Variação sobre um tema de Buffon

A tia Luzia, lavadeira que morava acerca do açude, recebera em pagamento uns ovos de pata, e, como não tivesse patas nem chocas nem pondo, deitou-os sob uma galinha arrepiada. Tão poedeira era esta ave, que a tia Luzia ensaiou substituí-la por um capão; e, pois, estava no ninho ora uma, ora outro; a galinha com seu forte calor faria os ovos no dia mar­cado abrirem-se às picadas, o capão afeiçoando-se àqueles bolões bran­cos acamados entre capins secos, tomar-se-ia de paternal pachorra pelos bolõezinhos cor de gema d'ovo que dali sairiam a andar.

Que pasmo para o sr. Capão, quando os pequenos vieram à luz! Era mesmo um cura, ele, nédio, com sua crista raspada, risonho e afável.

Daí, a galinha foi metida num banho, para largar o choco. E, depois, — amarrada por um pé debaixo da ateira, — avistava com uns olhos muito compridos o capão muito ancho com os patinhos. A pobre fazia por livrar-se do maldito cordel que a prendia, dava empuxões, beliscava o nó. Enfe­zada e rouca, estava muito falta de sangue, com as penas muito secas e encardidas.

O sr. Capão? Este sim! Liso, ameno, asseado, solícito, feliz! Talvez nunca houvesse reitor de seminário tão satisfeito assim com os seus edu­candos. Estava pesado, com sua grande batina de penas.

Os pequenitos piavam muito, com um som plangente, andavam qua­se arrastando o papinho no chão, uns atrás dos outros; tocavam a rebate por qualquer sombra que voasse, e se apavoravam do mais brando ruído. Mas o pedagogo os achava uns meninos morigerados; e, se falasse, ga­bar-lhes-ia a inteligência perante a senhora Luzia.

Dias passados, a dona, arriando um braçado de lenha no terreiro, disse, muito admirada:— Oh gentes, estes corninhos inda não sentiram o ar do açude?! E, apanhando a saia na altura dos joelhos, sacudiu-a repetidamente, para fazer espantalho, caminhando e dizendo:.— Chô patos! Chô capão!À borda espraiadinha do açude os pequenos, uns atrás dos outros, com instintivos pipilos de alegria, naquele passinho balanceado que lhes é de natureza, caíram na água naturalissimamente, aos olhos do capão, como se o líquido é que fosse o firme.Primeiro o preceptor pensara que aquilo fosse brincadeira.Mas depois, os palmípedes, continuando a velejar triunfalmente a um lado e a outro, o pedagogo levou o caso a sério.

Girava, acima e abaixo, já aflito, a percorrer a trincheira que isolava o abismo líquido. Agachava-se para entrar, recuando hidrófobo; olhava por baixo como galo a brigar; açoitava-se com as moles asas; eriçava a penaria do pescoço; ciscava nervosamente e penicava no chão, a cha­mar aqueles traquinas, cacarejando, gorgolejando, com a sua tocante res­ponsabilidade de educador e aio.

As crianças, porém, os pipis de bico chato, mergulhavam o pescoço na água bolorenta, não cogitando sequer de que o pai putativo morria-se de angústias no seco. Alardeavam, nos tons esverdeados da água, a sua pelúcia cor de flor de algodoeiro, com manchas vivas cor de café — lin­dos flocos a flutuar; suas patas de remos tangiam apressadamente a água para trás; seus biquitos roçavam pela tona à cata de insetos que boia­vam; sulcavam entre os fiapos de lodo; passavam tempo sem tempo a fervilhar no sujo — porcalhões!

A galinha arrepiada estirava o pescoço como quem se põe na ponta dos pés e diz consigo: — "Senhor, o que será aquilo?"O capão resolvera deitar sobre a tábua de bater roupa, onde havia umas ramas de melão silvestre enroladas em uma libra de sabão.

Os círculos de pequenas ondas, da mansa agitação dos nadadores, iam quebrar-se na praiazinha do açude.

Ao longe os guinés cantavam estou fraco, estou fraco, como dizem as crianças; e batia um machado na mata onde borboleteavam as flores do pau ferro e do pau-d'arco sobranceiros.

Um burro peiado abeberava, com um grande chocalho no pescoço; e, de quando em vez, avistava-se o chifre de uma vaca em uma capoeira próxima, cujo cercado, de grandes paus em bruto e tostados, um homem estava desmanchando em lenha. Em uma árvore despida pousava um gavião. Siá Luzia vinha vindo com uma trouxa de roupa suja, rogando pragas à ave de rapina. E dando com os olhos no capão tristemente a chocar sobre a rama de melões, largou uma gargalhada das suas. O am­biente do açude refrescou-lhe o rosto que vinha a arder com o sol.

Ficou em camisa e desenfiou o braço direito para lhe dar livre jogo. Deu de garra ao cacete, e, de cócoras, na posição para ela a mais cô­moda deste mundo, meteu a roupa na água, e tocou-lhe o pau e melão para abrandar o sujo, peça por peça.

O gavião voou para a mata.

Os patinhos saíram ensopados que ninguém os podia pegar. O capão alegrou-se muito quando os viu saltar para fora, mas eles não queriam saber de ninguém porque precisavam secar-se, puxando a água da pe­nugem com o biquinho, expostos ao sol.

Na areia adormecida à sombra rala das ateiras ciscavam pintainhos ao redor de suas próprias mães, e siá Luzia, com um enorme chapeirão de palha, sob a ramagem da gameleira de grandes músculos pardos e redondas folhas verde-escuras, prosseguia a sua alegre faina de lavadeira, com a sua golada de aguardente e o seu cachimbo de cabo curto.

O galo do terreiro deu uma corrida no capão, com grande alarido para todos, ao que a lavadeira, como um Deus que lá num momento pouco se importa que os seus mundos se esboroem, gritou: — Haja pau no ter­reiro, corja!

E continuou a deitar água com a mão e a arrumar na roupa jazente sobre a tábua sonoros golpes de cacete.

A lisa tona do açude eriçava-se de juncos para o longe. O fundo céu azul minava os menores intersticios da água, salpicada de estrelas de sol, com grandes seções de sombra e de imagens de brandas cores.

A galinha arrepiada, agora solta, espojava-se na cinza da barrela.

As coisas nos seus eixos, o capão voltou às boas com os seus pu­pilos.

E Siá Luzia, contando o caso à mulher do inspetor do quarteirão, quando foi levar-lhe a roupa, este senhor, que era ferreiro, e conhecido por muito engraçado, estabeleceu um paralelo entre o capão, o professor da vila e o vigário, que também praticava ensino e dizia que ia montar um colégio na capital.