Manuel Joaquim Gonzaga de Sá era bacharel em letras pelo antigo Imperial Colégio D. Pedro II.

Possuía boas luzes e teve sólidos princípios de educação e instrução. Conhecia psicologia clássica e a metafísica de todos os tempos. Comparava opiniões do Visconde de Araguaia com as do Sr. Teixeira Mendes.

Sua história sentimental é limitada. Não foi casado, esqueceu-se disso; embora tivesse amado duas vezes: a primeira, à filha de um Visconde, num baile de um marquês; a outra, a uma sua lavadeira, não sabe em que ocasião.

Ele mesmo m’o disse, como devem estar lembrados.

Seguindo o seu favorito método introspectivo, analisou detidamente as duas emoções e, ao cabo de detalhada análise, achou-as idênticas em si mesmas e nas aparências.

Aliava a tudo isso uma estoica despreocupação da notoriedade, ou melhor, da posição fácil e barulhenta. Filho de um general titular do Império, podia ser muita coisa; não quis. Era preciso ser doutor, formar-se, exames, pistolões, hipocrisias, solenidades... Um aborrecimento, enfim!... Não quis; fez-se praticante e foi indo. Foi empregado assíduo e razoável trabalhador. A República veio encontrá-lo quase só na seção, redigindo um decreto do Defensor Perpétuo e, ao lhe avisarem: — “seu” Gonzaga, hoje não se trabalha; o Deodoro, de manhã, proclamou a República no Campo de Santana.

— Mas qual? perguntou.

As suas reminiscências de história não lhe davam de pronto a ideia nítida do que fosse República. Sabia de tantas e tão diferentes, que a sua pergunta não foi afetada. Contou-me ele que, na própria manhã de 15 de Novembro, estivera lendo o seu Fustel de Coulanges, justamente no ponto referente à significação aristocrática do tratamento cidadão.

Deve causar surpresa, a quem ler estas linhas, o fato de Gonzaga de Sá, oficial da Secretaria dos Cultos, ter comércio com autores dessa ordem.

Há muita gente que, sem queda especial para médico, advogado ou engenheiro, tem outras aptidões intelectuais, que a vulgaridade do público brasileiro ainda não sabe apreciar, animar e manter. São filósofos, ensaístas, estudiosos dos problemas sociais e de outros departamentos da inteligência, para os quais a nossa gente que lê não se voltou e de que são amadores poucos da élite, e sem eco na nação, em virtude dessa pasmosa diferença de nível que há entre a inteligência dos grandes homens do Brasil e da sua massa legente.

Certos de que as suas aptidões não lhes darão um meio de vida, os que nascem tão desgraçadamente dotados, se pobres procuram o funcionalismo, fugindo ao nosso imbecil e botafogano doutorado. Não são muitos; são raros em cada Repartição, mas consideráveis em todo o funcionalismo federal.

Em começo, procuram-no com o fim de manter a integridade do seu pensamento, de fazê-lo produzir, a coberto das primeiras necessidades da vida; mas, o enfado, a depressão mental do ambiente, o afastamento dos seus iguais e o estúpido desdém com que são tratados, tudo isso, aos poucos, lhes vai crestando o viço, a coragem e mesmo o ânimo de estudar. Com os anos, esfriam, não leem mais, embotam-se e desandam a conversar.

Eu me dei com um escriturário que conhecia o zende, o hebraico, além de outros conhecimentos mais ou menos comuns.

Seu pai, que tivera fortuna, mandou-o para Europa muito moço, pelos quatorze anos.

Lá, onde se demorara perto de dez anos, apaixonou-se pela crítica religiosa e estudou com afinco estas antigas línguas sagradas. Perdendo a fortuna, voltou e viu-se, com tão inestimável sabedoria, nas ruas do Rio de Janeiro, sem saber o que fizesse dela.

Nesse tempo, o folhetim estava na moda, e a repetição de umas coisas vulgares de matemática.

