Si virtus hoc una potest dare, fortis omissis
Hoc age deliciis. Horacio — Ep. 6º

Ecce panis angelorum...
Poesia Religiosa

Logo que uma centelha do pensamento de Deus alvejou em meu espírito, eu me arrebanhei aos viajores do mundo:

E a fé tinha brotado em meu coração, e a coragem na minha fronte.

Era um esquadrão de semblantes, de muito sorrir nos lábios: e eu exclamei: — o que é sorrir?

Vi também muitos homens, de muito pranto nos olhos: e então exclamei: — o que é chorar?

Mas os homens só me responderam: — caminha!

E eu quis caminhar; mas entorpecia-me os passos um turbilhão de moços, velhos e crianças, que de contínuo abalroando-se, praguejavam, brigavam, cantavam, e soluçavam, estrangulando-se no meio de uma confusão infernal...

Eles rodavam em turmas por um sem conto de veredas baixas, elevadas ou planas, escabrosas, ou frias, ou torradas.

— Onde estamos? — bradei. — Por onde correis?

— Na esperança! — Reboou um concerto estrepitoso, díssono, e entusiasta. E depois indigitaram-me as minhas fronteiras:

E eu descobri o futuro — aquém da felicidade — esvoaçando pela amplidão do horizonte imenso; e caminhei para lá...

Longo tempo estradei um dédalo de trâmites cancelados em todas as direções; e, quando mais próximo lobrigava o marco penúltimo da romaria, galgava, sem saber como, as orlas do empório da esperança.

Então perguntei-lhes um por um o que era — a felicidade.

E eu escutei o infante, o velho, a mãe, a donzela, o amante, o soldado, a esposa, o mercador, o sábio, o ignorante, o pai, o órfão, o padre, o rico, o pobre, o político, o literato, o cortesão, o rei, e o poeta:

Bem assim Platão, Eróstrato, Epicuro, Demócrito, Zenon, Heráclito, Confúcio, Alexandre, Catão, Nero, Germânico, Iro, Creso, e as duas Lucrécias.

Eis o que me disseram:

— A felicidade é a mocidade, a força, a formosura, a glória, a sabedoria, a riqueza, o prazer sensual, a mesa, o jogo, a dança, a orgia, e a honra.

— A felicidade é o brilho do ouro enterrado em férreos caixões, a indolência do corpo e do espírito, a glória militar, ou a tranquilidade doméstica e familiar.

— A felicidade é a vida do marinheiro, do sacerdote, da ave, da flor, do rei, do idiota, do assassino, e do louco, o amor, a contemplação e a fé, a vida do probo, ou do ateu, e do hipócrita.

E quis refletir sobre tanta contradição, e harmonizá-las; mas a descrença enregelou-me as idéias, e gemi!...

O sopro de um demônio enlutava-me a inteligência, e o meu cérebro era como o pavilhão do caos...

Foi então que murmurei aturdido um conjúrio horrível!...

Ai! a aurora de minha existência, como a boreal, espancara as trevas de minha infância, e o clarão tinha passado como a sombra do mocho sobre um cadáver.

Ia invocar a onipotência do nada, quando...

— Olha! — disse-me um Grego, — e eu olhei...

Era um homem dentro de um tonel.

Alonguei os olhos pelo porvir, e vi patentes — os templos de Jano e Vênus.

Alonguei-os pelo passado, e vi deslizando nas águas do Nilo um recém-nado. Vapor escuro rebuçava o tope do Sinai.

Rouquejou pelo correr do tempo muita ambição, correu muito sangue, adoraram-se muitos ídolos.

Depois levantou-se de entre a multidão um tumulto espantoso, e aos ares um alarido horrível e universal...

E o sentimento abandonou-me ao avistar a loucura total do gênero humano, — porque o gênero humano tinha enlouquecido.

Após esse transporte frenético e brutal, meus olhos pairaram sobre um cadáver pendente de uma cruz...

— Quem é aquele? — bradei.

— A Fé, a Esperança, e a Caridade, — respondeu-se-me.

— E o que é a Caridade, a Esperança, e a Fé?

— A felicidade.

Então volvi-me para o futuro, e vi as nações prosternadas perante a Cruz do Capitólio.

A paz reinava sobre a terra.