Viagens de Gulliver
ilustração de Thomas M. Balliet

“[Uma grande tempestade é descrita; um barco comprido é enviado para buscar água; o autor vai com ele e descobre o país. Ele é deixado na praia, é aprisionado por um dos nativos, e levado para uma casa de um lavrador. Sua recepção, bem como vários acidentes que aconteceram lá. Descrição dos habitantes.]”

Tendo sido condenado, por causa de minha natureza e sorte, a uma vida ativa e sem descanso, dois meses depois de meu retorno, eu deixei novamente meu país de origem, e embarquei para Dunas, no dia 20 de junho de 1702, a bordo do navio Aventura, comandado pelo Capitão John Nicholas, natural da Cornualha, com destino a Surat. Tivemos um vento altamente favorável, até que chegamos ao Cabo da Boa Esperança, onde desembarcamos para buscar água, mas tendo descoberto um vazamento, desembarcamos nossas bagagens e passamos alí o inverno, porque o capitão, tendo ficou doente por causa da malária, e não pudemos deixar o Cabo até o fim do mês de março.

Partimos então e fizemos uma boa viagem até atravessarmos o Estreito de Madagascar; mas tendo chegado na direção norte dessa ilha, e a cerca de cinco graus de latitude sul, os ventos, que nesses mares costumam soprar de modo constante entre o norte e o oeste, do começo de dezembro até o início de maio, no dia 19 de abril o vento começou a soprar com violência ainda maior, e mais em direção a oeste que de costume, continuando assim durante vinte dias ininterruptos: durante esse período, fomos arrastados para oeste das Ilhas Molucas; e a cerca de três graus em direção ao norte da linha (do equador), como descobriu o nosso capitão por uma observação feita no dia 2 de maio, em cujo período o vento parou, e tivemos uma calmaria absoluta, fato esse que me trouxe muita alegria. Ele, porém, sendo um homem bastante experiente em navegação por aqueles mares, ordenou para que nos preparássemos para uma tempestade, que realmente aconteceu no dia seguinte: pois o vento sul, chamado de monção meridional, começou a se formar.

Acreditando que uma borrasca era iminente, içamos nossa cevadeira[1], e pusemo-nos de pé para ferrar a vela de estai[2], porém, fazendo mau tempo, verificamos que os canhões estavam todos amarrados e ferramos a mezena[3][4]. O navio estava em pleno alto mar, e então achamos que o melhor seria seguir de vento em popa, do que ficar tentando e furar o casco. Fixamos a mezena e colocamos calços, e esticamos a vela de estia, o leme estava tão pesado quanto o vento. O barco resistia com bravura. Amarramos a mezena com corda, mas a vela se rasgou, e arriamos a verga, colocamos a vela dentro do barco, e desatamos todos as amarras que estavam presas à ela. Era uma tempestade terrível e o mar se agitava estranho e ameaçador.

Arrastamos as correias do chicote, e ajudamos o timoneiro[5]. Não conseguimos arriar o mastaréu[6], mas deixamos tudo como estava, porque o barco disparava em alta velocidade pelo mar, e sabíamos que o mastaréu quando içado, o navio se comportava melhor, e abria caminho pelo mar com maior facilidade, tendo constatado que no mar os espaços eram imensos. Quando a tempestade acabou, içamos a vela de estia e a vela principal, que davam estabilidade ao barco. Depois içamos a mezena, a vela de joanete[7] principal e a vela da gávea[8].

Viagens de Gulliver
ilustração de Thomas M. Balliet

A nossa direção era leste-nordeste, e o vento estava a sudoeste. Amarramos a estibordo e soltamos os cabos e braçadeiras do tempo, calçamos os braços do sotavento[9], e puxamos com força com as bolas do tempo, e apertando firmemente, e amarramos com cordas, e apertamos bastante a bolina da mezena em direção ao vento, e mantivemos o barco a todo pano e tão próximo quanto possível do vento.

Durante este temporal, o qual foi seguido por fortes ventos a oeste-sudoeste, éramos levados, segundo meus registros, para cerca de quinhentas léguas a oeste, de modo que o marujo mais antigo a bordo não poderia dizer em que parte do mundo nos encontrávamos. Nossas provisões eram suficientes, nosso barco era seguro, e a nossa tripulação estava bem de saúde, porém sofríamos com a mais terrível escassez de água. Achamos melhor manter o mesmo curso, ao invés de virar mais em direção ao norte, o que poderia ter nos trazido para o lado noroeste do Grande Tártaro e para os Mares Gelados.