O futuro escriturário não dava para o rodapé; declarou-se besta, e fez um concursosinho de amanuense, e foi indo. Ficou como um escolar que sabe geometria a viver num a aldeia de gafanhotos; e, quinze anos depois, veio a morrer, deixando grandes saudades na sua Repartição. Coitado, diziam, tinha tão boa letra!

Gonzaga de Sá não possuía qualquer sabedoria excepcional, mas tinha em compensação vistas suas e próprias; e, de mais, sobre o tal escriturário, apresentou-se com maior força de inteligência, tendo resistido à depressão mental do ambiente da Secretaria dos Cultos, à qual, como a de todas as Secretarias, poucos resistem.

Certa vez, ele me explicava, de um modo qualquer, algumas considerações suas a respeito do sentido da civilização na América do Sul, e eu lhe perguntei:

— Porque o Sr. não publica isso?

Ainda o tratava por Senhor, e só muito mais tarde, creio que um ano depois, vim a tratá-lo por você e tu.

— Deus me livre! E os jornais?

Não acreditei fosse esse temor pueril que lhe obstava de publicar-se; devia haver outro motivo mais profundo e significativo.

A sua ânsia e a sua febre de conhecimentos, tais como via nele, sempre a par do movimento intelectual do mundo, fazendo árduas leituras difíceis, deviam procurar transformar-se em obra própria, tanto mais que não era um repetidor e sabia ver fatos e comentar casos a seu modo.

Creio que fizera os seus planos, pois que, apesar de remediado e seguro do emprego, não se deixou cevar, pensou sempre, e o seu pensamento estava sempre vivo e ágil, embora, quando o conheci, já tivesse passado dos sessenta. Não ruminava.

Ao contrário, nunca cessou de aumentar a sua instrução, limando-a, polindo-a, estendendo-a a campos longínquos e áridos. Para que seria esse trabalho senão para criar?

É verdade que se podia atribuir ao seu gosto pessoal, perfeitamente desinteressado nas coisas de pensamento, sem objetivo ou tenção de obra ou lucro de qualquer natureza.

Mais tarde, porém, fiquei perfeitamente certo de que era só curiosidade intelectual que o animava e mantinha nas suas leituras árduas, mesmo porque não se podia encontrar outra espécie de explicação à vista da obscuridade a que se havia voluntariamente imposto.

Ele, como Mérimée, não tinha a quem oferecer colares de pérolas. Gonzaga, solitário, sem filhos, membro de família a extinguir-se, a quem iria dar a sua glória?

Deixando de seguir um curso profissional qualquer, foi como se fugisse aos programas para ler com mais ordem e método os autores, ao jeito de quem vai escrever uma memória ou um Felix Alcan, de 7 francos e 50. Fez o seu curso à antiga, em matérias isoladas, abandonando o seriado das universidades medievas, tradição que, dominando nas nossas faculdades, faz estabelecer os mais absurdos encadeamentos de matérias e disciplinas nos seus anos ou séries.

Gostava Gonzaga de Sá muito de revistas. A variada instrução que recebeu, e o seu gosto policrômico permitiam-lhe seguir, sem esforço, a anarquia dos seus artigos. Assinava a Revue, o Mercure, a Revue Philosophique; mas, de todas, a Revue des Oeux Mondes é a que mais queria e citava.

Não apreciava as nossas, muito chics, disse-me ele. Abria, entretanto, exceção para as obscuras e para os jornais ilustrados meteóricos. Havemos de saber mais tarde a sua opinião a respeito.

Pelo livro, acompanhava o movimento das letras pátrias, com vivo interesse mas sem paixão.

Lia o Figaro e repetia, em francês e de cor, várias pilherias do Masque de Fer.

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Nos meus primeiros encontros e com ajuda de informações daqui e dali, foi o que logo percebi em Gonzaga de Sá. Durante meses tive dele esse croquis; mais tarde as linhas se foram firmando, o perfil ressaltando, e obtive, segundo creio, um razoável retrato.

Não convém, porém, deixar de contar as primeiras boutades que ouvi dele.

Contá-las-ei ao correr deste despretensioso esboço de sua biografia.

Contudo, vou narrar uma delas que me pareceu engraçada.