Magnífica, esquisita arquitetura
De um templo guarda o abismo, onde a figura
Ao preço da matéria corresponde;
Lá no mais fundo dos altares, onde
Arde em perpétuo fumo o rendimento,
Tem o Interesse seu dourado assento.

Este ídolo fatal, que se alimenta
De humano sangue, um monstro representa
Armado sempre em guerra, cobre o peito
Três vezes de aço, e tem o braço feito
Ao furor, aos estragos e à ruína;
Tinto em sangue um punhal a mão fulmina,
E enterrando em um globo a aguda ponta
Pareceu intentar por nova afronta
Cravar o coração de todo o mundo;
Indignou-se, e do seio mais profundo
Suspirou esta vez; e conhecendo

Que do calvo Itamonte o aspecto horrendo
De um pânico terror ao longo ameaço
Não bastava a cortar do Herói o passo;
Que ao fim se dirigia a ilustre empresa
E que em breve há de ver posta em certeza
Toda a idéia do sonho concebido;
De todo agora em cólera acendido
Se empenha a embaraçar o alto projeto
Do magnânimo Chefe; toma o aspecto
De um Frade (quem o crera!), que influíra
Nas primeiras desordens e que vira
Dos nacionais sinceros o destroço:
Este em tratos ilícitos um grosso
Cabedal ajuntara, tendo a idéia
De vender por estanco' o que franqueia
O liberal despego dos paisanos.

Meditando traições, tecendo enganos,
Firmado no caráter o respeito,
Aparecia o indigno; e tendo feito
Já parciais de seu ânimo alguns poucos,
Assim lhes fala: Ó Europeus, que loucos
Às portas esperais vossa ruína!
Credes que esta inação é de vós digna?
Assim vos vejo estar com gesto manso,
Quando a desconcertar vosso descanso

Corre armado o furor de um braço forte?
Desconheceis acaso que outra sorte,
Outra fortuna vos espera, vindo
Tão próximo Albuquerque, a quem seguindo
Vem o infame tumulto dos Paulistas,
Que aspiram senhorear estas conquistas?
Já vos não lembra o meditado empenho
De evitar as justiças, e o despenho
Patrocinar dos novos atentados
No refúgio aos países retirados
Que domina o Espanhol? Tanto afortuna
Abandonais na máxima oportuna
De nos enchermos dos preciosos frutos
Que guarda a Terra, e dos Reais Tributos
Fugir à imposição? Credes que venha
A outra cousa, e outro projeto tenha
Mais que roubar-nos as fazendas nossas,
Ganhadas a tal preço, que inda as grossas
Correntes desses rios se estão vendo
Turvas de sangue? O ímpeto tremendo
Não trazeis em memória dos tiranos,
Que fundados no timbre de paisanos,
Mais escravos que amigos nos queriam?
Não vos lembra os insultos que faziam?
Não vos lembra quem foi, quem é Pedroso?
Ignorais que no cerco duvidoso
Perto estivemos de perder as vidas,
Se por meio de Antunes conseguidas
Não fossem por então nossas idéias?
Ignorais que as montanhas estão cheias
Destes perturbadores, desde quando,
Arbitrária e fantástica ordem dando
Em o nome do Rei, os compelimos
A largar-nos as armas com que os vimos?
Se do auxílio do Grande se aproveitam,
Se a sua fé, se o seu favor aceitam
(

Como é crível que o façam), que destino
Tão triste para nós! Eu imagino
Que não sois Europeus: a vossa glória
Acabou de uma vez para a memória.
Virá, eu vejo, o Montanhês tirano,
Roubará nossos bens, irá ufano
Contar aos nacionais seu vencimento;
Albuquerque, eu o vejo, em nobre aumento
Fará brilhar a Lusa Monarquia;
Nós lhe daremos nova glória um dia.
Eia, Europeus briosos, eia amigos,
Vejam-se os ódios respirar antigos.
Torne, torne de nós a ser lembrada
De Dom Fernando a fresca retirada;
Venha em memória de Rodrigo o caso;
E ou em falsa traição, ou campo raso
Ataque-se Albuquerque, fuja e leve
De uma vez, pois que a tanto hoje se atreve
O desengano da ousadia sua.

Assim fala Menezes: continua
A propagar Conrado o ímpio partido,
Que de acordo comum têm concebido.
Derrama-se o veneno e vai chegando
Aos corações de muitos, avivando
As imagens da antiga rebeldia.
Já um número grande concilia
De atrevidos o Frade: estão dispostos
A disputar a entrada; ao Herói opostos,
Se querem sustentar na liberdade;
Francisco, o vil Francisco os persuade
A viverem seguros nos protestos
Firmados com Viana: de funestos
Agouros ao Paulista se enche tudo.

Eis do sulfúreo pó, do ferro agudo
Se buscam munições. A arte, o engenho
(

Qual o País permite), o desempenho
Se propõem da vitória nos tostados
Paus, de que os duros cafres vêm armados:
Emboscadas ao longe se preparam;
Tomam-se os sítios, fortes se declaram
Contra Albuquerque os insolentes peitos.