No dia 16 de junho de 1703, um garoto que estava no mastaréu avistou terra. No dia 17, avistamos claramente uma grande ilha, ou continente (pois ainda não tínhamos certeza) em cujo flanco sul da ilha havia uma pequena península de terra avançando para o mar, e uma enseada demasiadamente baixa para aportar um navio com mais de cem toneladas. Lançamos âncora a uma légua dessa enseada, e nosso capitão enviou uma dúzia de seus homens bem armados em uma chalupa[10], com recipientes para trazer água, caso pudessem encontrar.

Pedi sua autorização para acompanhá-los, e pudesse ver o país, e fazer as descobertas que fosse possível. Quando desembarcamos, não vimos nenhum rio ou qualquer fonte, nem qualquer sinal de habitantes. Nossos homens, portanto, caminharam pela praia para descobrir água fresca perto do mar, e eu caminhei sozinho cerca de uma milha para o outro lado, onde observei que a região era totalmente árida e rochosa.

Comecei então a ficar cansado, e não encontrando nada para entreter a minha curiosidade, retornei suavemente em direção à enseada, e o mar todo diante de minha vista, quando vi que nossos homens entravam no veleiro, e remavam desesperadamente em direção ao barco. Ia gritar para eles, embora de nada adiantasse, quando observei uma criatura imensa caminhando em perseguição a eles no mar, tão rápido quanto podia: ele estava a uma profundidade não maior que os seus joelhos, e andava a passos largos: mas nossos homens estavam a meia légua de distância dele, e como o mar, naquela região, era repleto de rochas pontiagudas, o monstro não conseguiu virar o barco.

Isto me contaram depois, pois eu não ousara ficar para assistir o desenrolar dessa aventura, mas corrí o mais rápido que pude o caminho que antes havia tomado e depois subi um escarpado, que me oferecia uma perspectiva da região. Era uma região totalmente cultivada, mas o que mais me surpreendeu, foi a altura da relva, que naqueles terrenos pareciam servir de feno, e que atingiam seis metros de altura.

Caí numa estrada, pois assim me pareceu, embora fosse utilizada pelos habitantes somente como trilha que atravessa um campo de cevada. Caminhei durante algum tempo, mas pouco pude observar de ambos os lados, pois a colheita era próxima, e o milho chegava a atingir pelo menos doze metros de altura. Caminhei durante uma hora até chegar ao ponto extremo deste campo, que era protegido por uma cerca viva de pelo menos trinta e seis metros de altura, e as árvores eram tão imponentes que não consegui calcular a altura delas.

Havia uma subida para passar de um campo para outro. Tinha quatro degraus, e uma pedra que devia ser escalada quando você chegasse no ponto mais alto. Era impossível para mim escalar aqueles degraus, porque cada um deles tinha quase dois metros de altura, e a pedra no alto tinha seis metros de altura. Tentei encontrar alguma abertura no espinho, quando descobri um dos habitantes em um campo vizinho, avançando em direção à subida, do mesmo tamanho daquele que eu encontrara no mar em perseguição ao nosso barco. Ele parecia tão alto quanto um campanário de igreja, e cada passo dele era equivalente a distância de nove metros, segundo pude calcular.

Fui tomado por grande terror e assombro, e corri para me esconder no milharal, quando me deparei com ele no topo do degrau, olhando para o campo próximo à direita, e o ouvi chamar com uma voz muitas vezes mais alta do que uma trombeta falante: mas o barulho no ar era tão alto, que a princípio eu acreditei se tratasse de um trovão. Diante disso, sete monstros, parecidos com ele, partiram em direção a ele com foices em suas mãos, cada foice tinha a largura de seis gadanhas[11].

Estas pessoas não se vestiam tão bem como as primeiras, pois tinham a aparência de criados ou trabalhadores braçais; pois, depois de pronunciadas algumas palavras, foram colher milho no campo onde eu estava. Procurei manter deles a maior distância que conseguí, mas fui forçado a me mover com extrema dificuldade, pois os talos de milho tinham uma distância não maior que trinta centímetros, de modo que eu mal conseguia mexer meu corpo entre eles. Todavia, fiz movimento de seguir em frente, até que cheguei a uma parte do campo onde o milho fora deitado por causa da chuva e do vento.

