Vai o senhor Fausto Ferraz ser despachado representante dos nossos operários no Congresso Trabalhista de Washington.
A nomeação é acertada; não há dúvida alguma.
O senhor Fausto é dos oradores notáveis da Câmara, o mais perfeito carpinteiro como todos sabem; quando não é ferreiro e dá para malhar na bigorna dos ouvidos alheios, alguns períodos patrióticos, líricos e sentimentais de outros tempos.
Há muito que sua senhoria não aparece na tribuna da Câmara. Logo que o facundo parlamentar tomou assento no Congresso Nacional, não havia dia em que ele não dissesse alguma coisa de oportuno e entusiástico, com a sua oratória magnífica em Silvestre Ferraz ou Maria da Fé.
As suas preocupações eram, então, atinentes à pecuária, por isso mesmo sua senhoria estava a calhar para representar operários em assembléia especial que tem por fim discutir medidas de puro interesse dos artífices.
Depois, o senhor Fausto Ferraz quis se fazer conferencista e guinchou a Hora Industrial. Por esse tempo, supomos, o exímio deputado aprendeu ofício.
Uns dizem, como já foi notado aqui, que se iniciou na carpintaria e fez-se notável orador; outros, porém, falam que foi o de ferreiro, ficando ainda mais notável orador do que era.
Seja ferreiro, carpinteiro, pedreiro, laminador, tipógrafos, calafate, cozinheiro, forneiro, oleiro, foguista ajustador, modelador, funileiro, fundidor, soldador, bombeiro, eletricista, relojoeiro, tipógrafo, impressor, sapateiro, linotipista; seja o e for, o certo é que o senhor Fausto Ferraz é um exímio parlamentar orador de moldes de um raro sabor antigo, que muito trabalhará na Conferência Trabalhista de Washington, falando pelas tripas de Judas.
É de esperar que tal se dê, porquanto sua senhoria tem descansado muito este ano, não tendo discursado nem trinta vezes e só apresentando à consideração dos seus pares a ninharia de oitenta e cinco projetos.
Andaram bem os nossos operários escolhendo para o seu representante, no congresso operário de Washington, o doutor Fausto Ferraz.
Não há homem mais trabalhista do que ele, sobretudo da língua; e, em tudo e por tudo, essa escolha é acertadíssima.
Na conferência da América do Norte, o jovem operário Fausto Ferraz, há bem pouco tempo iniciado em qualquer ofício manual, será o expoente, como se diz na Academia, das nossas classes trabalhadoras. O que era preciso, era darem-lhe um companheiro. Lembramos o banqueiro João Ribeiro.
Coreto, Rio, 1-11-1919.
COERÊNCIA
Um grande salão, forrado de estantes de luxo, pejadas de grossos livros virgens, os onze mil da anedota, o grande político, pela manhã, lê os jornais, depois de um excelente banho morno e um suculento chocolate com torradas.
Está com o vestuário mais que caseiro, pois espera o grande banqueiro Baruc para tratar de um empréstimo, destinado ao saneamento da cidade de Itaçucê que faz parte do seu distrito eleitoral.
Abre em primeiro lugar o Diário do Rio de Janeiro,dirigido pelo grande jornalista português Alcoforado. É o jornalista de sua paixão, ainda últimamente, na questão da Estrada de Ferro da Trindade, proporcionou-lhe meios e modos de ganhar nada menos de duzentos contos.
Lê o artigo de fundo e este período enche-o de júbilo:
"O nosso Brasil muito deve à república. Os seus homens públicos têm sido de um grande desvelo e carinho no enfrentar os problemas máximos da nossa pátria, resolvendo-os com perfeição e sabedoria."
Por aí ele quase exclama:
— Este português tem muito talento!
Refletia, mas absteve-se de gritar, para não parecer maluco. Acabou de ler o artigo de Alcoforado e tomou o diário rubro - A Idéia Nacional -; dirigido pelo mais jacobino dos nossos jovens jornalistas. Deixou um artigo enorme, na primeira coluna, que tratava de - Os Bandeirantes e a idéia nacional, passou para a quarta, onde se lhe deparou esse tópico:
"Não é possível que a sociedade nacional permita que o português Alcoforado emita juízos sobre a nossa política interna. Essas coisas só podem e devem ser discutidas pelos brasileiros natos, pois só a eles interessam, porquanto se supõe que quem as segue, é porque aspira o cargo de presidente que só pode ser exercido por brasileim nato."
Neste ponto, o grave político suspendeu a leitura, tanto estava arranhado e disse de si para si:
— Que argumentos! Homessa!
Anunciaram-lhe a chegada do grande Alcoforado. Mandou que o fizessem entrar. Não tardou que tal se realizasse; e o homem entrou mesureiro, consumado cortesão que era. Quem o visse lá fora, arrogante com os inferiores e subalternos, não o reconheceria ali, quase de joelhos diante daquele manipanso parlamentar. Após os cumprimentos, o senador perguntou:
— Alcoforado, você leu o suelto do Bretas, na A Idéia?
— Li, excelentíssimo. Vossa excelência quer que lhe diga uma coisa?
— Diga.
— Esse Bretas é um asno.
— Não é só isso. Ele mostra ser de uma ignorância crassa. A Constituição permite a todos, a livre manifestação de pensamento e não faz distinção entre nacionais e estrangeiros.
— É verdade, fez Alcoforado; mas não vale a pena discutir com um tipo como esse Bretas. É perder tempo!
Falaram depois sobre emoções, negócios, pândegas; e, ao olhar o monte de jornais, Alcoforado foi ferido pelo título de um modesto jornaleco
— O Inimigo das Leis.
— Vossa excelência lê isto?
— O que?
— O Inimigo das Leis.
— Que é? É a primeira vez que o recebo.
— É um jornaleco anarquista, virulento e violento.
— Não conhecia.
— Quer ver, vossa excelência! Vou abri-lo e ler-lhe um trecho.
— Vamos ver.
Alcoforado abre o jornal e lê:
"A República do Brasil, como em toda a parte, falhou."
"A burguesia capitalística, industrial, comercial, jurídica e administrativa, como nos demais países do mundo, se há mostrado incapaz de guiar o rebanho humano para a felicidade."
— Ouviu, vossa excelência?
— Ouvi! Quem assina isto?
— É um tal Pantaleone
— Quem é?
— É um italiano que foi sapateiro e, aqui, ganhou algumas luzes e vive da exploração dos operários, sob o pretexto de propagar idéias avançadas.
— É preciso expulsá-lo.
— Acho que sim.
— Vou hoje mesmo ao chefe de polícia.
— Vossa excelência faz muito bem.
— É uma medida de profilaxia social.
— Não há dúvida alguma.
Nisto entrava o banqueiro Baruc e a conversa tomou outro rumo.
Careta, Rio, 1-11-1919.