O Xisto era o carioca mais feio que ainda se viu.

Não tinha defeitos físicos, não o deformavam aleijões nem protuberâncias: era naturalmente feio, de uma fealdade legítima, resultante do conjunto infeliz de todas as partes do corpo, e não de quaisquer incidentes ou particularidades.

Tinha os olhos esbugalhados, o nariz chato, o cabelo espeta-goiaba, a boca rasgada quase até as orelhas, que eram enormes.

Quando abria as mandíbulas para falar, mostrava as gengivas em que se incrustavam alguns fragmentos negros da dentadura de outrora.

Vestia-se mal. Não havia roupa que lhe assentasse, - e não andava sem bambolear ridiculamente os quadris desengonçados.

As mulheres bonitas fugiam dele como o diabo da cruz, e era isto o que mais o desconsolava. As feias, levadas não pelo amor mas por uma espécie de solidariedade, não o repeliam; mas o pobre Xisto não as podia aturar. Era feio, muito feio, mas tinha o sentimento do belo, e sonhava com mulheres divinas, excepcionalmente formosas.



Defronte da casa dele morava uma viúva de trinta anos, lindíssima, de quem se dizia mal. Havia na vizinhança quem afirmasse que ela sofria da mesma doença de Messalina e Catarina II; mas isso bem podia ser calúnia.

Xisto, coitado, adorava em silêncio a encantadora vizinha, sem que tão desairosa reputação fizesse mossa nos seus sentimentos. Não podia vê-la à janela sem frêmitos de amor; considerava-se, porém, como Ruy Blas, insignificante minhoca apaixonada por uma estrela, e não ousava dizer nem a si próprio que a amava.



Imagine-se que sensação, que sobressalto, quando certa manhã, chegando à janela, e olhando para a viúva, o Xisto foi recebido com um sorriso inefável.

Ele sorriu também, contraindo os lábios para não mostrar os dentes e as gengivas, e este esforço muscular produziu uma careta medonha.

A viúva não se mostrou horrorizada. Retirou-se da janela, e, colocando-se no meio da sala, de modo que não pudesse ser vista senão pelo vizinho, mostrou-lhe um papel que tinha na mão.

Ele estupefato, saiu também da janela, e bateu no peito, perguntando, por mímica, se era para si aquele bilhete. A viúva respondeu afirmativamente, e, voltando para a janela, fez do papel uma bola, e atirou-a à rua, tendo o cuidado de, com um volver d'olhos, recomendar ao Xisto que a apanhasse.

O moço desceu à rua, olhou para todos os lados, e verificando que ninguém o via, apanhou a bola, voltou para casa, e leu sofregamente o seguinte:

"Hoje, à meia-noite, espero-o em minha casa. A porta estará apenas encostada. Tenha a maior cautela para que ninguém o veja entrar."

O que durante esse dia se passou na alma e no cérebro do Xisto, daria para um longo capítulo de romance.

O pobre diabo perdia-se em suposições e conjecturas, sem acreditar que se tratasse de uma aventura amorosa. Entretanto, barbeou-se, aparou o cabelo, meteu-se num banho perfumado, vestiu roupa nova, e esperou, febricitante, a meia-noite, contando os minutos, que lhe pareciam séculos.



Quando, à primeira badalada da meia-noite, ele empurrou a porta e entrou no corredor da viúva, esta, que o esperava, disse-lhe à meia voz:

— Entre para o meu quarto.. - devagarinho para não despertar os criados...

Pie obedeceu trêmulo e ofegante.

— Disseram-me ontem que o senhor chama-se Xisto; é verdade?

— Sim, senhora.

— Escreve o seu nome com X?

— Naturalmente.

— Bom.



Na manhã seguinte, o Xisto abriu a janela na esperança de ver a sua amante, mas nem nesse dia, nem nos imediatos lhe pôs a vista em cima.

Afinal, depois de uma semana inteira, conseguiu vê-la; mas a viúva olhou para ele com indiferença, como se o não conhecesse; nem sequer o cumprimentou.

O mísero ficou magoado, e muito convencido de que, sem saber como, susceptibilizara a viúva; entretanto, não teve anseios nem saudades, porque da singular entrevista lhe ficara uma impressão muito desagradável, e a vizinha perdera consideravelmente na sua estima. Ele tinha estado, não com uma mulher, mas com um autômato, uma boneca mecânica, tão fria, tão inconsciente lhe parecera.

A visível repugnância com que ela se esquivara a um beijo na despedida e a insistência com que lhe pedira se fosse embora, depois de uma entrevista que não durara mais de quinze minutos, abateram cinqüenta por cento do seu entusiasmo.

E nunca mais o Xisto se encontrou a sós com aquela mulher, aquela esfinge, que fora sua, absolutamente sua durante um quarto de hora!



Um ano depois, ele teve a explicação de tudo, e quem lha deu foi o Wladimir, seu amigo intimo e colega de repartição, que lhe contou o seguinte:

"Achando-me num bonde de Botafogo, sentado junto a uma senhora desconhecida, esta, ouvindo pronunciar o meu nome por um amigo que se apeara, imediatamente me perguntou:

— O senhor chama-se Wladimir?

— Sim, senhora.

— Escreve o seu nome com W?

— Sim.

— É um bonito nome!

— Acha?

— Diz muito bem com a pessoa.

— Favores seus.

— É solteiro?

— Sim, senhora.

— Aceita uma chávena de chá em nossa casa?

— Com mil vontades.

— Nesse caso, espero-o hoje à meia-noite.

E disse-me onde morava.

Vi então que se tratava do teu autômato.

Fiz-lhe ver que a meia-noite era uma hora muito esquisita para tomar chá em casa de uma senhora, ao que ela respondeu com um delicioso sorriso:

— Pois tomará outra coisa.

Fui pontual.

Reproduziu-se a mesma cena que se passou contigo, tal qual ma contaste. Mas diante do seu automatismo não tive a tua passividade: revoltei-me, fingi-me deveras zangado, e ameacei-a com um escândalo inaudito, àquela hora, se me não explicasse a razão por que te dera a ti uma entrevista, e outra a mim, sem nos amar, sem sequer nos conhecer. A explicação foi difícil, mas arranquei-lha!

— E então? perguntou o Xisto, mostrando as gengivas. Que te disse aquela cínica?

— Não é cínica, é doida.

— Deveras?

— Sim, é um caso patológico. Imagina que ela organizou um índice alfabético de todos os seus amantes, e estava aflita porque lhe faltavam o X e o W. O X foste tu; o W fui eu!

— Ora esta!

— Ainda lhe faltam o K e o Y, mas creio que não os arranjará, a menos que recorra ao estrangeiro.

— Só assim poderia eu, com a cara que tenho..

— Ela encontrou em ti o X que procurava. Se fosses um monstro, seria a mesma coisa. Vê tu aonde pode conduzir a mania de colecionar!

(Correio da Manhã, 14 de junho de 1903)