VELHO FRAGMENTO


I


                             Reinava
Affonso VI. Da corôa em nome
Governava Alvarenga, incorruptivel
No serviço do rei, astuto e manso,
Alcaide-mór e protector das armas;
No mais, amigo deste povo infante,
Em cujo seio placido vivia
Até que uma revolta mysteriosa
Na cadeia o metteu. O douto Mustre
A vara de ouvidor nas mãos sustinha.

II


Que lance ha ahi, nessa comedia humana,
Em que não entrem moças? Descorada,
Como heroina de romance do hoje,
Alva, como as mais alvas deste mundo,
Tal, que disseras lhe negara o sangue
A madre natureza, Margarida
Tinha o suave, delicado aspecto
De uma santa de cêra, antes que a tinta
O matiz beatifico lhe ponha,
Era alta e fina, senhoril e bella,
Delicada e subtil. Nunca mais vivo
Transparecera em rosto de donzella
Vergonhoso pudor, agreste e rude,
Que até de uns simples olhos se offendia
E chegava a corar, se o pensamento
Lhe adivinhava anonymo suspiro
Ou remota ambição de amante ousado.
Era vel-a, ao domingo, caminhando
Á missa, co’os parentes o os escravos
A um de fundo, em grave e compassada
Procissão; era ver-lhe a compostura,
A devoção com que escutava o padre,
E no agnus-dei levava a mão ao peito,
Mão que enchia do fogos e desejos
Dez ou doze amadores respeitosos
De suas graças, varios na figura,

Na posição, na edade e no juizo,
E que alli mesmo, á luz dos bentos cyrios
(Tão de longe vêm já os maus costumes)!
Ousavam inda suspirar por ella.



III


Entre esses figurava o moço Vasco.
Vasco, a flôr dos vadios da cidade,
Namorador dos adros das egrejas,
Taful de cavalhadas, consummado
Nas hippicas façanhas, era o nome
Que mais na baila andava. Moça havia
Que por elle trocara (erro do moça)!
O seu logar no céu; e este peccado,
Inda que todo interior e mudo,
Dous terços lhe custou de penitencia
Que o confessor lhe impoz. Era sabido
Que nas salas da casa do governo,
Certa noite, de magua desmaiaram
Duas damas rivaes, porque o magano
As cartas confundira do namoro.
Estas proezas taes, que o fertil vulgo
Com argumentos de casa encarecia,
E a bem lançada perna, e o luzidio
Dos sapatos, e as sedas e os velludos,
E o franco applauso de uns, e a inveja do outros,
O sceptro lhe doaram dos peraltas.


IV


E, comtudo, era em vão que á ingenua dama
A flôr do esquivo coração pedia;
Inuteis os suspiros lhe brotavam
Do intimo do peito; nem da esperta
Mucama, — natural complice amiga
Desta sorte de crimes, — lhe valiam
Os recados de boca; — nem as longas,
Maviosas lettras em papel bordado,
Atadas co’a symlolica fitinha
Cor de esperança, — e olhares derretidos,
Se a topava á janella, — raro evento,
Que o pae, varão de bolsa e qualidade,
Que repousava das fadigas longas
Havidas no mercado de africanos,
Era um typo de solidas virtudes
E muita experiencia. Poucas vezes
Ia á rua. Nas horas de fastio,
A jogar o gamão, ou recostado,
Com um vizinho, a tasquinar nos outros,
Sem trabalho maior, passava o tempo.


V


Ora, em certo domingo, houve luzida
Festa de cavalhadas e argolhinhas,
Com danças ao ar livre e outros folgares,
Recreios do bom tempo, infancia d’arte,
Que o progresso apagou, e nós trocamos
Por brincos mais da nossa juventude
E melhores de certo; tão ingenuos,
Tão simples, não. Vão longe aquellas festas,
Usos, costumes são que se perderam,
Como se hão perder os nossos de hoje,
Nesso rio caudal que tudo leva
Impetuoso ao vasto mar dos seculos.


