ATO PRIMEIRO
CENA PRIMEIRA
editarERNESTO, BRAGA, depois UM MENINO que vende fósforos.
ERNESTO (entrando de um salto) – Apre! É insuportável! Não se pode viver em semelhante cidade; está um homem sujeito a ser empurrado por todos esses meus senhores, e esmagado a cada momento por quanto carro, carroça, carreta ou carrinho anda nestas ruas. Com efeito é uma família... Desde o ônibus, o Noé dos veículos, até o coupé aristocrático e o tílburi plebeu! BRAGA (dobrando as fazendas) – É porque o senhor ainda não está habituado. O MENINO ([entrando e] dirigindo-se a ERNESTO) – Fósforos! Fósforos! Inalteráveis e superiores! ... (A BRAGA) Fósforos Sr. Braga. ERNESTO – Deixe-me, menino! O MENINO – Excelentes fósforos de cera a vintém! ERNESTO (a BRAGA) – Oh! que maçada! Deixe-me! (O MENINO sai.) Esta gente toma-me naturalmente por algum acendedor de lampiões; entendem que eu vim ao Rio de Janeiro unicamente para comprar fósforos. Já não me admira que haja aqui tantos incêndios. (Senta-se junto do balcão; uma pausa.) Como as coisas mudam vistas de perto! Quando estava em São Paulo o meu sonho dourado era ver o Rio de Janeiro, esse paraíso terrestre, essa maravilha de luxo, de riqueza e de elegância! Depois de três anos de esperanças consigo enfim realizar o meu desejo: dão-se as férias, embarco, chego e sofro uma das mais tristes decepções da minha vida. Há oito dias apenas que estou na corte e já tenho saudades de São Paulo. (Ergue-se.) BRAGA – O Sr. não escolhe alguma coisa? Presentes para festas, o que há de mais delicado; perfumarias... ERNESTO (voltando-lhe as costas) – Obrigado!
CENA II
editarOs mesmos, FILIPE
FILIPE ([entrando] a ERNESTO) – Vinte contos, meu caro senhor! Anda amanhã a roda!... Vinte contos! ERNESTO – Agradeço; não estou disposto. BRAGA – Oh! Sr. Filipe! FILIPE – Quer um bilhete, um meio ou um quarto? Vigésimos... Também temos. ERNESTO (passeando) – Nada; não quero nada. FILIPE – Bom número este; premiado três vezes! Mas se prefere este... ERNESTO – Já lhe disse que não preciso dos seus bilhetes. FILIPE – Pois enjeita? A sorte grande? Olhe não se arrependa! ERNESTO – A sorte grande que eu desejo é ver-me livre de sua pessoa! FILIPE (baixo a BRAGA) – Malcriado! BRAGA (baixo a FILIPE) – É um provinciano! (FILIPE sai.) ERNESTO – Enfim! Estou livre deste! Que terra!... É uma perseguição constante. (Passeia.)
CENA III
editarERNESTO, BRAGA, AUGUSTO
AUGUSTO (entrando) – Oh! (examinando ERNESTO) Será algum acionista?.. Vejamos! Tratemos de entabular relações! ERNESTO (tira o relógio) – Já duas horas! Uma manhã inteiramente perdida. AUGUSTO (cumprimentando) – O Sr. faz-me o obséquio de dizer que horas são? ERNESTO – Como? AUGUSTO – Que horas tem no seu relógio? ERNESTO – Ah! desculpe; está parado. (Baixo a BRAGA) É o que faltava!... servir de torre de igreja aqui ao Sr. AUGUSTO (a BRAGA) – Decididamente é acionista! Que diz? Tem-me ares de lavrador; são pelo menos vinte ações. Justamente as que me faltam para completar as cem que vendi. A dez mil-réis de prêmio... (Corre atrás de um homem que passa no fundo da loja.) Olá sio!... Aquelas trinta não quer vender?... Dou-lhe sete!... ERNESTO (a BRAGA) – Que extravagante! Vê-se cada figura neste Rio de Janeiro! (Senta-se e tira um charuto.) Ora deixe-me experimentar um dos tais fósforos de cera. (Acende o charuto.) BRAGA – Aí vem o homem outra vez. (Ri-se.) AUGUSTO (voltando) – O Sr. faz-me obséquio do seu fogo? ERNESTO (a BRAGA) – Ainda! Isto não tem jeito. AUGUSTO (tomando o charuto) – Com licença! Creio que não me enganei; o Sr. é um dos contemplados; trinta pelo menos... ERNESTO (a BRAGA) – Estou quase oferecendo-lhe uma caixa de fósforos. AUGUSTO (dando o charuto) – Obrigado! Volto para a Praça que está hoje animada. ERNESTO – Estimo muito. AUGUSTO – Se quer vender as suas ações, hão perca a ocasião. ERNESTO – Vender as minhas ações? AUGUSTO – Sim, Sr.; acredite no que lhe digo; não valem mais do que cinco mil-réis e já são bem pagas. ERNESTO – O Sr. quer brincar naturalmente! AUGUSTO – Não brinco em negócio. Para encurtar razões dou-lhe seis mil-réis. Quer? Aqui estão. Quantas tem? ERNESTO (a BRAGA) – Deste gênero ainda não tinha encontrado! É pior do que os tais cambistas de loterias. (Passeia.) AUGUSTO – Então que decide? ERNESTO – Nada, Sr. AUGUSTO – Acha pouco? Tenho mais baratas; porém para concluir dou-lhe seis e quinhentos... Sete pagando a corretagem. ERNESTO (contrariado) – Pelo que, Sr.?... Disse-lhe que desejava vender alguma coisa para que o Sr. esteja a maçar-me há meia hora, oferecendo-me preços? AUGUSTO – Não me disse; mas eu adivinhei. Nós cá, homens habilitados ao negócio, não precisamos que nos digam as coisas. Apenas o vi, descobri logo que era acionista... ERNESTO – O quê? Acionista?. AUGUSTO – Sim; que tinha sido contemplado na distribuição das ações da Estrada de Ferro, na qualidade de lavrador naturalmente; por isso ofereço-lhe os meus serviços. ERNESTO – E o que é o Sr.? AUGUSTO – Corretor de fundos e mercadorias; incumbo-me de todas as transações de crédito e câmbio, como saques, descontos. ERNESTO – Pois, meu Sr., sinto dizer-lhe que nem sou acionista, nem fui contemplado em distribuição de coisa alguma. AUGUSTO – Deveras? ERNESTO – Dou-lhe minha palavra. AUGUSTO – Basta; às suas ordens. (A BRAGA) Levei um logro! uma transação magnífica! Também não sei onde estava com a cabeça! Devia ver logo que este sujeitinho não tem a cara respeitável de um acionista! (Vai sair pelo fundo). ERNESTO (a BRAGA) – Que diabo de profissão é a que exerce este buscapé vestido de paletó? BRAGA – Creio que é um corretor. ERNESTO – Fico-o conhecendo. (AUGUSTO saindo, encontra CUSTÓDIO que entra.)
CENA IV
editarOs mesmos, CUSTÓDIO
CUSTÓDIO (cumprimentando AUGUSTO) – Passou bem, Sr. Augusto? Que há de novo?... AUGUSTO (rápido) – Câmbio 27 ½; juros 9 e 10%; cotação oficial. Ações – vendas animadas; Estradas de Ferro, dez, bastante procuradas. Tem Estrada de Ferro?... CUSTÓDIO – Dizem que o ministério não está seguro?... AUGUSTO (rápido) – Seguro monstro – estacionário. Banco do Brasil – 102; Hipotecário 205 – mercado regular, poucas vendas. Mangaratiba – frouxo; Paquetes e Gás – oscilam; Rua do Cano – baixa completa, desconto. CUSTÓDIO – Então não diz nada a respeito da política? AUGUSTO – Digo que tome o meu conselho; Estrada de Ferro, Estrada de Ferro, e largue o mais. Adeus; vou concluir uma operação importante. (Sai.) ERNESTO (a BRAGA) – Eis como se diverte um homem aqui na corte, olhando para o tempo e sofrendo as maçadas de todos estes importunos! Oh! Os Srs. folhetinistas com os seus contos de mil e uma noites são os culpados do que me acontece! Quem os lê e quem vê a realidade! (CUSTÓDIO dá um passeio pela loja e dirige-se a ERNESTO; BRAGA vai ao fundo.)
