Guerra de postos avançados. Joaninha no bivaque. — De como os rouxinóis do vale se disciplinaram a ponto de tocar a alvorada e a retreta. — Quem era a “menina dos rouxinóis” e por que lhe puseram este nome. — A sentinela perdida e achada.

A velha disse aquelas últimas palavras com uma expressão de dor tão resignada mas tão desconsolada, que o frade olhou para ela comovido, e sentiu as lágrimas escurecem-lhe avista.

Nesse momento Joaninha, que passeava a alguma distância da casa na direção de Lisboa, acudiu sobressaltada brandando:

— Avó, avó!... tanta gente que aí vem! soldados e povo... homens e mulheres... tanta gente!

Era a retirada de 11 de outubro.

— Deus tenha compaixão de nós! — disse a velha. — O que será, padre?
— O que há de ser! — respondeu Frei Dinis. — O meu pressentimento que se verifica; o combate foi decisivo, os constitucionais vencem.

Com efeito foram aparecendo as tropas que se retiravam, as gentes que fugiam, e todo aquele confuso e doloroso espetáculo de uma retirada em guerra civil...

Alguns feridos, que não podiam mais, ficavam na casa do vale entregues à piedosa guarda e cuidado de Joaninha; dos outros tomou conta Frei Dinis e os acompanhou a Santarém.

As tropas constitucionais vinham em seguimento dos realistas, e dali a pouco dias tinham seu quartel-general no Cartaxo; D. Miguel fortificava-se em Santarém, e a casa da velha era o último posto militar ocupado pelo seu exército.

Não tardou muito que a força toda, todo o interesse da guerra se não concentrasse naquele, já tão pacífico e ameno, agora tão desolado e turbulento vale.

Eram os derradeiros dias do outono, a natureza parecia tomar dó pelo homem — dar triste e lúgubre de cena ao sangrento drama de destruição e de miséria que ali se ia concluir. As últimas folhas das árvores caíam, o céu nublado e negro vertia sobre a terra apaulada torrentes grossas de água, a cheia alagava os baixios, as terras altas cobriam-se de ervas daninhas maninhas, os trabalhos da lavoura cessavam, o gado e os pastores fugiam, e os soldados de um de outro campo cortavam as oliveiras seculares...

Tudo estava feio e torpe, tudo era ruína, desolação e morte em torno da casa do vale, agora transformada em quartel e reduto militar. E que era feito, no meio desta desordem, que era feito da nossa pobre velha, da nossa interessante Joaninha?

Apenas se estabeleceu a posição dos dous exércitos, Frei Dinis queria levá-las para Santarém; mas não foi possível. Instâncias, rogos, ordem positiva, tudo foi em vão. Pela primeira vez na sua vida, aquela mulher tímida, fraca e irresoluta, soube ter vontade firme e própria.

— Aqui nasci — dizia ela — aqui vivi, aqui hei de morrer. Que importa como?... Aqui as curtas alegrias, aqui as longas dores da minha vida têm passado: onde hei de eu ir que possa viver ou comer senão aqui? Esta casa sei-a de cor, estas árvores conhecem-me, estes sítios são os últimos que vi, os únicos de que me lembra: como hei de eu, velha e cega, ir fazer conhecimentos com outros para viver neles?...
— E Joaninha nesta idade... no meio dessa soldadesca! — sugeria o frade.
Joaninha — tornava ela — Joaninha é uma criança, e tem mais juízo, mais energia d’alma, mais saúde e mais força do que — mulheres não falemos — do que a maior parte dos homens. Ficaremos aqui, Padre, ficaremos aqui melhor do que em Santarém podemos estar. Deus nos defenderá...

Frei Dinis cedeu: a mesma vaga e indeterminada esperança que animava a velha, e que a prendia tão fortemente ali, não era estranha ao coração do frade. Ela não ousava nem aludir de longe a essa esperança, mas sentia-se que lá a tinha aninhada e escondida a um canto d’alma... Aquele neto, aquele filho da filha querida havia de vir ter à Casa em que nascera... por ali havia de passar, e mais dia menos dia... A velha, repito, nem aludia a tal esperança, mas sentia-se que a tinha: percebeu-lha Frei Dinis, e ou a partilhasse também ou não se atrevesse a contrariar razões que lhe não davam, cedeu e calou-se.

O seu principal temor era a licenciosa soltura dos costumes militares; mas estava Joaninha menos exposta por se acolher a uma praça de guerra como Santarém era agora?

Brevemente se viu que a avó tinha acertado. A franca e ingênua dignidade de Joaninha, o ar grave, a melancolia serena e bondosa da velha impuseram tal respeito aos soldados que — graças também à cooperação eficaz do comandante do posto, um bom e honrado cavalheiro transmontano — elas viviam tão seguras e quietas na pequena porção de casa que para si reservaram, quanto em tais circunstâncias era possível viver. Frei Dinis vinha regularmente ao vale todas as sextas-feiras, e nenhum outro hábito de suas vidas se interrompeu.

