Versos da mocidade (Vicente de Carvalho, 1912)/Relicário/Fragmento de uma carta
«Vivo aqui neste ermo agreste
Entre passaros e rozas
Beijando as letras graciozas
Da carta que me escreveste.
Quando é madrugada, saio
Pelos campos orvalhados
A encher os pulmões cançados
Com toda a seiva de Maio.
Manhãs de sol, de um sol de ouro,
Ceu muito azul, lindo, lindo;
Moutas em flor sacudindo
Aves que cantam em côro;
Aves que, de entre as ramadas,
Dão os bons dias á aurora
Com a alegria sonora
De canções que são rizadas.
Sinto o contájio suave
De tudo que me rodeia:
Minh’alma palpita, cheia
De vôos tremulos de ave.
Vim tão triste! E um sopro doce
De viração perfumada
Varre a neblina esgarçada
Dessas tristezas que eu trouce.
Volta-me o sangue... A alegria
Bróta em meu peito doente
Como um lirio surpreendente
Numa caveira sombria.
E espero poder em breve
— Sadio, intrepido e forte —
Minha ezistencia depôr-te
Nessas mãozinhas de neve»...