CENA V
editarERNESTO, CUSTÓDIO
CUSTÓDIO – Muito bom-dia? (Apertam as mãos). ERNESTO – Viva, senhor! (A BRAGA) Eis um sujeito que me conhece, mas que naturalmente nunca me viu. CUSTÓDIO – Que há de novo? ERNESTO – E esta? O senhor não leu os jornais? CUSTÓDIO – Passei apenas os olhos... (Senta-se.) ERNESTO – Pois eu nem isto. (A BRAGA) Pensa este senhor que sou algum almanaque de notícias? Achou-me com cara de boletim? CUSTÓDIO – Que calor que está fazendo. Creio que teremos mudança de tempo. O senhor não acha? ERNESTO – Vou ver, depois lhe direi. (Vai sair, encontra-se com HENRIQUE que entra.)
CENA VI
editarOs mesmos, HENRIQUE
HENRIQUE – Ernesto! Oh! Quando chegaste? ERNESTO – Adeus; como vais, Henrique? HENRIQUE – Perfeitamente, e tu? Alegro-me muito em ver-te por aqui. ERNESTO – Não esperava ter o prazer de te encontrar. HENRIQUE – Desembarcaste hoje mesmo? ERNESTO – Não; há oito dias. HENRIQUE – Como deixaste São Paulo? ERNESTO – No mesmo estado. HENRIQUE – É verdade; aproveito a ocasião para pedir-te um pequeno obséquio. ERNESTO – Estou às tuas ordens. HENRIQUE – Chegaste há pouco, e naturalmente deves ter curiosidade de ver os nossos teatros; aceita este bilhete, é do benefício de um hábil artista. ERNESTO (com ironia) – Ora, meu amigo, és tu que me fazes o obséquio: obrigadíssimo. HENRIQUE – Onde estás morando? ERNESTO – No Hotel de Botafogo. HENRIQUE – Sei; adeus. Havemos de nos ver. ERNESTO – Sim; quando quiseres. HENRIQUE (saindo, passa por CUSTÓDIO) – Tem passado bem, Sr. Custódio? CUSTÓDIO (levanta-se) – Bem, obrigado. Que há de novo? HENRIQUE – Quer ficar com um bilhete do benefício de... CUSTÓDIO – Nada. Há vinte anos não frequento os espetáculos; no meu tempo... HENRIQUE (rindo-se) – Frequentava o teatrinho de bonecos! (Sai.) CUSTÓDIO – Criançola!
CENA VII
editarERNESTO, CUSTÓDIO
ERNESTO (mostrando o cartão) – Mais uma bucha! CUSTÓDIO – Pois caiu? ERNESTO – Está me parecendo que esta gente não faz outra coisa desde o princípio até o fim do ano senão beneficiar se mutuamente; mas beneficiar-se desta maneira! Proudhomme que definiu a propriedade um roubo legitimado pela lei se viesse ao Rio de Janeiro, não podia deixar de definir o benefício um estelionato legitimado pela sociedade. A pretexto de teatro e de baile um amigo abusa da nossa confiança e nos toma cinco ou dez mil-réis contra a nossa vontade. CUSTÓDIO – Pensa muito bem! O governo é o culpado... ERNESTO – Dos benefícios? CUSTÓDIO – De tudo! (Entram HENRIQUE e PEREIRA.)
CENA VIII
editarOs mesmos, HENRIQUE, PEREIRA
HENRIQUE – Meu amigo, desculpa; não pude deixar de voltar para ter o prazer de apresentar-te o Sr. Pereira, um dos nossos poetas mais distintos. PEREIRA – É bondade de meu amigo! CUSTÓDIO ( a meia voz) – Que firma! ERNESTO – Ah! O Sr. é poeta! Estimo muito conhecê-lo: tenho uma grande simpatia pelos poetas, embora na minha vida nunca conseguisse fazer um verso. PEREIRA – Isto não quer dizer nada; Chateaubriand é um grande poeta e escreveu em prosa. HENRIQUE – Meu amigo, nós não queremos tomar-te o tempo. O Sr. Pereira vai publicar um volume de suas primeiras poesias e espera que tu, que és amante da literatura, protejas essa publicação. ERNESTO – Tu pedes, Henrique, não posso recusar. PEREIRA – Submeto à consideração de V.S.a. o programa da assinatura. Um belo volume in-8o francês, de cem páginas, 5$OOO no ato da entrega. Não exijo adiantado. ERNESTO – Mas não há necessidade de demorar uma coisa que pode ficar concluída. (Tira a carteira.) PEREIRA – V.S.a. ordena... HENRIQUE – Tomas duas assinatura ou três? ERNESTO – Uma basta, Henrique; sabes que a minha fortuna não está a par do meu gosto pela literatura. PEREIRA – É sempre assim; os grandes talentos são ricos de inteligência, mas pobres desse vil objeto a que se chama dinheiro. (Recebe a nota.) Muito obrigado, Sr.... ERNESTO – Não tem de quê. (Entra D. LUÍSA.)
