Versos da mocidade (Vicente de Carvalho, 1912)/Ardentias/Primavera

PRIMAVERA

Hoje, eu quiz escrutar o seio da floresta,
Sentir o coração da primavera arfar
Em cada arbusto em flor, em cada ninho em festa,
   No chão, nas frondes, no ar.

No céo completamente azul, rompêra o dia.
Que formoza manhã! Que alegre sol! A arajem
Era um perfume. O orvalho, em perolas, fuljia
   No tremor da folhagem.


Voluptuozamente enlaçavam-se, rindo,
Pelos troncos senis, trepadeiras em flor,
Dos troncos á velhice ezausta repartindo
   Uns bálsamos de amor;

E os troncos, ao calor daquela mocidade,
Da seiva que no tempo, inválida, se perde,
Riam-se, aqui, ali, na muda alacridade
   De uma folha mais verde.

Borboletas, roçando apenas, de aza incerta,
A florecencia rôxo-azul dos manacás,
Depunham de corola em corola entreaberta
   O seu beijo voraz.

Falavam-se de amor os passaros inquietos,
E palpitava em torno, em sussurrante adejo,
Nem eu sei si o rumor das azas dos insetos
   Ou si o rumor de um beijo.


«Amor! Amor!» — dizia a natureza toda
Como louca de luz, de seiva, de paixão.
O vento desflorava os laranjais em roda...
   E me lembrou então

Nosso noivado, ó tu cujo labio me espera,
O’ tu, formoza, ó tu, perfeita e bem querida,
Cujo beijo abrirá tambem a primavera
   No chão da minha vida!