Nesse ponto, foi impossível para mim continuar avançando, porque os talos de milho estavam tão entrelaçados, que mal podia rastejar, e as barbas das espigas derrubadas eram tão fortes e pontudas, que penetravam a minha carne através da roupa. Ao mesmo tempo, ouvia os colheitadores pouco menos de cem metros atrás de mim. Completamente desanimado dos esforços empreendidos, e totalmente tomado pela dor e pelo desespero, deitei-me entre dois sulcos, e sinceramente desejava que ali terminasse meus dias. Lamentei minha desolada viúva e meus filhos órfãos.

Deplorei a minha própria loucura e teimosia, ao empreender minha segunda viagem, contra os avisos de todos os meus amigos e parentes. Nesta terrível convulsão de pensamentos, não pude deixar de pensar em Lilipute, cujos habitantes haviam me considerado o maior prodígio que jamais aparecera no mundo, onde eu podia arrastar uma frota imperial apenas com uma mão, e de realizar outras ações mais, que ficarão registradas para sempre nas crônicas daquele império, embora a posteridade dificilmente irá acreditar nelas, ainda que confirmada por milhões.

Refletí que sofrimento seria provar para mim, parecer tão irrelevante para esta nação, como seria um único Liliputiano entre nós. Mas considerava isto o menor dos meus infortúnios, pois, as criaturas humanas são consideradas mais selvagens e cruéis em proporção ao seu tamanho, e o que poderia esperar eu além de ser um petisco na boca do primeiro desses enormes bárbaros, que conseguisse me capturar?

Indubitavelmente os filósofos tem razão, quando nos dizem que nada é grande ou pequeno exceto quando comparado. O destino deve ter-se regozijado, ao permitir que os habitantes de Lilipute encontrassem alguma nação, onde as pessoas fossem menores em relação a eles, como eles eram em relação a mim. Mas quem sabe se essa raça prodigiosa de mortais pudesse igualmente ser superada em alguma parte distante do mundo, cuja descoberta não fizemos ainda.

Assustado e confuso como estava, não conseguia deixar de mergulhar nessas reflexões, quando um dos colheitadores, aproximando-se a nove metros do sulco onde estava deitado, me fez compreender que no seu próximo passo eu seria esmagado até a morte sob seus pés, ou dividido em dois pela sua foice. E portanto, quando ele ia dar o segundo passo, eu gritei tão alto quanto o terror de que estava possuído: e foi então que a criatura deu um pequeno passo, e olhando ao redor e por debaixo dele durante algum tempo, e por fim me avistou deitado no solo.

Ficou me observando durante algum tempo, com a cautela de quem se esforça para deter um animal pequeno e perigoso de modo que este não consiga arranhá-lo ou mordê-lo, como fizera eu mesmo com uma doninha quando estava na Inglaterra. Lentamente aventurou-se a me pegar por trás, pela cintura, entre seu indicador e o polegar, e me levantou a quase três metros de seus olhos, para que pudesse examinar a minha figura mais detidamente.

Adivinhei a sua intenção, e minha boa sorte me ofereceu tanta presença de espírito, que eu resolvi oferecer a menor resistência pelo menos enquanto ele me segurasse no ar a dezoito metros de altura do chão, embora ele dolorosamente apertava os meus flancos, com medo que eu escapasse por entre seus dedos. Tudo que arrisquei foi levantar os meus olhos em direção ao sol, e juntar minhas mãos em posição de súplica, e dizer algumas palavras em um tom de humilde melancolia, adequada à condição em que me encontrava: pois a todo momento eu receava que ele pudesse me esmagar contra o solo, como geralmente fazemos com qualquer animal detestável, e que queremos destruir. Mas assim não quis a minha boa estrela, pois me pareceu que ele se encantara com a minha voz e com os meus movimentos, e começou a me olhar com curiosidade, ficando bastante maravilhado em me ouvir pronunciar palavras articuladas, embora não pudesse entendê-las.

Enquanto isso eu não conseguia deixar de gemer e de chorar, e girando minha cabeça para os lados, fiz com que ele percebesse, tanto quanto podia, a crueldade com que me machucava devido a pressão do seu polegar e do indicador. Ele pareceu entender a minha intenção, pois, levantando a dobra do seu casaco, ele me colocou suavemente em cima dela, e imediatamente correu levando-me consigo para o seu amo, que era um lavrador importante, e a mesma pessoa que havia encontrado pela primeira vez no campo.

