Qu' il est glorieux d'ouvrir une nouvelle carrière, et de paraitre
tout-à-coup dans le monde savant un livre de découvertes à la main,
comme une cométe inattendue étincelle dans l'espace!
X. DE MAISTRE.
Que viaje à roda do seu quarto quem está à beira dos Alpes,[1] de inverno, em Turim, que é quase tão frio como S. Petersburgo — entende-se. Mas com este clima, com esse ar que Deus nos deu, onde a laranjeira cresce na horta, e o mato é de murta, o próprio Xavier de Maistre, que aqui escrevesse, ao menos ia até o quintal.
Eu muitas vezes, nestas sufocadas noites de estio, viajo até a minha janela para ver uma nesguita de Tejo que está no fim da rua, e me enganar com uns verdes de árvores que ali vegetam sua laboriosa infância nos entulhos do Cais do Sodré. E nunca escrevi estas minhas viagens nem as suas impressões pois tinham muito que ver! Foi sempre ambiciosa a minha pena: pobre e soberba, quer assunto mais largo. Pois hei de dar-lho. Vou nada menos que a Santarém: e protesto que de quanto vir e ouvir, de quanto eu pensar e sentir se há de fazer crônica.
Era uma idéia vaga; mais desejo que tenção, que eu tinha há muito de ir conhecer as ricas várzeas desse Ribatejo,[2] e saudar em seu alto cume a mais histórica e monumental das nossas vilas.[3] Abalam-me as instâncias de um amigo,[4] decidem-me as tonteiras de um jornal, que por mexeriquice quis encabeçar em desígnio político determinado a minha visita.[5]
Pois por isso mesmo vou: pronunciei-me.
São 17 deste mês de julho, ano da graça de 1843, uma segunda-feira, dia sem nota e de boa estréia. Seis horas da manhã a dar em S. Paulo, e eu a caminhar para o Terreiro do Paço.[6] Chego muito a horas, envergonhei os mais madrugadores dos meus companheiros de viagem, que todos se prezam de mais matutinos homens que eu. Já vou quase no fim da praça quando oiço o rodar grave mas pressuroso de uma carroça d'ancien régime[7]: é o nosso chefe e comandante, o capitão da empresa, o Sr. C. da T.[8] que chega em estado.
Também são chegados os outros companheiros; o sino dá o último rebate. Partimos.
Numa regata[9] de vapores o nosso barco não ganhava decerto o prêmio. E se, no andar do progresso, se chegarem a instituir alguns ístmicos ou olímpicos[10] para esse gênero de carreiras — e se para elas houver algum Píndaro ansioso de correr, em estrofes e antiestrofes, atrás do vencedor que vai coroar de seus hinos imortais — não cabe nem um triste minguado epodo[11] a este cansado corredor de Vila Nova.[12] É um barco sério e sisudo que se não mete nessas andanças.
Assim vamos de todo o nosso vagar contemplando este majestoso e pitoresco anfiteatro de Lisboa oriental, que é, vista de fora, a mais bela e grandiosa parte da cidade, a mais característica, e onde, aqui e ali, algumas raras feições se percebem, ou mais exatamente se adivinham, da nossa velha e boa Lisboa das crônicas. Da Fundição para baixo tudo é prosaico e burguês, chato, vulgar e sensabor com um período da Dedução Cronológica,[13] aqui e ali assoprado numa tentativa ao grandioso do mau gosto, como alguma oitava menos rasteira do Oriente.[14]
Assim o povo, que tem sempre o melhor gosto e mais puro que essa escuma descorada que anda ao de cima das populações, e que se chama a si mesma por excelência a Sociedade, os seus passeios favoritos são a Madre de Deus e o Beato e Xabregas e Marvila e as hortas de Chelas. A um lado a imensa majestade do Tejo em sua maior extensão e poder, que ali mais parece um pequeno mar mediterrâneo; do outro a frescura das hortas e a sombra das árvores, palácios, mosteiros, sítios consagrados a recordações grandes ou queridas. Que outra saída tem Lisboa que se compare em beleza com esta? Tirado Belém, nenhuma. E ainda assim, Belém é mais árido.
Já saudamos Alhandra, a toireira;[15] Vila Franca,[16] a que foi de Xira, e depois da restauração, e depois outra vez de Xira, quando a tal restauração caiu,[17] como a todas as restaurações sempre sucede e há de suceder, em ódio e execração tal que nem uma pobre vila a quis para sobrenome.
A questão não era de restaurar nem de não restaurar, mas de se livrar a gente de um governo de patuscos, que é o mais odioso e engulhoso dos governos possíveis.
É a reflexão com que um dos nossos companheiros de viagem acudiu ao princípio de ponderação que ia involuntariamente fazendo a respeito de Vila Franca.
