IV

Petropolis

 

Gonzaga de Sá dizia-me:

— A mais estupida mania dos brasileiros, a mais estulta e lorpa, é a da aristocracia. Abre ahi um jornaléco, desses de bonecos, e logo das com uns clichés muito negros... Olha que ninguem quer ser negro no Brasil!... Dás com uns clichés muito negros encimados pelos titulos: Enlace Souza e Fernandes, ou Enlace Costa e Alves. Julgas que se trata de grandes familias nobres? Nada disso. São doutores arrivistas, que se casam muito naturalmente com filhas de portuguezes enriquecidos. Elles descendem de fazendeiros arrebentados, sem nenhuma nobreza e os avós da noiva ainda estão á rabiça do arado na velha gleba do Minho e doidos pelo caldo de unto á tarde. Sabes bem que não tenho superstição de raça, de cor, de sangue, de casta, de coisa alguma. Para mim, só há indivíduos, e eu, mais do que ninguém, pois descendo dos Sás que fundaram esta minha cidade, podia tê-las. Mas sei o que era necessário para tê-las. Precisava, para me considerar nobre, que meus avós tivessem obedecido a todas as regras da nobreza. Eles se casaram em toda a parte, eles nunca se importaram com os seus forais, agora vou eu tolamente gritar por aí, pela rua do Ouvidor: eu sou Sá, nobre, fidalgo, escudeiro etc. etc., pois descendo de Salvador de Sá etc. etc. Isto digo eu que sou Sá!... Agora imagina tu um Fernandes aí qualquer com tais prosápias! Uma instituição só é valida quando é mantida com as suas leis — os nobres aqui degradaram-se porque não respeitaram as regras da Linhagem... Sabes bem o que quer dizer degradar nos códigos de nobreza?.

— Sei! É voltar, por inobservância de disposições deles, ao terceiro estado, onde, para a verdadeira nobreza, está incluída a burguesia. Os Colberts, os antepassados dos grandes ministros...

— Degradaram-se voluntariamente, para ser tapeceiros em Lyon, creio eu, concluiu o meu amigo.

Eram quatro horas e nós tínhamos vindo por deleite até ao Pedregulho. Ao olhar, lá para as bandas do Jockey, a estação da Leopoldina, Gonzaga lembrou:

— Vamos ao Engenho da Penha?

— Onde é?

— Vocês só conhecem a Tijuca e Botafogo. O Rio tem mais coisas belas... É ali.

E apontou para o lado dos Órgãos. Continuou depois:

— Fica à margem de um canal, de cerca de duas milhas, que separa a ilha do Governador de terra firme.

Parece um rio, quando se o vê escorrer mansamente por entre as terras próximas, singrado de botes, de perus, de canoas, de falúas, cujas velas a viração enfuna amorosamente e os impele de vagar... Defronte fica o Galeão, da ilha do Governador, e o Fundão, uma outra ilha, povoados ambos os lugares de mangueiras maravilhosas... Imagina tu que, afora as que o raio pôs abaixo, as do Galeão são algumas dezenas em quadrilátero e viram D. João VI... A enfermaria de loucos que elas ensombram majestosamente foi casa de residência do Rei simplório e infeliz... Vamos!

Tomamos o trem. Era um dos de Petrópolis. Ia cheio dos tais de que me falava ainda havia pouco Gonzaga. Compramos primeira classe para Bom Sucesso, mas passamos logo para a segunda. O meu amigo adquiriu um jornal e pôs-se a ler. Fiquei olhando a paisagem de mangues, desoladora, desanimadora.

Chegamos. Saltamos, fomos a um botequim, servimo-nos de cerveja e Gonzaga intimou-me:

— Tens que andar um pouco a pé... Lá diz La Fontaine: Aucun chemin de fleurs ne condut á la gloire...

— Vamos! disse eu.

Um pouco longe do botequim, ele me fez parar e falou-me assim:

— Fugi dessa gente de Petrópolis porque, para mim, eles são estrangeiros, invasores, as mais das vezes sem nenhuma cultura e sempre rapinantes, sejam nacionais ou estrangeiros. Eu sou Sá, sou o Rio de Janeiro, com seus tamoios, seus negros, seus mulatos, seus cafuzos e seus “galegos” também...

Continuamos a andar e logo depois retomou a palavra com a doçura habitual.

— Já reparaste que não há nada mais cediço que as notícias de Petrópolis?

— Quase não as leio, respondi.

— Fazes mal; é preciso que nos preocupemos com as culminâncias de nós mesmos... Não te patenteias? Interessa-te por Petrópolis, homem!... Insignificantes, embora, merecem atenção as notícias de lá... É só quem sobe, quem desce, não há dúvida!... Não censuro um cronista mundano que se preocupa com quem sobe, mas com quem desce! Não é lá muito do seu ofício; deixe isso para a irmã Paula.. E não é só isso! O pior é que são notícias iguais às de qualquer lugar, vulgares, chatas... Que pobreza!...

— Que espécie de notícias queria o senhor?

— Eu?

— Escândalos mundanos?

— Qual! É vulgar! Queria reformas, revoluções, inversões nos valores chies.

— Como?

— Imagina tu que um ousado filósofo do Manual da Civilidade — espécie zoológica que deve florescer na bela cidade da serra — lembra-se de inverter o consagrado no DONT; e que, aceitando as suas audazes ideias, a sociedade petropolitana obriga a nos vir dizer, com grave escândalo para a Cidade Nova e Catumbi, a seguinte delícia: agora, em Petrópolis, come-se com a faca, e os casamentos são feitos em pijama. Oh! gozo! Demais, tudo tem sido invertido, baralhado, passado do branco para o preto, só o savoir vivre mantém-se no mesmo!... Não é possível! Exige-se uma inversão em tão transcendentes regras, não achas?

— É certo; mas a culpa então não é do noticiarista; é de Petrópolis.

— Por quê?

— Não tem história e pouca fantasia.

— Gente feliz!

Por esse tempo desembocávamos diante do mar. Tínhamos atravessado pequenas plantações de aipim, batata doce, abóbora; a estrada era aqui, ali, ladeada de capinzais e cercas de maricá. No alto de um morro, lavravam, e quem guiava os bois era uma rapariga portuguesa, que tinha um grande chapéu de palha de coco e um lenço vermelho de Alcobaça ao pescoço. O mar...

Parecia mesmo um rio. Na frente, margem esquerda, o manicômio com suas vetustas mangueiras joaninas e o seu campo liso e arenoso. Um ilhote ficava no meio do canal e tinha ainda em pé as paredes de um sobrado.

Perguntei o que era aquilo a Gonzaga.

— É o Cambambe. Aquelas paredes foram de um sobrado em cujo andar térreo havia uma venda.

— Ali! Para quê?

— Antes das estradas de ferro, as comunicações com o interior se faziam pelo fundo da baía, por Inhomerim, porto da Estrela, hoje tapera; e daí até ao cais dos Mineiros, em falúas que passavam por aqui. Os tripulantes destas é que sustentavam a venda que existiu há cinquenta anos naquele ilhéu sem uma árvore.

Gonzaga lembrou-me depois que Estácio de Sá viera a morrer do ferimento por flecha recebido em combate naquela ilha do Governador, que estava ali, na minha frente.

Olhei o canal, segui com o olhar as mangueiras centenárias do Galeão, demorei-o sobre as paredes enegrecidas do ilhote; e, quando pousei os olhos nas águas mansas do canal, como que vi as canoas de Estácio de Sá com os seus flecheiros e mosqueteiros deslizarem, levando o conquistador para a morte...