O lavrador (segundo supus por causa do jeito deles de falar), tendo recebido algumas informações a meu respeito de tudo que sabia seu servidor, pegou um pequeno pedaço de palha, do tamanho aproximado de uma bengala, e com ela ergueu as abas do meu casaco, que parece que ele pensava que era alguma espécie de revestimento que a natureza havia me proporcionado. Soprou meus cabelos para o lado para examinar melhor o meu rosto.

Chamou os lavradores que estavam perto dele, e perguntou a eles, como soube mais tarde, se eles tinham visto nos campos algumas criaturinhas que se parecessem comigo. Depois ele me colocou suavemente no chão, de quatro, mas eu me levantei rapidamente, e caminhei lentamente para trás e para frente, para permitir que aquelas pessoas percebessem que eu não tinha nenhuma intenção de fugir. Todas elas se sentaram em círculo em torno de mim, para melhor observar meus movimentos.

Tirei o chapéu e me inclinei em direção ao lavrador. Ajoelhei-me e alcei minhas mãos e olhos, e proferi várias palavras tão alto quanto podia: Tirei uma bolsa de ouro da minha algibeira, e humildemente apresentei a eles. Ela a pegou na palma de sua mão, depois aproximou-a perto de seus olhos para ver o que era, e depois revirou-a várias vezes com a ponta de um alfinete (que ele retirou de sua manga) mas não conseguiu fazer nada com ele. Nisto, fiz-lhe um sinal para que ele colocasse sua mão no chão.

Peguei, então, a bolsa, e, abrindo-a, derramei todo o ouro na palma de sua mão. Tinha seis moedas espanholas de quatro pistolas cada uma, além de vinte ou trinta moedas menores. Vi quando ele molhou a ponta do seu dedinho com a língua, e pegou uma das moedas maiores, e depois outra, mas ele parecia desconhecer totalmente do que se tratava. Ele me fez sinal para colocá-las novamente dentro da minha bolsa, e a bolsa novamente dentro do meu bolso, que, depois de oferecê-la várias vezes a ele, achei que era o melhor a fazer.

O lavrador, nesse momento, convenceu-se de que eu deveria ser uma criatura racional. Ele falava frequentemente comigo, mas o som de suas palavras atravessavam os meus ouvidos como o som de um moinho, embora suas palavras fossem bem articuladas. Respondia tão alto quanto podia em vários idiomas, e ele muitas vezes colocava seus ouvidos a dois metros de mim: mas não adiantava nada, pois éramos ambos totalmente ininteligíveis uns ao outros.

Ele, então, mandou seus servidores para o trabalho, e tirando seu lenço do seu bolso, dobrou-o e estendeu-o em sua mão esquerda, que depositara no chão com a palma voltada para cima, e me fazendo sinal para que subisse nele, o que pude fazer com facilidade, pois sua mão não tinha pouco mais de trinta centímetros de espessura, com o restante do lenço ele envolveu-me até a cabeça para maior segurança, e desta maneira ele me levou para dentro de sua casa.

Lá, ele chamou a sua esposa, e me mostrou a ela, mas ela gritou e se afastou, como fazem as mulheres na Inglaterra quando veem um sapo ou uma aranha. Entretanto, depois de certo tempo, examinando o meu comportamento, e que eu obedecia aos sinais que o seu marido fazia, ela logo reconsiderou, e pouco a pouco ficou extremamente carinhosa comigo.

Estava perto do meio dia, e um criado trouxe o jantar. Tratava-se apenas de um prato de comida considerável (adequado para a evidente condição de um lavrador), que tinha mais de sete metros de diâmetro. As companhias eram, o lavrador e sua esposa, três filhos, e uma velhinha que era a avó. Quando se sentaram, o lavrador me colocou a uma certa distância dele sobre a mesa, que tinha nove metros de altura a partir do chão. Eu estava terrivelmente assustado, e me mantive tão afastado quanto possível da extremidade, com medo de cair.