CENA IX
editarOs mesmos, D. LUÍSA
D. LUÍSA – Perdão, meus Srs.; tenham a bondade de ler este papel. HENRIQUE (finge não ouvir) – Até logo, Ernesto. PEREIRA (a ERNESTO) – Tive muito prazer em conhecer a V.S.a.. D. LUÍSA – Uma pobre viúva! Meu marido... PEREIRA – Se puder servir-lhe para alguma coisa... ERNESTO – Igualmente! HENRIQUE (a PEREIRA) – Vamos; tenho pressa. D. LUÍSA – Então, Srs.! Qualquer coisa... PEREIRA – Às suas ordens. (Sai.) D. LUÍSA – Não lê? HENRIQUE – Adeus, adeus. (Sai.)
CENA X
editarERNESTO, CUSTÓDIO, D. LUÍSA
ERNESTO (a CUSTÓDIO) – Que papel será esse que aquela Sra. pede com tanta instância para ler? Talvez alguma notícia importante? CUSTÓDIO (levantando-se) – Com sua licença. D. LUÍSA (a CUSTÓDIO, apresentando o papel) – O Sr. faz obséquio?... CUSTÓDIO (saindo) – Esqueci os óculos em casa. (Sai.)
CENA XI
editarERNESTO, D. LUÍSA, depois BRAGA
D. LUÍSA – V.S.a. ao menos me fará a caridade! ERNESTO – Deixe ver. (Abre o papel) Ah! uma subscrição! Por isso é que os tais amigos se puseram todos ao fresco, fazendo-se desentendidos; um tinha pressa, o outro esqueceu os óculos. (Fecha.) Desculpe, minha Sra.; não posso dar nada; tenho feito muitas despesas. D. LUÍSA – Pouco mesmo que seja; tudo serve. É para fazer o enterro do meu pobre marido que expirou esta noite e deixou-me ao desamparo com oito filhinhos... ERNESTO – Pobre mulher! Para esta não há um benefício! Mas diga-me, seu marido nada possuía? A Sra. não tem parentes? D. LUÍSA – Nem um; não tenho ninguém de quem me valer. Acredite, Sr., que para chegar a este estado de recorrer à piedade dos que não me conhecem, foi preciso ver meus pobres filhinhos nus, e chorando de fome, os coitadinhos. BRAGA (dentro do balcão) – Temos choradeira! ERNESTO – Corta o coração, não acha? Torne, minha Sra.; sinto não poder dar mais; porém não sou rico. (Dá uma nota.) D. LUÍSA (Examinando a nota) – Cinco mil-réis!... (Olha ERNESTO com ar de zombaria e sai). ERNESTO – E esta! Nem sequer um obrigado; julga que não lhe fiz favor? BRAGA – Ora o Sr. ainda deixa-se lograr por esta gente? ERNESTO – E o Sr. não viu? Por que não me avisou? BRAGA – Não gosto de me intrometer nos negócios dos outros. ERNESTO – Boa moral!... Oh! mas esta não aturo. (Vai sair correndo e encontra-se com TEIXEIRA, JÚLIA e D. MARIANA que entram.)
