abaixo as máscaras!

— Magnifico! magnifico título! exclamou o militar.

Ouvindo o título do opúsculo, Valério estremeceu, e prestou à conversa mais atenção do que até ali. O velho militar continuou a elogiar o título, e insistiu com o coronel para que dissesse onde poderia ir comprar o opúsculo quando ele aparecesse.

— Suponho que em todas as livrarias; mas, se quer eu lhe arranjarei um e mandar-lho-ei antes de publicado.

— Tanto favor! A obra é bem escrita?

— Dizem que sim; eu não entendo de estilos.

Sem medir todo o alcance da inconveniência, Valério interrompeu a conversa dizendo:

— Entendo eu um pouco; e acho que o estilo do opúsculo de que se trata é excelente.

Houve um súbito silêncio logo depois das palavras do escrevente. O escrivão fez uma careta de desgosto vendo que Valério se intrometia aonde ninguém o chamara; e o coronel, disfarçando quanto podia um sorriso delator, perguntou ao vizinho quem era aquele sujeito; o vizinho disse que o não conhecia. O coronel voltou-se para Valério.

— Conhece então a obra? perguntou-lhe.

— Conheço.

— Conhece o autor?

— Não, senhor.

— Então, houve traição...

— Não, senhor; eu sou revisor de provas na tipografia onde se está imprimindo o folheto.

Novo silêncio e mais prolongado. O escrivão tinha a cara mais vermelha que um pimentão; se um olhar fulminasse, Valério já não era gente, pois o que o escrivão lhe lançou continha raios de raiva, despeito, nojo. Traduzido em vulgar, o olhar do escrivão queria dizer:

— Pois este pelintra vem ter a honra de jantar comigo, ver dançar os outros, estar aqui confundindo com pessoas de certa ordem, e se há de ouvir e calar, responde quando ninguém lhe pergunta, e por fim de contas, confessa-se revisor das provas!

Valério não viu o olhar do escrivão, nem compreendeu o silêncio de todos.

— Gosto imenso do estilo do folheto, e creio que há de fazer época.

— Eu assim penso, disse o coronel sorrindo para Valério; mas, quem assim fala e julga, não é decerto um simples revisor...

— Sou também escrevente no cartório do sr. Z.

— Ah! Escrevente e revisor! mas não é isso bastante; vejo que tem humanidades... estudou...

— Muito pouco... e há muito tempo.

— Mas tem o gosto apurado...

— Não sei; eu digo o que me parece.

— Descontaremos a modéstia, disse o coronel; vejo que tem certos estudos... Quer um charuto?...

— Não fumo...

— É um vício; corrija-se dele. Charutos, meus senhores?... Hoje fuma-se por toda a parte... Pensa então que o folheto tem bom estilo?

— Excelente.

— É a opinião de algumas pessoas que leram o folheto; eu confesso, de estilos não sei.

— Nem eu, disse o militar.

A situação de Valério estava um pouco salva; a bondade com que o coronel tratava ao escrevente, teve o dom de acalmar os furores do escrivão que já trocava palavras com o rapaz; e quando viu levantar-se o coronel de braço com Valério, a indiferença do escrivão tornou-se em viva simpatia.

Valério pôde contemplar ainda durante meia hora a interessante filha do coronel, que durante essa noite dançara alegremente como quem não tem cuidados no futuro nem saudades do passado.

Depois de despedir-se do escrivão, o coronel apertou a mão do escrevente, dizendo-lhe:

— Não se esquece?

— Não, senhor.

— Nº 14.

Ninguém ouviu estas palavras do coronel ao rapaz; mas o escrivão adivinhou que alguma coisa íntima se passara entre o rapaz e o coronel.

— Cultive esta amizade, disse o escrivão a Valério, guando o coronel saiu; é um excelente homem e dotado de uma inteligência brilhante; freqüente esta roda, que vai bem.