A esposa cortou um pedaço de carne, depois esmigalhou um pouco de pão numa tábua de cortar pão, e a colocou diante de mim. Fiz-lhe uma reverência muito humilde, retirei a minha faca e o meu garfo, e comecei a comer, o que deu a eles extrema satisfação. A dona da casa mandou a criada buscar um pequeno cálice, com capacidade para nove litros, e encheu-o com bebida; eu peguei o recipiente com muita dificuldade com as duas mãos, e de maneira mais respeitosa bebi à saúde dela, expressando as palavras tão alto quanto podia em inglês, o que fez com que os presentes dessem tanta gargalhada, que quase fiquei surdo com o barulho.

Este licor tinha um pouco do sabor de cidra, e não era desagradável. Então, o amo fez-me um sinal para que viesse perto da sua tábua de pão, mas a medida que eu caminhava sobre a mesa, estando surpreso o tempo todo, como o leitor indulgente irá facilmente perceber e perdoar, eu, de repente, tropecei numa casca de pão, e caí de cara no chão, mas não me ferí. Levantei-me rapidamente e observando que aquelas pessoas boas ficaram preocupadas, peguei meu chapéu (o qual eu segurava debaixo dos meus braços por educação) e agitando-o acima de minha cabeça, soltei três vivas para mostrar que eu não havia me machucado por causa da queda.

Mas, avançando em direção ao meu amo (como daqui em diante passarei a chamá-lo), seu filho mais jovem, que estava sentado perto dele, um pequeno arqueiro, com cerca de dez anos, pegou-me pelas pernas, e me manteve tão alto no ar, que eu tremia todo: mas seu pai tomou-me dele, e ao mesmo tempo lhe aplicou tamanho tapa no ouvido esquerdo, que teria derrubado ao chão uma tropa de cavalaria europeia, ordenando-lhe que se retirasse da mesa.

Mas receoso que o garoto ficasse zangado comigo, e me lembrando perfeitamente como são naturalmente maldosos os garotos entre nós em relação a papagaios, coelhos, filhotes de gatos e cães de estimação, me ajoelhei, e apontando para o garoto, fiz com que meu amo entendesse, tão bem quanto pude, que eu desejava que seu filho fosse perdoado. O pai concordou, e o garoto retomou novamente o seu lugar, e nesse momento me dirigi a ele, e beijei a sua mão, que meu amo pegou, e fez com que o garoto tocasse nela suavemente.

No meio do jantar, o gato favorito da minha ama saltou para o colo dela. Ouvi um barulho atrás de mim semelhante ao de uma dúzia de fabricantes de meias trabalhando; e virando a minha cabeça, percebi que vinha do ronronar daquele animal, que parecia ser três vezes maior do que um boi, pelo que pude avaliar ao examinar-lhe a cabeça e uma de suas patas, enquanto a sua ama o alimentava e o acariciava. A ferocidade da fisionomia desta criatura me desconcertou completamente; embora eu me mantivesse na extremidade mais distante da mesa, mais de quinze metros de distância, e embora a minha ama o segurasse com firmeza, com medo que ele pudesse saltar, e prender-me em suas garras.

Mas por sorte não aconteceu nada, porque o gato nem sequer notou a minha presença quando o meu amo me colocou à distância de três metros dele. Como sempre me disseram, e eu descobri ser verdadeiro pelas experiências em minhas viagens, que fugir ou mostrar medo diante de um animal feroz, é a maneira segura de fazer com que ele o persiga ou o ataque, de modo que decidi ostrar nenhum gesto de preocupação, nesta situação de perigo.

Caminhei com desenvoltura cinco ou seis vezes diante da própria cabeça do gato, e me aproximei a meio metro dele, e com isso ele se afastou, como se estivesse mais assustado comigo: Tive menos preocupação com relação aos cães, quando três ou quatro entraram na sala, como é comum nas casas dos lavradores, um dos quais era um mastim, equivalente em tamanho a quatro elefantes, e o outro um cachorro galgo, um pouco mais alto do que o mastim, mas não tão grande.

Quando o jantar estava quase pronto, a babá entrou com uma criança de um ano em seus braços, que me percebeu imediatamente, e começou a berrar de tal modo que se poderia escutar da ponte de Londres até o Chelsea, depois da oratória habitual das crianças, para me usar como brinquedo. A mãe, cheia de amorosa indulgência, me levantou e me colocou nas mãos da criança, que logo me pegou pela cintura, e colocou a minha cabeça dentro de sua boca, onde eu gritei tão alto que o diabrete se assustou, e me derrubou, e eu teria realmente quebrado o meu pescoço se a mãe na tivesse me amparado com o avental.