Já de Marte ao furor, campos estreitos,
Eu ouço em vós soar da guerra o brado,
A arcada trompa do Indiano ousado
Enche a terra de horror, de assombro os ares.
Conta-me, ó Fama, de que estranhos lares,
De que montes, florestas, vales, rios
Vistes correr os bárbaros Gentios,
Que o bravo Tutonaque armou de lanças?
Que socorros são estes, que alianças,
Que aos Chefes dos rebeldes votos rendem?
Desde o Sabrabuçu matos se estendem
Que habita o Pataxós, nação que um dia
Um Reino, um vasto Reino parecia.
Tutonaque é quem manda a turba imensa;
Ele os nutriu no crime e na licença,
Cheios de raiva e de furor salvagem;
A seu arco é quem só dão vasselagem;
De verdes anos a domar valentes
Da onça as garras, e do tigre os dentes
Aprenderam talvez; o óleo os tinge
Do pau silvestre, que inda mais os finge
À vista horrendos; são caciques deles
Olinté, Mamigé, Teuco, Tameles,
Marminton, Quezincoal, Remlo, Kalupa.
Bárbara esquadra desta gente ocupa
Toda a falda de um monte; em roda os matos
Dão abrigo aos rebeldes, que insensatos
Não pensam mais que em fazer crer a todos
Que a antiga liberdade por mil modos
Será turbada, se o bom Chefe os rege.
Entre nós, diz Francisco, se protege
A maldade; debaixo deste indulto
A traição, a vingança, o roubo, o insulto,
Tudo concorre a nos fazer ditosos.
Em paz tranqüila a desfrutar gostosos
Vivemos no País que outro não manda;
Sem susto o delinqüente entre nós anda;
Que será quando um braço mais potente
Arroje do castigo o raio ardente?
Quando as nossas paixões intime o freio?
De qualquer desafogo no receio
Cheios de medo sempre, e sempre indignos,
Não saberemos contestar malignos
A oposição dos Montanheses feros.
Quanto conosco hão deportar-se austeros
Os Chefes recebidos! Não é novo
Viver sem leis, e sem domínio um povo;
Nações inteiras têm calcado a terra
Sem adorar a mão que o Cetro aferra;
E tal houve que creu felicidade
Desconhecer inda a justiça: a idade
Tem [ ] a humana inteligência
Para abraçar sem susto o que é violência:
Que tormento maior a um livre peito
Que a um homem, a um igual viver sujeito?
A liberdade a todos é comua;
Ninguém tão louco renuncia à sua.
As leis, que um ente humano lhe prescreve,
Cego capricho sustentar-nos deve
Neste, diga-se embora fanatismo,
Embora seja abismo de outro abismo.
Talvez justa noção, princípio, ou dogma
O comum bem noutros projetos soma;
Mas dou que haja razão que assim o dite,
Que um saudável concelho facilite
O bem e a paz na obediência; eu vejo
Que não podemos já viver sem pejo.
Ao ludíbrio dos mais sacrificados
Nos tratarão de membros empestados;
Sobre nós cairá todo o castigo,
Que nos encobre agora um rosto amigo.
Longe, longe, tão baixos pensamentos;
Este é o fim, que segue a passos lentos
O novo Chefe; eu o provejo: posso
Contestar-lhe o poder; o resto é vosso.

Calou o Infame; em um tremendo grito
Soa aplaudida a idéia do delito;
É geralmente a rebeldia aceita.
Do descuido do grande se aproveita
Entretanto o Traidor; expede aviso
A um corpo de Europeus, que vê preciso
Para auxiliar seu braço: o Itatiaia
Os recolhe em seu seio; ali se ensaia
A sedição em poucos mais de um cento.

Houvera de lograr-se o ousado intento,
Mas o Gênio, que guarda as Pátrias Minas,
E a seus descobridores de benignas
Influências enchera, percebendo
A crua idéia do atentado horrendo,
Do mais fundo de um monte a estância bruta
Buscara; ali se acolhe; e em uma gruta
Da cavernosa lapa anima o gesto
De um índio já cansado, inútil resto
Dos anos que contara a mocidade.
Barba e cabeça lhe branqueja a idade;

