Viagens na Minha Terra (grafia de 1943)/IX
Vivia aqui há coisa de cinqüenta para sessenta anos, nesta boa terra de Portugal, um figurão esquisitíssimo que tinha inquestionavelmente o instinto de descobrir assuntos dramáticos nacionais — ainda, às vezes, a arte de desenhar bem o seu quadro, de lhe agrupar, não sem mérito, as figuras: mas ao pô-las em ação, ao colori-las ao fazê-las falar... boas noites! era sensaboria irremediável.
Deixou uma coleção imensa de peças de teatro que ninguém conhece, ou quase ninguém, e que nenhuma sofreria, talvez, representação; mas rara é a que não poderia ser arranjada e apropriada à cena.
Que mina tão rica e fértil para qualquer mediano talento dramático. Que belezas e portuguesas coisas se não podem extrair dos treze volumes — são treze volumes e grandes! — do teatro de Ênio Manuel de Figueiredo! Algumas dessas peças, com bem pouco trabalho, com um diálogo mais vivo, um estilo mais animado, fariam comédias excelentes.
Estão-me a lembrar estas.
O Casamento da Cadeia — ou talvez se chame outra coisa, mas o assunto é este: comédia cujos caracteres são habilmente esboçados, funda-se naquela nossa antiga lei que fazia casar na prisão os que assim se supunha poderem reparar certos danos de reputação feminina.
O Fidalgo de sua casa, sátira mui graciosa de um tão comum vínculo nosso.
As duas educações, belo quadro de costumes: são dois rapazes, ambos estrangeiramente educados, um francês, outro inglês, nenhum português. É eminentemente cômico, frisante, ou, segundo agora se diz à moda, "palpitante de atualidade".
O Cioso, comédia já remoçada da antiga comédia de Ferreira e que em si tem os germes da mais rica e original composição.
O Avaro dissipador, cujo s[ó título mostra o engenho e invenção de quem tal assunto concebeu: assunto ainda não tratado por nenhum de tantos escritores dramáticos de nação alguma, e que é todavia um vulgar ridículo, todos os dias encontrado no mundo.
São muitas mais, não fica nestas as composições do fertilíssimo escritor que, passadas pelo crivo de melhor gosto, e animadas sobretudo no estilo, fariam um razoável repertório para acudir à mingua dos nossos teatros.
Um dos mais sensabores porém, a que vulgarmente se haverá talvez pela mais sensabor, mas que a mim mais me diverte pela ingenuidade familiar e simpática de seu tom magoado e melancolicamente chocho, é a que tem por título Poeta em anos de prosa.
E foi por esta, foi por amor desta que eu me deixei cair na digressão dramático-literária do princípio deste capítulo; pegou-se-me à pena porque se me tinha pregado na cabeça; e ou o capítulo não saía, ou ela havia de sair primeiro.
Poeta em anos de prosa! Ó Figueiredo, Figueiredo, que grande homem não foste tu, pois imaginaste esse título que só ele em si é um volume! Há livros, e conheço muitos, que não deviam ter título, nem o título é nada neles.
Faz favor de me dizer o de que servem o que significa o Judeu errante posto no frontispício desse interminável e mercatório romance que aí anda pelo mundo, mais errante, mais sem fim, mais imorredoiro que o seu protótipo?
E há títulos também que não deviam ter livro, porque nenhum livro é possível escrever que os desempenhe como eles merecem.
Poeta em anos de prosa é um desses.
Eu não leio nenhuma das raras coisas que hoje se escrevem verdadeiramente belas , isto é, simples, verdadeiras, e por conseqüência sublimes, que não exclame com sincero pesadume cá de dentro: Poeta em anos de prosa!
Pois este é o século para poetas? Ou temos nós poetas para este século?...
Temos sim, eu conheço três: Bonaparte, Sílvio Pélico e o Barão de Rotschild.
O primeiro fez a sua Ilíada com a espada, o segundo coma paciência, o último com o dinheiro.
São os três agentes, as três entidades, as três divindades da época.
Ou[1] cortar com Bonaparte, ou comprar com Rotschild, ou sofrer e ter paciência com Sílvio Pélico.
Tudo o que fizer doutra poesia — e doutra prosa também — é tolo...
Vieram-me estas mui judiciosas reflexões a propósito do capítulo antecedente desta minha obra-prima; e lancei-as aqui para instrução e edificação do leitor benévolo. Acabei com elas quando chegamos à ponte da Asseca.
Esquecia-me de dizer que daqueles três grandes poetas só um está traduzido em português — o Rotschild não é literal a tradução, agalegou-se e ficou muito suja de erros de imprensa, mas como não há outra...
Ora donde veio esse nome de Asseca? Algures daqui perto deve de haver sítio, lugar ou coisa que o valha, com o nome de Meca; e daí talvez o admirável rifão português que ainda não foi bem examinado como devia ser, e que decerto encerra algum grande ditame de moral primitiva: andou por Seca (Asseca?) e Meca e Olivais de Santarém, Os tais Olivais ficam logo adiante. É uma etimologia como qualquer outra.
A ponte da Asseca corta uma várzea imensa que há de ser um vasto paul de inverno: ainda agora está a dessangrar-se em água por toda a parte.