CENA XII
editarERNESTO, TEIXEIRA, JÚLIA, D. MARIANA, BRAGA
ERNESTO – Ah!... JÚLIA – Ernesto! TEIXEIRA – Bom dia, sobrinho. ERNESTO – Adeus, meu tio. D. Mariana... Como está, prima? JÚLIA – Boa, obrigada. ERNESTO – Anda passeando? JÚLIA – Não; vim fazer algumas compras. TEIXEIRA – Júlia, enquanto ficas vendo as fazendas com D. Mariana, vou à Praça e já volto. JÚLIA – Sim, papai; mas não se demore. TEIXEIRA – um instante! (Sai.) BRAGA (fora do balcão) – O que deseja V.Ex.a? JÚLIA – Alguns cortes de musselina e barege. BRAGA – Temos lindíssimos, do melhor gosto, chegados no paquete, da última moda; hão de agradar a V. Ex.a; é fazenda superior. JÚLIA – Pois deite-os lá dentro que já vou escolher. BRAGA – Sim, Sra.; V.Ex.a há de ficar satisfeita. (Sobe a cena com D. MARIANA.) ERNESTO – Como, prima! A Sra. já tem excelência? JÚLIA (sorrindo) – Aqui na corte todo o mundo tem, Ernesto. Não custa dinheiro. ERNESTO – Entendo! Entendo! Mais esta singularidade para as minhas notas. BRAGA (dentro do balcão à D. MARIANA) – Sim, minha Sra.; tenha a bondade de esperar um momento; já venho mostrar-lhe fazenda que há de agradar-lhe. (JÚLIA senta-se.)
CENA XIII
editarERNESTO, JÚLIA, D. MARIANA, depois BRAGA
JÚLIA – Diga-me, Ernesto, como tem achado o Rio de Janeiro? ERNESTO – Quer que lhe confesse a verdade, Júlia? JÚLIA – Decerto, primo; não há necessidade de encobrir. Já sei que não gostou? ERNESTO – Ah! Se fosse só isso! (D. MARIANA desce.) JÚLIA – O que é mais então? ERNESTO – Sinto declarar; mas o seu Rio de Janeiro é um verdadeiro inferno! D. MARIANA – Com efeito, Sr. Ernesto! JÚLIA – Não diga isto, primo. ERNESTO – Digo e repito; um verdadeiro inferno. JÚLIA – Mas por quê? ERNESTO – Eu lhe conto. Logo que cheguei, não vi, como já lhe disse, no aspecto geral da cidade, nada que me impressionasse. Muita casa, muita gente, muita lama; eis o que há de notável. Porém isto não é nada; de perto é mil vezes pior. JÚLIA – E depois? Quando passeou? ERNESTO – Quando passeei? Porventura passeia-se no Rio de Janeiro? O que chama a senhora passear? É andar um homem saltando na lama, como um passarinho, atropelado por uma infinidade de carros, e acotovelado por todo o mundo? É não ter um momento de sossego, e estar obrigado a resguardar os pés de uma carroça, o chapéu de um guarda-chuva, a camisa dos respingos de lama, e o ombro dos empurrões? Se é isto que a senhora chama passear, então sim, admite que se passeie no Rio de Janeiro; mas é preciso confessar que não são muito agradáveis esses passeios. JÚLIA – Já vejo que o primo não gosta da sociedade; é mais amigo da solidão. D. MARIANA (no balcão vendo fazendas) – Pois em um moço admira. ERNESTO – Perdão, Júlia; gosto da sociedade; com ser estudante de São Paulo, não desejo passar por um roceiro. Mas quero estar na sociedade à minha vontade e não à vontade dos outros; quero divertir-me, olhar, observar; e não ser obrigado a responder a um sujeito que me pede fogo, a outro que me pergunta o que há de novo, e a outro que deseja saber quantas horas são. JÚLIA – E a Rua do Ouvidor? Que me diz? Não achou bonita? À noite sobretudo? ERNESTO – Oh! não me fale na tal Rua do Ouvidor! Se o Rio de Janeiro é o inferno, a Rua do Ouvidor é o purgatório de um pobre estudante de São Paulo que vem passar as férias na corte. JÚLIA – Não o compreendo, primo; é inteiramente o contrário do que me dizem todos. D. MARIANA (sempre no balcão) – Decerto; não há quem não fique encantado! ERNESTO – Pode ser, D. Mariana, não contesto; os gostos são diferentes, mas eu lhe digo os encantos que achei na Rua do Ouvidor. Apenas dei o primeiro passo, saltou-me um sujeito gritando a goelas despregadas "Fósforos! Fósforos inalteráveis e superiores! A vintém!" Para me ver livre do tal menino tive