Vida e Feitos D' El-Rey Dom João Segundo/CLX
Ao outro dia os frades concertaram hũa casa a milhor que nos paços acharam, na qual fizeram altar e ordenaram tudo em grande perfeiçam com tochas e vellas acesas, e oferta e bacias grandes cheas d' agoa postas em mesas, tudo em muito boa ordem. E como foy concertado, el-rey veo logo aa dita casa com muyta gravidade e sinaes de muita devaçam acompanhado de seis fidalgos grandes de seus reinos pera com elle serem christãos; e posto el-rey em pe ante o altar com os seus, frey Joam começou e acabou o oficio muy devotamente, e bautizou el-rey e aos seus, e el-rey por amor d' el-rey de Portugal ouve nome Dom Joam. E os seus ouveram nome o primeiro Dom Francisco, o segundo Dom Gonçalo, o terceiro Dom Jorge, o quarto Dom Lopo, o quinto Dom Diogo e o sexto Dom Rodrigo, e el-rey e seus fidalgos receberam a agoa do sancto baptismo com tanta devaçam e boas vontades que parecia misterio de Deos. E logo ao outro dia disseram missa com todalas cerimonias reaes, de que el-rey recebia grande contentamento. E foy isto feito com muito louvor e serviço de Deos, e exalçamento de sua sancta fe catolica, e por honrra, merecimentos, e memoria d' el-rey Dom Joam o segundo de Portugal dia da sancta vera cruz de Mayo de mil e quatrocentos e noventa e hum.
E neste dia depois de comer ouve no terreiro dos paços muitas e mui grandes festas com gente sem numero, e el-rey por si festejou ao seu modo mayor de festa que tinha, tudo em louvor de Deos e por honrra d' el-rey de Portugal. E alli vieram ante elle todos os senhores e fidalgos que presentes eram huns antre outros, e todos lhe alegavam seus serviços e merecimentos e se agravavam delle por lhe nam fazer aquelle bem de serem logo christãos. E el-rey com muito boas palavras respondeo a todos que nam se agravassem que elle recebia muito contentamento em ver suas vontades, e que tanto que a raynha sua molher e o principe seu filho o fossem que seria com a graça de Deos mui cedo eles todos o seriam; do que todos ficaram muito contentes e tocaram todos a terra e a punham sobre seus rostros em sinal de grande acatamento e com grandes gritas se levantaram e fizeram muitas e grandes festas que duraram até noite com tanto contentamento que era cousa milagrosa. E logo ao outro dia se lançou pregam geral que todo o que aos christãos d' el-rey seu yrmão em seus reinos e terras bem parecesse e o quisessem tomar lho dessem de graça e que el-rey o pagaria a seus donos. E assi mandou em geral queimar logo todolos ydolos de seus reynos e derribar suas casas e altares e se cumprio inteiramente; e aa quinta-feira seguinte cinco dias de Mayo, o capitam e frades tornaram a el-rey, e como a igreja manda a ele e aos seis que com elle foram christãos tiraram os capellos; e acabado el-rey se assentou com os frades e capitão junto com elle, e começando de falar nas cousas da fee, hum dos fidalgos que se chamava Dom Jorge disse a el-rey: "Senhor, quanta merce tu e nós temos recebida de Deos nam podemos merecer, e jaa agora sei que nam há outro bem nem outra verdade senam ser christão, porque toda esta noyte nunca me deyxou hũa molher muito fermosa que com muito prazer me dizia que te dissesse, que agora eras tu e todo o teu reyno ganhado; e deu-me por isso tanto esforço que agora eu soo me mataria com cem homens e não lhes averia medo. E por isso, senhor, faze christãos todos teus fidalgos e vassallos, e com elles sabe certo que em tudo sera teu poder muyto mayor". E acabando este com muitas graças que se deram a Deos e a Nossa Senhora, começou outro fidalgo que se chamava Dom Diogo yrmão do Dom Joam da Silva que morreo no mar e disse: "Senhor, por aquela mesma maneira, e com aquella mesma molher me aconteceo a mim tambem, e ja tinha cuidado de to contar como sonho, mas agora o tenho e creo por verdade porque nam podiamos ambos sonhar hũa cousa. E mais em saindo pola menhã de casa, achey hũa cousa santa de pedra que eu nunca vi, e he feyta como aquella que os frades tinham quando fomos feitos christãos" e dizia-o polla cruz. E el-rey mandou-lhe que fosse por ella e elle em pessoa a trouxe cuberta e com muito acatamento a deu a el-rey. E era hũa cruz de pedra muyto bem feyta e de dous palmos, e os braços lavrados em redondo e muito lisos; e a pedra era preta e sem nenhũa semelhança de pedra algũa que na terra ouvesse; e el-rey a tomou nas mãos e disse aos christãos: "Que vos parece isto?"; e elles vendo-a com muitas lagrimas e devaçam com as mãos levantadas aos ceos lhe disseram : "Senhor, estas cousas sam sinaes da graça e salvaçam que Deos envia a ti e a teus reynos e por isso lhe damos e tu tambem dá muytas graças porque per estes milagres e revelações que aos teus se descubrem te deves agora d' aver polo mais bem aventurado rey do mundo pois sobre tam poderoso como es nesta vida Deos se alembrou de ti e te quer na morte dar outro reyno pera sempre, se neste proposito de seu serviço continuares". E el-rey com as lagrimas que nos christãos vio ficou em estremo muy alegre e muito confortado se levantou e andou abraçando e alevantando os christãos nos braços que he o mayor sinal de prazer que antre elles há. E logo a cruz com solene precisam e muita devação foy levada aa ygreja onde estava por hũa grande reliquia e notavel milagre, por honrra da qual el-rey mandou fazer muito grandes festas.