VI


Abolada a cidade, quasi tanto
Como nos dias da solemne festa
Da grande acclamação, de que inda fallam
Com saudade os muchachos de outro tempo.
Varões agora do medida e peso,
Todo o povo deixara as casas suas.
Grato ensejo era aquelle! Resoluto
A correr desta vez uma argolinha,

O intrepido mancebo empunha a lança
Dos combates, na fronte um capacete
De longa, verde, fluctuante pluma,
Escancha-se no dorso de um cavallo
E armado vae para a festiva guerra.
Ia a passo o corcel, como ia a passo
Seu pensamento, certo da conquista,
Se ella visse o brilhante cavalleiro

Que, por amor daquelles bellos olhos,
Derrotar promettia na estacada
Um cento de rivaes. Subitamente
Vê apontar a rispida figura
Do rispido negreiro; a esposa o segue,
E logo atraz a suspirada moça,
Que lentamente e placida caminha
Com os olhos no chão. Corpilho a veste
De azul velludo; a manga arregaçada
Ate á doce curva, o braço amostra
Delicioso e nú. A indiana seda
Que a linda mão de moça arregaçava,
Com aquella sagaz indifferença
Que o demo ensina ás mais singelas damas,
A furto lhe mostrou, breve e apertado
No sapatinho fino, o mais gracioso,
O mais galante pé que inda ha nascido
Nestas terras: — tacão alto e forrado
De setim rubro lhe alteava o corpo,
E airoso modo lhe imprimia ao passo.


VII


Ao brioso corcel encurta as redeas
Vasco, e detem-se. A bella ia caminho
E iam com ella seus perdidos olhos,
Quando (visão terrivel)! a figura
Pallida e commovida lhe apparece
Do Freire, que, como elle namorado,
Contempla a dama, a suspirar por ella.
Era um varão distincto o honrado Freire,
Tabellião da terra, não mettido
Nas arengas do bairro. Pouco amante
Dessa gloria que tantas vezes fulge
Quando os mortaes merecedores della
Jazem no eterno pó, não se illustrara
Com actos de bravura ou de grandeza,
Nem cobiçara as distincções do mando.
Confidente supremo dos que á vida
Dizem o ultimo adeus, só lhe importava
Deitar em amplo in-folio as derradeiras
Vontades do homem, repartir co’a penna
Pingue ou magra fazenda, já cercada
De farejantes corvos, — grato emprego
A um coração philosopho, e remedio
Para matar as illusões no peito.
Certo, ver o usurario, que a riqueza
Obteve á custa dos vintens do proximo,
Comprar a eterna paz na eterna vida

Com biocos do posthumas virtudes;
Em torno delle contemplar anciados
Os que, durante longo-aridos annos,
De lisonjas e afagos o cercaram;
Depois alegres uns, sombrios outros,
Conforme foi silencioso ou grato
O abastado defuncto, — emprego é esse
Pouco adequado a jovens e a poetas.



VIII




<poem>
Joven não era, nem poeta o Freire;
Tinha oito lustros e fallava em prosa.
Mas que és tu; mocidade? e tu, poesia?
Um auto de baptismo? quatro versos?
Ou brancas azas da sensivel pomba
Que arrulha em peito humano? Unico as perde
Quem o lume do amor nos seios d’alma
Apagar-se-lhe sente. A nevoa póde,
Qual turbante mourisco, a cumiada
Das montanhas cingir da nossa terra,
Que muito, se ao redor viceja ainda
Primavera immortal? Um dia, ao vel-a
De tantos requestada a esquiva moça,
Sente o Freire bater-lhe as adormidas
Azas do coração. Que não desdoura,
Antes lhe dá realce e lhe desvinca
A nobre fronte a um homem de justiça,

Como os outros mortaes, morrer de amores;
E amar e ser amado é, neste mundo,
A tarefa melhor da nossa especie,
Tão cheia de outras que não valem nada.