que trocar uma nota e comprar um embrulho de caixas de fósforos. JÚLIA (rindo) – Mas para que comprou? D. MARIANA – Não tinha necessidade... ERNESTO – Queriam que andasse com aquele pajem de nova espécie a aturdir-me os ouvidos?... Porém não fica nisto; apenas vejo-me livre de um, eis-me com outro: "Vigésimos, quartos, bilhetes, meios e inteiros! Sorte grande!" Lá se foram dez mil-réis. JÚLIA – Ainda? Foi também para se ver livre? ERNESTO – E porque estavam muitas pessoas que olhavam para mim, e não queria que me tornassem por um pobretão. JÚLIA – Que ideia! Todos eles estão acostumados a isso, e não fazem caso. ERNESTO – Ainda não acabei. Daí a pouco um benefício do ator tal, uma subscrição para isto, um cartão de baile das sociedades de beneficência de todas as nações do mundo. Enfim encontro um amigo que não me via há três anos, e o primeiro cumprimento que me dirigiu foi empurrar-me este bilhete e ainda em cima um volume de poesias que já paguei, mas que ainda não está impresso. JÚLIA (sorrindo) – Abusam de sua boa-fé, meu primo. É natural; ainda não conhece os nossos costumes; mas no meio de tudo isso, não vejo razão para desgostar-se tanto do Rio de Janeiro. ERNESTO – Pois eu vejo. Que quer dizer sair um homem de casa para divertir-se, e voltar com as algibeiras cheias (tirando) de caixas de fósforos, de programas de espetáculos, de bilhetes de todas as qualidades, e de todas as cores, menos do tesouro; e além de tudo com a carteira vazia? Não, a Sra. pode achar muito boa a sua terra, mas eu não estou disposto a aturá-la por mais tempo. JÚLIA – Que diz, primo? ERNESTO – Vou-me embora; amanhã sai o vapor Josefina e eu aproveito. JÚLIA – Deveras, Ernesto? Não é possível! D. MARIANA – Não vê que está brincando? ERNESTO – Palavra de honra! Tenho pressa de dizer adeus a esta terra dos fósforos, das loterias, e dos benefícios. . . Oh! dos benefícios sobretudo!... JÚLIA – Escute, meu primo. Admito que essas primeiras impressões influam no seu espírito; que o Rio de Janeiro tenha realmente estes inconvenientes; mas vá passar um dia conosco nas Laranjeiras, e eu lhe mostrarei que em compensação há muitas belezas, muitos divertimentos que só na corte se podem gozar. ERNESTO – Quais são eles? Os passeios dos arrabaldes? – Um banho de poeira e de suor. Os bailes? – Um suplício para os calos e um divertimento só para as modistas e os confeiteiros. O teatro lírico? – Uma excelente coleção de medalhas digna do museu. As moças?... Neste ponto bem vê que não posso ser franco, prima. JÚLIA – Fale; não me importa. Tenho até curiosidade em saber o que pensa das moças do Rio. Fale! ERNESTO – Pois bem; já que manda, dir-lhe-ei que isto de moça é espécie desconhecida aqui na corte. JÚLIA – Como? Não sei o que quer dizer. ERNESTO – Quero dizer que não há moças no Rio de Janeiro. JÚLIA – E eu o que sou? ERNESTO – Pior é esta! Não falo dos presentes. JÚLIA – Bem; mas explique-se. ERNESTO – No Rio de Janeiro, prima, há balões, crinolinas, chapéus à pastora, bonecas cheias de arames, tudo o que a Sra. quiser; porém, moças, não; não posso admitir. Ignoro que haja no mundo uma degeneração da raça humana que tenha a cabeça mais larga do que os ombros; que carregue uma concha enorme como certos caramujos; que apresente enfim a forma de um cinco. JÚLIA – De um cinco? Que esquisitice é esta? ERNESTO – É a verdade. Olhe uma moça de perfil, e verá um cinco perfeito. O corpo é a haste fina, o balão é a volta, e o chapéu arrebitado é o corte. (Apontando para o espelho fronteiro) Olhe! Lá está um. JÚLIA (voltandose) – Aonde? ERNESTO (rindo-se) – Ah! Perdão, prima, era a Sra. JÚLIA – Obrigada pelo cumprimento! (Senta-se.) ERNESTO – Ficou zangada comigo, Júlia? JÚLIA – Não; zangada, por quê? ERNESTO – Cuidei. (Uma