Reunião de toda a família.—- Explicação dos mistérios. — o coração da mulher. — Parricídio. — Carlos beija enfim a mão a Frei Dinis e abraça a pobre da avó.

Georgina disse para Carlos

— Dá a mão a esse homem, levanta-o e diz-lhe as palavras de perdão que te pede.

Carlos fez um gesto expressivo de horror e de repugnância. Georgina ajoelhou ao pé do frade, tomou as mãos dele nas suas, e lhas afagou com piedade: depois levantou-lhe o rosto, encostou-o a si e gradualmente o foi acalmando. O velho parecia uma criança mimada e sentida que se vai acalentando nos braços da mãe; agora só murmurava de vez em quando alguns soluços, a mais e a mais raros.

Estavam de joelhos ambos, o frade e a dama: ele mal se tinha, ela amparava em seus braços e contra seu peito o amortecido corpo do velho. E Georgina disse com aquele som de voz irresistível que as filhas de Eva herdaram de sua primeira mãe, e que a ela ou lho tinham antes ensinado os anjos, ou o aprendeu depois da serpente, — um som de voz que é a última e a mais decisiva das seduções femininas — disse:

— Este homem vai morrer, Carlos; e tu hás de o deixar morrer

assim, meu Carlos?

Todo o ódio, todas as ofensas se calaram, desapareceram diante daquelas palavras do anjo suplicante— Meu Carlos — dito assim, não o ouvira ele há muito tempo, não lhe pôde resistir: estendeu os braços para o frade, caiu de joelhos ao pé dele, e um só abraço uniu a todos três.

Como no eterno grupo de Laocoonte, o velho e os dous mancebos sentiam estreitar-se das cobras da mesma dor e afogavam juntos da mesma angústia.

Assim estiveram longamente: e não se ouvia entre eles senão algum gemido solto, e aquele sussurrar sumido das lágrimas que mais se ouve com o coração do que com os ouvidos.

O frade disse enfim com uma voz apenas perceptível de tímida e de fraca:

— Carlos. meu Carlos, perdoa também... oh! perdoa à memória de tua desgraçada mãe.

O mancebo saltou convulsamente como o cadáver na pilha galvânica. Em pé, hirto, horrível, tremendo, exclamou com um brado de trovão:

— Demônio! demônio encarnado em figura de homem, que vieste recordar-me? Dizias bem inda agora, monstro: só às minhas mãos deves morrer. E hás de!

Lançou-se a um enorme velador de pau-santo que lhe jazia ao pé, maça terrível de Hércules, e bastante a fender crânios de ferro, quanto mais a descarnada caveira do frade! De ambas as mãos a levava no ar; e o velho estendeu para ele a cabeça como na ânsia de morrer... Georgina fechou involuntariamente os olhos. e um grande e medonho crime e ia consumar-se...

Dous gritos agudíssimos, dous gritos de desespero e de terror, daqueles que só saem da boca do homem quando suspenso entre a morte e a vida —soaram repentinamente no aposento: uma velha decrépita e meia morta, arrastada por uma criança de pouco mais de dezesseis anos, estava diante de Carlos, e ambas cobriam com seus débeis corpos a frágil e extenuada figura da sua vítima.

— Filho, meu filho! — arrancou a velha com estertor do peito: — é teu pai, meu filho. Este homem é teu pai, Carlos.

O ponderoso velador caiu inerte das mãos do mancebo, e rolou pesado e baço pelo pavimento. Carlos caiu por terra sem sentidos. De um pulo Georgina estava ao pé dele, e o fez encostar na longa cadeira de braços. Estava lavado em sangue: era uma ferida do pescoço que o excesso da comoção lhe fizera rebentar. Os dous velhos vieram ajoelhar-se ao pé dele. As duas mulheres moças lidavam pelo restaurar e lhe estancar o sangue. A cambraia dos lenços, as rendas do colo e das cabeças, tudo se fez em ataduras e compressas: o sangue parou enfim.

Admirável beleza do coração feminino, generosa qualidade que todos seus infinitos defeitos faz esquecer e perdoar! Essas duas mulheres amavam esse homem. Esse homem não merecia tal amor: não, por Deus! o monstro amava-as a ambas: está tudo dito. E elas que o sabiam, elas que o sentiam, e que o julgam digno de mil mortes, elas rivalizavam de cuidados e de ânsia para o salvarem.

De tanto não somos capazes nós.

E por isso admiramos tanto.

E perdoamos tanto.

E esquecemos tanto.

Mas amar tanto. não sabemos: verdade, verdade...

Amamos melhor; sim, isso sim: tanto não.