E pouco a pouco, os combates, as escaramuças, o som e a vista do fogo, o aspecto do sangue, os ais os feridos, o semblante desfigurado dos mortos — a guerra enfim em todas as suas formas, com todo o seu palpitante interesse, com todos os terrores, com todas as esperanças que a acompanham, se lhes tornou uma cosa familiar, ordinária...

A tudo se habitua o homem, a todo o estado se afaz; e não há vida, por mais estranha, que o tempo e a repetição dos atos lhe não faça natural.

Todavia de Carlos nem mais uma linha... Pobre velha!

Assim passaram meses, assim correu o inverno quase todo, e já as amendoeiras se toucavam de suas alvíssimas flores de esperança, já uma depois da outra iam renascendo as plantas, iam abrolhando as árvores; logo vieram as aves trinando seus amores pelos ramos... Insensivelmente era chegado o mês de abril, estávamos em plena e bela primavera.

A guerra parecia cansada, o furor dos combatentes quebrado; rumores de intentadas transações giravam por toda a parte.

No nosso vale as sentinelas dos dois campos opostos, costumadas já a verem-se todos os dias, começavam a ver-se sem ódio; principiaram por se dizer dos pesados gracejos da guerra, acabaram por conversar quase amigavelmente. Muita vez foi curioso ouvi-los, os soldados, discorrer sobre as altas questões de Estado que dividiam o reino e o traziam revolto há tantos anos. Se as tratavam melhor os do conselho em seus gabinetes!

Joaninha que, pouco a pouco, se habituara àquele viver de perigos e incertezas, de dia par dia lhe ia crescendo o ânimo, aguerrindo-se. Tudo se afazia àquele estado: até os rouxinóis tinham voltado ao loureiros de ao pé da casa, e como que disciplinados obedeciam aos toques de alvorada e de retreta, acompanhando-os de seu cantar animado e vibrante.

A essas horas Joaninha era certa em sua janela — naquela antiga e elegante janela renascença de que primeiro nos namoramos, leitor amigo, ainda antes de a conhecer a ela. Ali a viam as vedetas de ambos os exércitos, ali se acostumaram a vê-la com o nascer e o pôr do sol: ali, muda e quedas horas esquecidas, escutava ela o vago cantar dos seus rouxinóis, talvez absorta em mais vagos pensamentos ainda...

E dali lhe puseram o nome de “menina dos rouxinóis”, pelo qual era conhecida em ambos os campos; significante e poético apelido com que a saudavam os soldados de ambas as bandeiras.

E uns e outros respeitavam e adoravam a menina dos rouxinóis. Entre uns e outros por tácita convenção parecia estipulado que aquela suave e angélica figura pudesse andar livremente no meio das armas inimigas, como a pomba doméstica e valida que nenhum caçador se lembrou e mirar.

Os costumes da guerra são menos soltos do que se cuida; no ânimo do soldado há mais sentimentos delicados, nas suas formas há menos rudeza do que se pensa. A farda é sim vaidosa e presumida, crê muito nos seus poderes de sedução, mas não é brutal senão no primeiro ímpeto.

Joaninha pensava os feridos, velava os enfermos, tinha palavras de consolação para todos, e em tudo quanto dizia e fazia era tão senhora, tinha tão grave gentileza, um donaire tão nobre, que a amavam todos muito, mas respeitavam-na ainda mais.

Fiada já neste respeito e estima geral, Joaninha fora estendendo, de dia a dia, as suas excursões pelo vale. Ultimamente costumava ir, pelo fim da tarde, até um pequeno grupo de álamos e oliveiras que ficavam mais para o sul e perto do lugar donde, à noite, se colocavam as derradeiras vedetas dos constitucionais.

Um dia, já quase posto o sol, a tarde quente e serena, — ou fosse que adormeceu ou que suas meditações a distraíram — o certo é que os rouxinóis gorjeavam há muito tempo nos loureiros da janela, e Joaninha não voltava.

Estabeleceram-se as vedetas de lado e outro, deram-se todas as disposições costumadas para a noite.

O oficial dos constitucionais, que andava colocando as sentinelas, tinha vindo essa mesma tarde de Lisboa com um reforço de tropas. Pôs-se em marcha com a sua gente, foi-a dispondo nos lugares convenientes, e chegava enfim ao pé daquele grupo de árvores.

— Silêncio! — disse ele. — Alto! Ali está um vulto.
— Não é ninguém — respondeu um soldado que era dos antigos no posto; — ninguém que importe; é a menina dos rouxinóis. Estou vendo que adormeceu ao seu poiso costumado.
— A menina dos rouxinóis! Que cantiga é essa que cantas tu de lá?

O soldado deu a explicação popular do seu dito, mostrou a casa do vale, e continuava enaltecendo os méritos e virtudes de Joaninha...

O oficial não o deixou acabar:

— Para a retaguarda, e silêncio!

Foi rapidamente postar a alguma distância dali, as duas sentinelas que lhe faltavam; e ele entrou só no pequeno grupo de árvores.

Era Joaninha que estava ali, Joaninha que efetivamente dormia a sono solto.