pausa.) JÚLIA – À vista disto o primo não viu no Rio de Janeiro nada que lhe agradasse? ERNESTO – Nada absolutamente, não; vi alguma coisa, mas... JÚLIA – Mas. . . Acabe! ERNESTO – O que me agrada é justamente o que não me persegue, o que me foge mesmo. JÚLIA – Diga o que é? ERNESTO – Não posso... Não devo... JÚLIA – Ora quer fazer mistério. ERNESTO – Pois bem; vai por sua conta; depois não se zangue. D. Mariana, faça que não ouve. São seus olhos, Júlia! D. MARIANA – Hein!... JÚLIA (corando) – Ah! Ernesto! Quer zombar de mim? ERNESTO – Olhe que eu não sou cá do Rio de Janeiro. JÚLIA – Não importa; mas é estudante. ERNESTO – Boa maneira de lembrar-me a minha humilde posição. JÚLIA – Primo, não interprete mal as minhas palavras. ERNESTO – Oh! Não pense que desconfio, não! Sei que um estudante é um animal que não tem classificação social; pode ser tudo, mas ainda não é nada. É uma letra de câmbio que deve ser descontada pelo futuro, grande capitalista de sonhos e de esperanças. Ora as moças têm medo do futuro, que para elas quer dizer o cabelo branco, a ruga, o carmim, o pó de arroz, et caetera. JÚLIA – Isto são as moças vaidosas que só vivem de frivolidades, e eu creio, meu primo, que o Sr. não deve fazer esta ideia de mim; ao contrário... BRAGA (adianta-se entre os dois) – Minha Sra., os cortes de vestidos estão às ordens de V.Ex.a. ERNESTO (consigo) – Maldito caixeiro! JÚLIA – Já vou. ERNESTO – Adeus, Júlia, lembranças a meu tio, D. Mariana... JÚLIA – Venha cá, Ernesto, espere por papai. ERNESTO – Não posso; adeus. (Sai.)
CENA XIV
editarJÚLIA, D. MARIANA
JÚLIA – Não sei por que me interessa esse caráter original. Tenho-lhe amizade já, e apenas o vi há oito dias, e com esta a segunda vez. D. MARIANA – Ouviu o que ele disse?... Seus olhos... JÚLIA – Qual, D. Mariana, não creia. Cumprimentos de moço... Parte amanhã!... D. MARIANA – Isto diz ele. JÚLIA – Ora, deixe-me escolher os vestidos. Vamos!... (Entram no interior da loja.)
CENA XV
editarFILIPE, D. LUÍSA
D. LUÍSA – O Sr. tenha a bondade de ler este papel. FILIPE – Vejamos. (Lê) A Sra. é viúva então? D. LUÍSA – É verdade; perdi meu marido; estou na maior desgraça; nove filhinhos dos quais o maior não tem cinco anos. FILIPE – Nesse caso nasceram de três meses como os cordeiros. Nove filhos em cinco anos! D. LUÍSA – São gêmeos, Sr. FILIPE – Ah! tem razão! Foi uma ninhadazinha de pintos. D. LUÍSA – O Sr. está zombando de mim? Se não fosse a dor de ver os pobrezinhos nus, chorando de fome, coitadinhos, não me animaria a recorrer à esmola das pessoas caridosas. FILIPE – Fique certa que elas não deixarão de ampará-la nessa desgraça. D. LUÍSA – E o Sr.... pouco mesmo... FILIPE – Eu, minha Sra., não posso ser insensível ao seu infortúnio; a Sra. está justamente no caso de ser feliz. Não há desgraça que sempre dure. Só a sorte grande a pode salvar. D. LUÍSA – Que diz, senhor? FILIPE (tirando os bilhetes) – Um meio, um quarto, um vigésimo! Não perca esta ocasião; não rejeite a fortuna que a procura. D. LUÍSA – Ora, senhor! Não se ria da desgraça do próximo. FILIPE – Eu rir-me da desgraça dos outros! Eu que vivo dela! D. LUÍSA – Estou quase aproveitando os cinco mil-réis de há pouco. FILIPE – Vamos, resolva-se. D. LUÍSA – Está bom! Sempre compro um quarto. FILIPE – Antes um meio. D. LUÍSA – Não quero; há de ser um quarto. FILIPE – Aqui tem. (A meia voz) E pede esmolas!... (Entra uma menina de realejo que pede a gorjeta com um pandeiro.) D. LUÍSA – Sai-te, vadia! A polícia não olha para estas coisas. FILIPE – É verdade; não sei para que servem as autoridades. D. LUÍSA – Deixam as pessoas honestas serem perseguidas por esta súcia de mendigos... FILIPE – Que não têm profissão. (Saem à direita; JÚLIA, D. MARIANA e BRAGA entram do interior da loja.)