Mas eu não tenho ódio nenhum a Vila Franca, nem a esse famoso círio que lá foi fazer a monarquia. Era uma coisa que estava na ordem das coisas, e que por força havia de suceder. Este necessário e inevitável reviramento por que vai passando o mundo, há de levar muito tempo, há de ser contrastado por muita reação antes de completar-se...
No entretanto, vamos acender os nossos charutos, e deixe-mos os precintos aristocráticos da ré; à proa, que é país de cigarro livre.
Não me lembra que Lorde Byron celebrasse nunca o prazer de fumar a bordo. É notável o esquecimento no poeta mais embarcadiço, mais marujo que ainda houve, e que até cantou o enjôo, a mais prosaica e nauseante das misérias da vida! Pois num dia destes, sentir na face e nos cabelos a brisa refrigerante que passou por cima da água enquanto se aspiram molemente as narcóticas exalações de um bom cigarro de Havana, é uma das poucas coisas sinceramente boas que há no mundo.
Fumemos!
Aqui está um campino fumando gravemente o seu cigarro de papel, que me vai emprestar lume.
— Dou-lho eu, senhor... — acode cortesmente outra figura mui diversa, cujas feições, trajo e modos singularmente contrastam com os do moçarabe ribatejano.
Acenderam-se os charutos, e atentamos mais devagar na companhia que estávamos.
Era um efeito notável e interessante o grupo a que nos tínhamos chegado, e destacava pitorescamente do resto dos passageiros, mistura híbrida de trajos e feições descaracterizadas e vulgares — que abunda nos arredores de uma grande cidade marítima e comercial. Não assim este grupo mais separado com que fomos topar. Constava ele de uns doze homens, cinco eram desses famosos atletas da Alhandra, que vão todos os domingos colher o pulverem olympicum[18] na praça de Santana, e que, à voz soberana e irresistível de: à unha, à unha, à cernelha!... correm a arcar com mais generosos, não mais possantes, animais que eles, ao som das imensas palmas, e a troco dos raros pintos[19] por que se manifesta o sempre clamoroso e sempre vazio entusiasmo das multidões.[20] Voltavam à sua terra os meus cinco lutadores ainda em trajo de praça, ainda esmurrados e cheios de glória da contenda da véspera. Mas ao pé destes cinco e de altercação com eles — já direi por quê — estavam seis ou sete homens que em tudo pareciam seus antípodas.
Em vez do calção amarelo e da jaqueta de ramagens que caracterizavam o homem do forcado,[21] estes vestiam o amplo saiote grego dos varinos,[22]e o tabardo arrequifado siciliano de pano de varas.[23]O campino,[24] assim como o saloio, tem o cunho da raça africana; estes são da família pelasga: feições regulares e móveis, a forma ágil.
Ora os homens do Norte estavam disputando com os homens do Sul: a questão fora interrompida com a nossa chegada à proa do barco. Mas um dos ílhavos[25] — bela e poética figura de homem — voltando-se para nós, disse naquele seu tom acentuado.
- — Ora aqui está quem há de decidir: vejam os senhores. Eles, por agarrar um toiro, cuidam que são mais que ninguém, que não há quem lhes chegue. E os senhores, a serem cá de Lisboa, hão de dizer que sim. Mas nós...
- — Nenhum de nós é de Lisboa: só este senhor que aqui vem agora.
Era o C. da T. que chegava.
- — Este conheço eu; este é dos nossos (bradou um homem de forcado, assim que o viu). Isto é um fidalgo como se quer. Nunca o vi numa ferra, isso é verdade; mas aqui de Valada[26] a Almerim[27] ninguém corre mais do que ele por sol e chuva, e há de saber o que é um boi de lei, e o que é lidar com gado.
- — Pois oiçamos lá a questão.
- — Não é questão — tornou o ílhavo — mas se este senhor fidalgo anda por Almeirim, para Almeirim vamos nós, que era uma charneca outro dia, e hoje é um jardim, benza-o Deus! mas não foram os campinos que o fizeram, foi a nossa gente que o sachou e plantou, e o fez o que é, e fez terra das areias da charneca.
- — Lá isso é verdade.
- — Não, não é! Que está forte habilidade fazer dar trigo aos nateiros do Tejo, que é como quem semeia em manteiga. É uma lavoura que a faz Deus por sua mão, regar e adubar e tudo: e o que Deus não faz, não fazem eles, que nem sabem ter mão nesses mouchões com o plantio das árvores: só lá por cima é que algumas têm metido, e é bem pouco para o rio que é, e as ricas terras que lhes levam as enchentes. Mas nos , pé no barco, pé na terra, tão depressa estamos a sachar o milho na charneca, como vimos por aí abaixo com a vara no peito, e o saveiro a pegar na areia por não haver água... mas sempre labutando pela vida...