Dos fundos olhos inda mal se via
O fogo cintilar, em que nutria
Um espírito vivo e penetrante:
De leito serve a pedra, e tem diante
De si os secos ramos, onde acende
A pequena fogueira; a ela estende
As mãos mirradas, o calor buscando.
De uma clara corrente, que manando
Vinha do centro do penhasco, o curso
Segue Albuquerque, entregue o seu discurso,
Separado dos mais, a idéias várias;
Entrava; e suspendido entre as contrárias
Imagens que o combatem, de repente
Punha os olhos no índio, e no acidente
Do inesperado encontro está pasmado.
Caminhante que dorme descuidado
Tanto não se enche de terror e medo,
Quando abre os olhos, e vizinho e quedo
Vê desde longe o tigre, a onça brava,
Que da brenha saía, e atento o olhava.
Cuida ver uma fera o Herói; ousado
Aponta o férreo cano, e já dobrado
Houvera a mola, se de riso o velho
A boca não enchera; ao seu conselho,
Às suas vozes Albuquerque chega,
E todo ao pasmo e à admiração se entrega.
Eu vos conheço, ó Europeus, conheço
(Dizia o Gênio) o generoso apreço,
Que de vós faz o Mundo; em vão dos anos
Não conto os largos e crescidos danos.
Confunde-se o Varão; pede-lhe conte
Quem é. Que faz? Eu sou, diz Filoponte,
O primeiro que entrei estas montanhas
Com o famoso Arzão; ele às estranhas
Regiões se passou; eu só deixado,
E ao comércio dos homens já negado
Vivo neste retiro; a minha vida,
Fortuna e mal, história é tão crescida,
Que só pode cansar-te a minha história;
Mas, pois a sorte com feliz vitória
Te conduziu té aqui, chegando a ver-me,
Sabe quem sou, e aspira a conhecer-me.

Assim dizendo, com a mão feria
O penedo de um lado, e já se via
Aberta uma estrutura transparente
De cristalinos vidros, tão luzente,

Que aos olhos retratava um firmamento
De estrelas esmaltado, e o nascimento
Do roxo Sol, quando no mar desperta.
Em cada vidro a um tempo descoberta
Uma imagem se vê, que os riscos formam,
Estas em outros vultos se transformam,
E a cena portentosa a cada instante
Se muda e se converte; está diante
Uma extensão larguíssima de montes,
Que cortam vários rios, lagos, fontes;
Densos matos a cobrem; vêem-se as serras
De escabrosos rochedos novas guerras
Tentar, buscando os Céus, como tentara
Briareu, quando aos Deuses escalara.

Logo uns homens se vêem, que vão rompendo
Com intrépida força o mato horrendo,
Nus os braços e os pés, mal socorridos
Do necessário à vida: estão metidos
Por entre as feras,-e o Gentio adusto;
Cada um de si só, perdido o susto,
Se embosca ao centro dos Sertões, se entranha
Já pelo serro, já pela montanha;
Uma e outra distância gira em roda,
E deixa descoberta a extensão toda.

Passa este quadro, e logo outra pintura
Nova imagem propõe, nova figura,
Que retrata uns mortais de negras cores,
Regando o aflito rosto de suores
À força das fadigas com que cavam
As brutas serras, e nos rios lavam
As porções extraídas, separando
As pedras do metal, que andam buscando.

Eis que outros homens de semblantes feros
Contra os Conquistadores já severos
Os fazem despejar desde os seus lares;
Disperso o sangue se recolhe em mares;
Família, e armas, cabedais, e tudo
Cede aos avaros, que do ferro agudo
Fazem despojo à fugitiva gente.
Ao som da caixa o vidro transparente
Retrata logo em monstruoso vulto
Correndo à rédea solta a todo o insulto
Confusa multidão, que se prepara
Arrogar-se o Governo e emprende avara
Sustentar com seu sangue o roubo indigno;
De um Chefe os rege o coração maligno,
Bem que se justifique na aparência
De um influxo de zelo e de prudência.
Desde o cume de um monte está voltando
As costas um Guerreiro, que domando
A insígnia traz na mão; segue seus passos
O resto desses míseros, que aos laços
Dos ímpios escapara; tem a morte
Presente aos olhos; e na dúbia sorte
Escolhe de outras forças redobrar-se,
Té que chega a ocasião de vindicar-se
O respeito, que em vão aos maus intima.
Passavam outros vultos, quando em cima
De um soberbo cavalo vem montado
O mesmo Herói, o Herói que está pasmado
De se ver a si próprio: ao longe um pico
Desde uma serra o convidava ao rico
País, que assombra o bárbaro Itamonte
Co'a robusta presença: tem defronte
O demandado Rio, que já vira,

E notara em seu sonho; então se admira
Inda mais Albuquerque, e crê que a idéia
Em um fingido objeto se recreia,
Figurando por força do costume
O Rio e a Serra, que encontrar presume.

Alegre se encantara nesta vista:
Mas notou (triste horror!) que da conquista
Embaraçava a entrada o vil partido
Dos conjurados Chefes, produzido
O exemplo do retiro de Fernando.
Tanto se atreve o insolente bando!

Encheu-se de tristeza, e o Gênio ativo,
Que atende a protegê-lo, logo um vivo
Esforço comunica ao nobre peito;
Antes que em fumo ou ar voe desfeito
De tanta idéia o quadro portentoso,
Quer declarar em tudo o misterioso
Teatro das imagens: vós agora
Influí-me uma voz alta e sonora,
Ninfas do pátrio Rio, com que eu possa
Cantar na glória minha a glória vossa.