CENA XVI
editarJÚLIA, D. MARIANA, BRAGA
(BRAGA traz uma caixa de corte de vestido.) D. MARIANA – São muito bonitos os vestidos; você soube-os escolher, Júlia. BRAGA – A senhora tem muito bom gosto. JÚLIA – Mande deixar isto no meu carro. BRAGA – Vou eu mesmo. (Sai pelo fundo.)
CENA XVII
editarERNESTO, JÚLIA, D. MARIANA
ERNESTO (entrando à direita todo enlameado) – Bonito!... Estou fresco. D. MARIANA (rindo) – Ah! ah! ah! JÚLIA – O que é isto, Ernesto? ERNESTO – O que vê, prima. A sua Rua do Ouvidor pôs-me neste estado miserável! Uma maldita carroça! Estúpidos que não olham para quem passa! JÚLIA (sorrindo) – Foi uma vingança, primo; o senhor acabava de dizer mal do Rio de Janeiro. ERNESTO – E não tinha razão? Uma cidade de lama! Felizmente já mandei tomar a minha passagem. (Entra Teixeira.) JÚLIA – Como! Sempre vai amanhã? ERNESTO – Que dúvida! E até por segurança embarco hoje mesmo.
CENA XVIII
editarOs mesmos, TEIXEIRA
TEIXEIRA – Que é isto! Falas em embarcar. Para onde vais? ERNESTO – Volto para São Paulo, meu tio. JÚLIA – Veio-lhe agora esta ideia! Diz que não gosta da corte, que é uma terra insuportável... D. MARIANA – Um inferno! TEIXEIRA – Caprichos de rapaz! Não há cidade como o Rio de Janeiro. É verdade que já não é o que foi. Bom tempo, o tempo das trovoadas. Que diz, D. Mariana? D. MARIANA – Tem razão, Sr. Teixeira. ERNESTO – Faço ideia! Se sem as tais trovoadas estou neste estado! TEIXEIRA – Não sabes o que dizes. As trovoadas é que nos preservam da febre amarela, do cólera e de todas essas moléstias que nos perseguem agora. ERNESTO – Não quero contrariá-lo, meu tio; a sua corte é bela, é magnífica, com ou sem trovoadas. Mas eu por causa das dúvidas vou admirá-la de longe. JÚLIA – Já tomou passagem, papai; vai amanhã. TEIXEIRA (a ERNESTO) – Pois não! Julgas que consinto nessa loucura! Em falta de meu irmão, teu pai, eu faço as suas vezes. Proíbo-te expressamente... ERNESTO – Meu tio, é impossível, moralmente impossível... TEIXEIRA – Tá, tá, tá! Não me entendo com os teus palavrões de Academia. Eu cá sou homem do pão, pão, queijo, queijo: disse que não irás e está dito. JÚLIA – Muito bem, papai. (A ERNESTO) Não tem remédio senão ficar. D. MARIANA – E não se há de arrepender. ERNESTO – Meu tio, previno-lhe que se me obriga a ficar nesta terra, suicido-me. JÚLIA – Ah! Ernesto! D. MARIANA – Que rapaz cabeçudo! TEIXEIRA – Fumaças! Não façam caso. ERNESTO – Ou me suicido, ou mato o primeiro maçante que vier importunar-me. TEIXEIRA – Lá isto é negócio entre ti e a polícia. (Tira o relógio.) Quase três horas! Vamos D. Mariana, Júlia. . . Ande, Sr. recalcitrante, há de jantar hoje conosco. JÚLIA (a ERNESTO) – Bravo! Estou contente, vou vingar-me. ERNESTO (Enquanto os outros se dirigem à porta) – Três meses nesta terra! Meus três meses de férias do quinto ano, que eu contava fossem três dias de prazer! Vão ser três séculos de aborrecimento. JÚLIA (da porta) – Ernesto, venha. ERNESTO – Lá vou, prima! (Vai sair e encontra CUSTÓDIO que entra.)
CENA XIX
editarERNESTO, CUSTÓDIO
CUSTÓDIO (cumprimentando) – Como tem passado? Que há de novo? ERNESTO (ao ouvido) – Que não estou disposto a aturá-lo. (Sai.) (CUSTÓDIO fica pasmo no meio da cena; cai o pano.)