É notável na história moderna este sítio. Aqui num recontro com os nossos foi Junot gravemente ferido na cara. Il ne sera plus beau garçon, disse o parlamentário francês que veio depois da ação, tratar, creio eu, de troca de prisioneiros ou de coisa semelhante. Mas enganou-se o parlamentário; Junot ainda ficou muito guapo e gentil-homem depois disso.
Tenho pena de nunca ter visto o Junot nem o Maneta, as duas primeiras notabilidades que ouvi aclamar com tais e cujos nomes conheci... Engano-me; conheci primeiro o nome de Bonaparte. E lembra-me muito bem que nunca me persuadi que ele fosse o monstro disforme e horroroso que nos pintavam frades e velhas naquele tempo. Imaginei sempre que, para excitar tantos ódios e malquerenças, era necessário que fosse um bem grande homem.
Desde pequeno que fui jacobino, já se vê: e de pequeno me custou caro. Levei bons puxões de orelhas de meu pai por comprar na feira de S. Lázaro, no Porto, em vez de gaitinhas ou de registos de santos ou das outras bugigangas que os mais rapazes compravam... não imaginam o quê... um retrato de Bonaparte.
Foi enguiço, diria uma senhora do meu conhecimento que acreditou neles, foi enguiço que ainda não se desfez e que toda a vida me tem perseguido.
Quem me diria quando, por esse primeiro pecado político da minha infância, por esse primeiro tratamento duro e — perdoe-me a respeitada memória de meu santo pais! — injustíssimo, que me trouxe o mero instinto das idéias liberais, que me diria que eu havia de ser perseguido por elas toda a vida! que apenas saído da puberdade havia de ir a essa mesma França, à pátria dessas idéias com que a minha natureza simpatizava sem saber por quê, buscar asilo e guarida?
Não vi já quase nenhum daqueles que tanto desejara conhecer; as ruínas do grande Império estavam dispersas; os seus generais mortos, desterrados, ou trajavam interesseiros e cobardes as librés do vencedor...
De todas as grandes figuras dessa época, a que melhor conheci e tratei foi uma senhora, tipo de graça, de amabilidade e de talento. Pouco foi o nosso trato, mas quanto bastou para me encantar, para me formar no espírito um modelo de valor e merecimento feminino que veio a me fazer muito mal.
Custa depois a encher aquela altura a que se marcou...
Eis aqui como eu fiz esse conhecimento.
Inda o estou vendo, coitado! o pobre do C. do S., nobre, espirituoso, cavalheiro, fazendo-se perdoar todos os seus prejuízos de casta, que tinha como ninguém, por aquela polidez superior e afabilidade elegante que distingue o verdadeiro fidalgo (estilo antigo); inda o estou vendo, já sexagenário, já mais que ci-devant jeune homme, o pesoaço entalado na inflexível gravata, os pés pegando-se-lhe, como os de Ovídio, ao limiar da porta — não que lhos prendessem saudades, senão que lhos paralisava a caquexia incipiente — mas o espírito jovem a reagir e a teimar.
— Vamos! — disse ele — hoje estou bom, sinto-me outro, quero apresentá-lo a Madame de Abrantes . Está tão velha! Isto de mulheres não são como nós, passam muito depressa.
E o desgraçado tremiam-lhe as pernas e sufocava-o a tosse.
Tomamos uma citadine, e fomos com efeito à nova e elegante rua chamada, não impropriamente, a rua de Londres, onde achamos rodeada de todo o esplendor do seu ocaso aquela formosa estrela do Império.
Não quero dizer que era uma beleza, longe disso. Nem bela, nem moça, nem airosa de fazer impressão era a Duquesa de Abrantes. Mas em meia hora de conversação, de trato, descobriam-se-lhe tantas graças, tanto natural, tanta amabilidade, um complexo tão verdadeiro e perfeito da mulher francesa, a mulher mais sedutora do mundo, que involuntariamente se dizia a gente no seu coração: — Como se está bem aqui!
Falamos de Portugal, de Lisboa, do Império, da restauração, da revolução de julho (isto era em 1831), de M. de Lafayette, de Luís Filipe, de Chateaubriand — o seu grande amigo dela — do Sacré Coeur e das suas elegantes devotas[2] — falamos artes, poesia, política... e eu não tinha ânimo para acabar de conversar.
Benévolo e paciente leitor, o que eu tenho decerto ainda é consciência, um resto e consciência: acabemos com estas digressões e perenais divagações minhas. Bem vejo que te deixei parado à minha espera no meio da ponte da Asseca. Perdoa-me por quem és, demos de espora às mulinhas, e vamos que são horas.
Cá estamos num dos mais lindos e deliciosos sítios da terra: o vale de Santarém, pátria dos rouxinóis e das madressilvas, cinta de faias belas e de loureiros viçosos. Disto é que não tem Paris, nem França, nem terra alguma do ocidente senão a nossa terra, e vale bem por tantas, tantas coisas que nos faltam.
Notas
editar- ↑ Na fonte <http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=1720> aparece "OU", corrigido ao disponibilizar no Wikisource por se tratar de um óbvio erro.
- ↑ O convento que tem este nome em Paris, é casa de educação de meninas nobres e recolhimento de senhoras também. [N.A]