A babá, para acalmar o bebê, deu-lhe um chocalho, que era uma espécie de recipiente furado cheio de pedras grandes, e amarrado por um cabo à cintura do garoto: mas nada disso adiantou, de modo que ela foi obrigada a recorrer ao último recurso que era dar-lhe de mamar. Devo confessar que nada me causou tanto nojo do que ver o seu peito enorme, o qual não tenho nada para comparar, de maneira a oferecer ao curioso leitor uma ideia do seu tamanho, formato e cor.

Ele tinha quase dois metros de grossura, e não poderia ter menos que cinco metros de circunferência. O bico do peito era a metade do tamanho da minha cabeça, e a tez tanto do bico como da teta, era tão variada com manchas, espinhas e sardas, que nada poderia ser tão nojento: como eu tinha uma visão próxima dela, ela estava sentada, mais confortavelmente possível para dar de mamar, e eu de pé em cima da mesa. Isso me fez refletir sobre a pele belíssima de nossas damas inglesas, que se parecem tão lindas para nós, apenas porque são do nosso tamanho, e seus defeitos não podem ser vistos exceto com o auxílio de uma lupa; onde descobrimos através de experimentos que as peles mais lisas e mais brancas se parecem irregulares, grosseiras e de cor feia.

Lembro-me quando estava em Lilipute, o aspecto daquelas pessoas pequeninas me parecia o mais belo do mundo, e falando sobre este assunto com uma pessoa esclarecida daquele lugar, que foi um amigo íntimo meu, ele disse que o meu rosto parecia muito mais belo e liso quando ele me olhava do chão, do que diante de uma perspectiva mais aproximada, quando eu o pegava em minha mão, e o aproximava de mim, o que ele me confessou ter sido à primeira vista um grande choque.

Ele disse “que conseguia ver grandes buracos em minha pele, que os fios da minha barba eram dez vezes mais fortes do que as cerdas de um javalí, e o meu aspecto que apresentava diversas cores era extremamente desagradável.” embora deva pedir permissão para falar a respeito de mim mesmo, que sou tão bonito como a maioria do sexo masculino que vive em meu país, e um pouco bronzeado por causa de todas as minhas viagens. Por outro lado, falando sobre as damas na corte daquele imperador, ele costumava me dizer, “que uma tinha sardas, a outra uma boca muito larga, e uma terceira um nariz grande demais;” nada do disso eu conseguia perceber.

Confesso que estas reflexões foram óbvias demais, as quais, todavia, não poderia deixar de apresentar, exceto se o leitor pudesse pensar que aquelas enormes criaturas eram na verdade deformadas: pois justiça seja feita a elas quando digo que são uma raça de pessoas graciosas, e particularmente os detalhes do rosto do meu amo, embora fosse apenas um lavrador, quando eu o examinei da altura de dezoito metros, me pareceu muito bem proporcionado.

Quando o jantar ficou pronto, meu amo saiu em direção aos outros trabalhadores, e, segundo pude perceber pela voz e pelos seus gestos, ele deu à sua esposa a severa incumbência de cuidar de mim. Eu estava muito cansado, e com vontade de dormir, o que a minha ama percebeu, e me colocou em sua cama, e me cobriu com um lenço branco e limpo, porém mais largo e grosseiro do que a vela principal de um navio de guerra.

...e saquei do meu cutelo para me defender.
ilustração de Thomas M. Balliet

Dormi por volta de duas horas, e sonhei que estava em casa com minha esposa e meus filhos, fato esse que aumentou a minha aflição quando acordei, e me vi só, num quarto enorme, que tinha entre sessenta e noventa metros de largura, e sessenta de altura, deitado numa cama com vinte metros de largura. A minha ama saíra para cuidar das tarefas domésticas, e havia me trancado por dentro.

A cama tinha oito metros de altura a partir do chão. Algumas necessidades naturais exigiam que eu descesse; não ousei supor que devesse chamar, e se tivesse, teria sido em vão, com uma voz como a minha, a uma distância tão grande do quarto onde estava até a cozinha onde a família ficava. Estando nessa situação, dois ratos treparam nas cortinas e corriam farejando por todos os lados em cima da cama. Um deles se aproximou do meu rosto, o que me fez levantar assustado, e saquei do meu cutelo para me defender.