O mancebo permanecia em delíquio. Frei Dinis e a velha rezavam. Georgina e Joaninha — já vereis que era Joaninha — olharam uma para a outra, coraram e ficaram suspensas. A inglesa estendeu a mão à amável criança, estremeceu involuntariamente, mas disse-lhe com firmeza:

— O dito dito, Joaninha! Eu já o não amo; prometo.
— Eu amo-o cada vez mais, Georgina: ele é tão infeliz!
— Juras-me tu de o não deixar, de velar por ele sempre, de o defender de si mesmo que é o pior inimigo que tem?
— Se juro!
— Então adeus, Joaninha! Eu estou de mais aqui. Já tenho ouvido o que não devia ouvir. Os segredos de tua família não me pertencem. O coração desse homem não é meu. nem o quero. É um nobre e grande coração, Joaninha: mas... Não te deixes dominar por ele, se o queres segurar. Adeus! — Santarém está desamparada pelos realistas; eu vou para Lisboa. Consola tua boa avó, e esse pobre velho. Ele não é tão criminoso, estou certa.
— Oh não! Carlos cuida-o assassino de seu pai; e é falso. Minha avó já me disse tudo.
— Falso! — murmurou Carlos sem abrir os olhos: — é falso? Pois não foi ele quem matou meu pai?
— Não, filho — clamou a velha: — não, meu filho; teu pai é este infeliz.
— E minha mãe?
— Tua mãe... e eu somos duas desgraçadas. Que mais queres saber? Tua mãe amou esse homem...
— Ah! — disse Carlos: — ah! — e abriu os olhos pasmados para a avó e para o frade que cravaram os seus no chão, e ficaram como dous réus na presença do seu inflexível juiz.
— Mas esse homem que é... que por força querem que seja meu... meu pai... Santo Deus! ele matou o outro.
— Defendi-me, foi defendendo esta vida miserável... Oh nunca eu o fizera! E para quê? Para que quis eu viver? Para isto!
— E meu tio, o pai de Joaninha? Também esse era preciso que morresse9
— Ambos se juntaram para me assassinar, e me acometeram atraiçoadamente na charneca. Não os conheci; foi de noite, escura e cerrada. Defendi-me sem saber de quem, e tive a desgraça de salvar a minha vida à custa da deles. Filho, filho, não queiras nunca sentir o que eu senti, quando pegando, um a um, nesses cadáveres para os lançar ao rio, conheci as minhas vitimas... Era inverno, a cheia ia de vale a monte: quando abateu e se acharam os corpos já meios desfeitos, ninguém conheceu a morte de que morreram; passaram por se terem afogado. Ninguém mais soube a verdade senão eu — e tua infeliz mãe a quem o disse para meu castigo, a quem vi morrer de pesar e de remorsos, que expirou nos meus braços chorando por ele, e maldizendo-me a mim. Não seria bastante castigo, meu filho? Não foi, não. Este burel que há tantos anos me roça no corpo, estes cilícios que mo desfazem. os jejuns, as vigílias, as orações nada obtiveram ainda de Deus. A sua ira não me deixa, a sua cólera vai até à sepultura sobre mim... Se me perseguirá além dela!...

Fez-se aqui um silêncio horroroso: ninguém respirava: o frade prosseguiu:

— Não me dei por bastante castigado com a agonia de tua mãe, a mais horrorosa e desesperada agonia que ainda presenciei, ó meu Deus! Tive o cruel ânimo de explicar a tua avó as negras circunstâncias daquela morte, e de lhe patentear toda a fealdade e hediondez do meu crime. Rasguei-lhe o coração, e vi-lhe sair sangue e água pelos olhos, até que lhe cegaram. Que mais queres? Cuidei que podia morrer sem passar por esta derradeira expiação. Deus não o quis. Aqui estou penitente a teus pés, filho. Aqui está o assassino de tua mãe, de seu marido, de teu tio... o algoz e a desonra de tua família toda. Faze de mim como for da tua vontade, Sou teu pai...
— Meu pai!... Misericórdia, meu Deus!
— Misericórdia, filho e perdão para teu pai!

Carlos levantou-se deliberadamente, veio ao velho tomou-o a peso nos braços, foi senta-lo na cadeira que acabava de deixar, e pondo-se de joelhos, beijou-lhe a mão em silêncio. Depois foi abraçar-se com a avó, que o apalpava sofregarnente com as mãos trêmulas, e murmurava baixo:

— Agora, sim, já posso morrer porque o abracei, porque o senti junto a mim, o meu filho, o filho da minha filha querida...

Carlos é que não proferiu mais palavra; tinha-se-lhe rompido corda no coração que ou lhe quebrara o sentimento ou lho não deixava expressar. Saiu da cela fazendo sinal que vinha logo: mas esperaram-no em vão... não tornou.

Daí a três dias, veio uma carta dele, de junto de Évora, onde estava com o exército constitucional.