Valério para casa, trabalhar, depois de tomar chá com o foliculário.
No dia em que o folheto apareceu, o coronel passou toda a manhã na Rua do Ouvidor, conversando com algumas pessoas a respeito do acontecimento do dia. O acontecimento até então estava na imaginação do autor da obra; nas vidraças do Garnier e do Laemmert alguns exemplares, ainda virgens, solicitavam os dois mil-réis dos passantes; o título era auspicioso; os exemplares começaram a correr o mundo. Mas poucos tinham tido tempo de folhear apenas algumas páginas.
Valério viu de longe o coronel, que conversava num grupo; o coronel viu-o também; o rapaz sorriu e caminhou para lá, mas a foliculário ocultou a cara e encostou a boca ao ouvido de um dos circunstantes.
Valério passou sem parar.
Quando à noite, segundo promessa anterior, o revisor se apresentou em casa do coronel, disse-lhe este:
— Olhe, hoje vi-o de longe, e fingi que o não via. Não é conveniente que pareça conhecer-me; eu estou vendido aos deuses infernais.
— Mas que me importa que saibam da honra que V. Excia. me dá? Eu não tenho nada com o governo...
O coronel abanou a cabeça.
— Quem pode afirmar isso? disse ele. Aceite o meu conselho; quando me vir, finja que me não conhece; senão pode ficar comprometido.
Valério prometeu por condescendência. No meio da conversa suspeitou que o conselho do coronel fosse uma evasiva, e que o único desejo dele fosse não manifestar em público as relações que tinha com o escrevente revisor de provas. Mas achou pueril esta razão.
O folheto fez alguma impressão; daí a seis ou sete dias apareceram dois artigos no Jornal do Commercio refutando as asserções do folheto. O autor esfregou as mãos; a mulher abanou a cabeça com tristeza. Quando Valério lá apareceu, disse-lhe o coronel:
— Viu como me esfolam hoje?
— Vi, sr. coronel. V. Excia. responde?
— Sem dúvida; e estava justamente agora a acabar umas notas para lhe dar, porque eu ando tão ocupado... Vou dar-lhe as notas, e veja se por elas me faz uma resposta. Realmente é uma maçada... Eu tenho tanto que fazer!... Anda cá ao gabinete.
As notas dadas pelo coronel não valiam coisa nenhuma; mas tendo dito que daria resposta aos dois artigos, foi Valério para casa, trabalhar, depois de tomar chá com o foliculário.
A resposta saiu boa; fez impressão; replicou o escritor governista; treplicou o coronel por boca de Valério; e durante quinze dias teve o público fluminense o seu manjar favorito, que é uma mofina anônima.
Não tardou que Valério compreendesse a causa da amizade do coronel. Evidentemente o homem não escrevia nada, e com certeza não era o autor do folheto. O sobrinho, com quem brigara, era naturalmente o seu secretário; e foi uma ventura encontrar à mão o revisor de provas, porque, em tão melindroso mister, só um homem necessitado e discreto pode substituir um parente amigo.
Tudo isto compreendera Valério, mas para logo refletiu que isso aumentaria a probabilidade de merecer o reconhecimento do coronel, e era justamente o que ele desejava. Refletia mal o rapaz, se contava só com o reconhecimento; era preciso contar também com o medo. Mas Valério não pensou nisso.
Valério encontrara-se muitas vezes com a filha do coronel, e fora dissimulação negar que as graças da moça influíam cada vez mais no ânimo do rapaz. A moça não o amava certamente, nem talvez consentira que ele lho dissesse; mas não recuava quando o rapaz fitava nela os olhos, nem deixava de lhe falar com afabilidade até certo ponto animadora. Hélvia não desprezava nenhum feudo de nenhum regato incógnito.
Este nome de Hélvia, que algum leitor terá achado de mau gosto, fora-lhe posto depois de grave luta entre o pai e a mãe. Queria esta que a rapariga se chamasse Rita, em virtude da devoção que nutria por esse ornamento da corte celeste. O pai, cujos talentos guerreiros não cediam aos talentos políticos, achou que satisfaria a sua consciência dando à filha um nome que resumisse certo caráter belicoso — Joana — em memória da donzela de Orléans. Dizia a mãe que Joana era nome de velha, preconceito este imitado por alguns autores de comédias e romances que só dão às suas velhas uma certa ordem de nomes, como se uma velha não começasse por ser moça e até por ser criança. O pai replicou que, se Joana era nome de velha, Rita era nome de preta. Discutido este gravíssimo ponto, e não chegando os dois a um acordo, foi consultado o padrinho, que serviu de moderador entre as duas opiniões, recusando-as ambas.
— O verdadeiro nome que se lhe há de dar, há de ser Hélvia, disse ele.
— Pior! exclamou a comadre, este nem é nome de gente.
O padrinho era um velho advogado; sorriu com ar de desdém e compaixão, e replicou:
— Não é nome de gente?
Seguiu-se a esta pergunta um movimento oratório de tamanha altura e grandeza, que eu sinto não poder consignar aqui para memória eterna. A conclusão do legista foi a seguinte:
— Hélvia se há de chamar a rapariga, porque foi o nome da maior mulher que honrou a raça humana, mulher imortal que devia ter o busto em todas as cidades e em todos os parlamentos, pois foi ela a autora da maior obra que os séculos ainda conheceram, foi a mãe de Cícero.
D. Luísa não entendeu a tolice do compadre, e achou que nem Cícero nem sua honrada mãe, que Júpiter guarde, vinha nada ao caso da pequena. Todavia, calou-se. Quanto ao coronel não perdeu tão boa ocasião de mostrar a sua eloqüência doméstica, e assombrar a mulher com um elogio do orador romano.
Assentou-se que se chamaria Hélvia, e assim se batizou a menina na igreja de Santa Rita. Que dúvida teremos de aceitar o nome da rapariga, se já aceitamos os escritos do pai?