Estes animais horríveis tiveram a ousadia de me atacar de ambos os lados, e um deles colocou suas patas dianteiras no meu pescoço, mas eu tive a sorte de furar a sua barriga de um deles antes que ele pudesse me causar qualquer dano. Ele caiu aos meus pés, e o outro, vendo o destino do seu companheiro, fugiu, mas não sem um sério ferimento nas costas, que lhe apliquei quando ele fugiu, e fez com que o sangue escorresse dele.

Depois dessa façanha, caminhei suavemente de um lado e do outro na cama, para recuperar o meu fôlego e o meu bom humor. Estas criaturas tinham o tamanho de um cão mastim grande, mas infinitamente mais ágeis e ferozes, de modo que se eu tivesse tirado o meu cinto antes de ir dormir, sem dúvida eu teria sido reduzido a pedaços e devorado. Eu medi o rabo do rato morto, o qual ainda estava sangrando, e observei que ele ainda vivia, mas com um grande ferimento em torno do pescoço. Matei-o imediatamente.

Logo depois que a minha ama entrou no quarto, e me vendo todo ensanguentado, correu e me pegou na mão. Apontei para o rato que havia matado, sorrindo, e fazendo outros sinais para mostrar a ela que eu não havia me ferido, o que a deixou extremamente feliz, chamando a camareira para que pegasse o rato morto com uma pinça, e o atirasse pela janela. Depois ela me colocou em cima da mesa, onde mostrei a ela o meu cutelo todo cheio de sangue, e limpando-o na aba do meu casaco, o devolvi à bainha.

Eu estava pressionado a fazer mais uma coisa que outra pessoa não poderia fazer por mim, e portanto, esforçava-me para fazer com que minha ama entendesse, que eu desejava ser colocado no chão, o que ela obedeceu, não permitindo a minha timidez que continuasse a me expressar, a não ser apontando para a porta, e me inclinando várias vezes. A boa mulher, com muita dificuldade, percebeu finalmente minhas intenções, e me pegando novamente em sua mão, caminhou em direção ao jardim, onde me soltou. Caminhei em direção a um lado cerca de cem metros, e acenando para ela não olhar ou não me seguir, e me ocultei entre duas folhas de azedas e aí descarreguei as necessidades da natureza.

Espero que o gentil leitor me desculpe por mencionar estes e outros detalhes, os quais, contudo, possam parecer insignificantes às pessoas vulgares e de baixo nível, contudo, certamente serão úteis para um filósofo expandir seus pensamentos e imaginação, e usá-las em benefício da vida pública e também privada, o qual foi meu único propósito ao apresentar estes e outros relatos de minhas viagens ao redor do mundo, sendo nesse particular um profundo estudioso da verdade, sem acrescentar nenhum adorno de erudição ou de estilo.

Porém, todo o cenário desta viagem criou uma impressão tão forte em meu íntimo, e está tão profundamente arraigada em minha memória, que, ao passá-la para o papel, não omiti nenhuma circunstância material: todavia, diante de uma rigorosa revisão, eu deixarei de relatar diversos acontecimentos de somenos importância que haviam na cópia original, com medo de ser censurado como tedioso e de coisa sem interesse, de que frequentemente são acusados os viajantes, talvez não indevidamente.

Notas do Tradutor

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Todas as notas de rodapé foram extraídas do

  • Pequeno Dicionário da Língua Portuguesa, Companhia Editora Nacional, 11ª Edição, Aurélio Buarque de Hollanda Ferreira.


  1. Cevadeira: pequena vela suspensa de uma verga.
  2. Estai: cada um dos cabos que, fixos na proa seguram a mastreação.
  3. Mezena: vela que se enverga na carangueja do mastro de ré.
  4. Carangueja: verga da vela grande, latina ou de mezena.
  5. Timoneiro: aquele que governa o timão das embarcações.
  6. Mastaréu: pequeno mastro suplementar.
  7. Joanete: vela superior à gávea.
  8. Gávea: espécie de tabuleiro ou plataforma, a certa altura de um mastro e atravessada por ele, vela imediatamente superior à grande.
  9. Sotavento: borda do navio oposta à direçãode onde sopra o vento.
  10. Chalupa: pequena embarcação de um só mastro para cabotagem; barco de vela e remos.
  11. Gadanha: foice de cabo comprido para cortar mato.
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