- — A força é que se fala — tornou o campino para estabelecer a questão em terreno que lhe convinha. — A força é que se fala: um homem do campo que se deita ali à cernelha de um toiro que uma companhia inteira de varinos lhe não pegava, com perdão dos senhores, pelo rabo!...
E reforçou o argumento com uma gargalhada triunfante. que achou eco nos interessados circunstantes que já se tinham apinhado a ouvir os debates.
Os ílhavos ficaram um tanto abatidos; sem perderem a consciência de sua superioridade, mas acanhados pela algazarra.
Parecia a esquerda de um parlamento quando vê sumir-se no burburinho acintoso das turbas ministeriais, as melhores frases e as mais fortes razões dos seus oradores.
Mas o orador ílhavo não era homem de se dar assim por derrotado. Olhou para os seus, como quem os consultava e animava, com um gesto expressivo, e voltando-se a nós, com a direita estendida aos seus antagonistas:
- — Então agora como é e força, quero eu saber, e estes senhores que digam, qual é que tem mais força, se é um toiro ou se é o mar.
- — Essa agora!...
- — Queríamos saber.
- — É o mar.
- — Pois nós que brigamos com o mar, oito a dez dias a fio numa tormenta, de Aveiro a Lisboa, e estes que brigam uma tarde com um toiro, qual é o que tem mais força?
Os campinos ficaram cabisbaixos; o público imparcial aplaudiu por esta vez a oposição, e o Vouga triunfou do Tejo.
Notas
editar- ↑ É visível alusão ao popular e inimitável opúsculo de Xavier de Maistre, Voyage autour de ma chambre, que decerto foi principiado a escrever em Turim, e que muitos supõem que fosse concluído em São Petersburgo. [N.A]
- ↑ Antiga região de Portugal de dimensões irregulares às margens do Tejo entre Lisboa e Abrantes que não corresponde exatamente a extinta província do Ribatejo, criada em 1936.
- ↑ Santarém só recebeu o estatuto de cidade em 1868.
- ↑ Segundo a edição de Augusto da Costa Dias, este amigo foi Manuel da Silva Passos (1801-1862).
- ↑ É puramente histórico isto; e também é verdade que em grande parte daqui se originou a perseguição brutal que sofreu o A. dali a poucos meses. [N. A]
- ↑ Atual Praça do Comércio em Lisboa.
- ↑ Ou seja, do Antigo Regime. A expressão era usada para indicar coisas velhas.
- ↑ Segundo a edição de Augusto da Costa Dias, C. da T. é Gastão da Câmara Coutinho, Conde de Taipa.
- ↑ Regata chamavam, e não sei se chamam ainda, em Veneza, às carreiras de barcos apostados ao desafio A palavra e a coisa introduziu-se em Inglaterra, onde é moda e popularíssima. [N. A]
- ↑ Os jogos Ístimicos e Olímpicos respectivamente.
- ↑ Epodo é um tipo de poema formado de estrofes e antiestrofes. Por esse nome denomina-se também a terceira estrofe da ode pindárica.
- ↑ Vila Nova da Rainha na freguesia de Azambuja e à qual o autor se referirá novamente no capítulo seguinte.
- ↑ A Dedução Cronológica e Analítica, livro contrário aos jesuítas atribuído ao Marquês de Pombal.
- ↑ Poema épico de José Agostinho de Macedo (1761-1831).
- ↑ Alhandra, freguesia de Vila Franca de Xira.
- ↑ Vila Franca de Xira, cidade no distrito de Lisboa.
- ↑ O autor refere-se aqui ao movimento contrário a Revolução liberal do Porto que teve início em Vila Franca de Xira em 27 de maio de 1823, sendo chamado de Vilafrancada. Durante a tentativa de contra-revolução a cidade recebeu o nome de Vila Franca da Restauração e após o malogro do processo teve seu antigo nome de volta.
- ↑ O pó olímpico, as glórias.
- ↑ Nome popular do cruzado novo, antiga moeda de Portugal.
- ↑ Nesta passagem, o autor refere-se às touradas.
- ↑ O forcado é o grupo de homens que, em uma tourada, pega o touro.
- ↑ Varinos são aqueles de Ovar, cidade do distrito de Aveiro.
- ↑ Casaco de mangas compridas e capuz a que o autor atribui origem na Sicília.
- ↑ Campinos ou bordas-d'água são os habitantes das margens do Tejo em Alhandra, sul de Portugal.
- ↑ Ílhavos são os naturais de Ílhavo, cidade do distrito de Aveiro, norte de Portugal.
- ↑ Valada, freguesia do conselho do Cartaxo.
- ↑ Almeirim, cidade do distrito de Santarém