"Doida não!" Antes vítima/Da Revolta ao Amor

Da Revolta ao Amor
 

 

Sinto fóra do seu lugar o coração ao ter que dizer coisas que é preciso que se digam. Mas anda tanto coração fóra de si mesmo a latejar de tormentos, sufocados de desesperos que não podem desabafar-se em protestos!...

E' por eles que é preciso reclamar, protestar, em nome do direito humano e dos humanos princípios.

E' duro ter de atacar, de condenar, de dizer verdades.

Mas se á condenação do peor, corresponde a salvação do melhor, manda a voz do direito e da justiça que a consciência se afoite no combate directo da verdade sem rodeios.

E' custosamente que vou dissecar na pessoa de um esposo a psicologia de egoismo.

Porque essa psicologia é a causa das desordens e adversidades familiares. Esse ataque não visa, porém, o homem público.

Ficará de pé o seu merecido crédito e justas considerações dispensadas pela sociedade ao intelectual, poeta e jornalista brilhante que creou nome e posição elevada a que não quero diminuir o prestígio das consagrações. Tanto mais que sendo regra quasi geral o homem reservar para o circulo familiar os espinhos da rudeza, e para os extranhos as rosas de cativante galanteria, tem sempre a seu favor um público, tanto maior, quanto mais vastos são os seus recursos argentários e a sua posição preponderante.

O livro «Doida Não!» escripto pela dêste processo, é a prova fulminante da razão que destrói a maior parte dos pretextos invocados para justificar a bárbara punição exercida sobre uma mulher posta em condições que mal lhe permitem defender-se.

Que importa que venham as correntes contrárias, protegidas pela influência do dinheiro, lançar no conteúdo desse livro blasfemias de aviltamento, sarcasmos e dúvidas sobre a verdade das suas afirmações!...

De que serve que essas sofismas pretendam combater o livro, se o livro combate todas as contrarias sofismas?

Já não é possivel destruir o efeito causadu no público em reacções de simpatia pela autora, e de antipatias pelos legisladores da sua tortura. A Verdade palpita nas páginas dêsse livro. Só lhe não sente a sugestão quem estiver eivado de hostilidade.

Ela é tão limpida e tão expontânea, como o lampejar das estrelas cravejando de luz a translucidez etérea do céu.

Diz um prolóquio vulgar: «O papel consente a que se lhe põe». Mas ha outro que diz: «A verdade é como o azeite que anda á tona da água».

E como o azeite é o sangue do macerado fruto da oliveira simbólica, do qual a adivinha popular diz ainda:

Para alumiar aos homens
Mil tormentos padeci.

conjugam-se as virtudes de luz e de verdade, contidas do martirio do emblemático fruto da árvore da Paz, com o martirio de muitas mulheres, para dar Luz, Verdade e calor aos argumentos defensores do ideal pacifista dependente da harmonia da familia que Mantegaza ensina aos esposos no seu livro «Arte de ser feliz.»

Ha livros de livros. Este é um deles. Ha na sua essência uma alma, e na sua alma uma essência. Sente-se-lhe a exalação da verdade, a verdade da convicção, e a convicção do expontâneo, do real, do comunicativo.

O formidável e quasi imprevisto efeito que ele causou na multidão, atesta inegavelmente a sua emanação de magnetismo que é o segredo dos milagres de reacção produzidos pela eloquência da verdade.

Querem contestar essa verdade as partes contrarias?

Não o conseguiriam porque já existem maravilhas de inventos novos nos grandes institutos psiquicos da Alemanha e da America do Norte. E póde-se radiografar o cerebro e os pensamentos, o corpo e a alma, por fórma a distinguir a alma nos pensamentos, os pensamentos nas palavras e nos caracteres com que se exprimem.

Com tais recursos, póde distinguir-se o que é verdadeiro, do que é falso.

Iniciemos, pois, com afoiteza o debate que defende nos direitos de uma mulher os direitos de um sexo, e nos direitos de um sexo, os interesses de uma humanidade.

Formemos os quesitos, tomando para ponto do debate as declarações expostas lucidamente no livro que é obra de uma Doida com Juizo.

Começa a snr.a D. Maria Adelaide da Cunha por dizer no seu livro, com naturalidade despretenciosa e expressões claras e ilucidativas:

«Muito estimada por todos, eu era, por assim dizer, a secretária de meu pai e a sua companheira predilecta.»

E mais abaixo:

«Meu pai e minha mãe adoravam-se, e eu sempre idealisei para mim um lar semelhante em que o amor reciproco, sincero e desinteressado, substituisse tudo o mais que nele pudesse faltar.»

É este o ideal sonhado por tantas mulheres e atraiçoado pela realidade da desilusão!...

Traduzidas fielmente estas declarações, querem dizer:

1.° Que existem meritos reais na pessoa que desperta a estima geral de aqueles com quem lida. Caracterisam-se esses meritos por um dom de atracção.

Essa atracção é uma especie de ozone espiritual de bondade que exerce um influxo de simpatia e encanto, dispondo esse dom sedutor que torna estimáveis e simpaticas as pessoas.

2.° O ambiente familiar de harmonia, de brandura e amor formaram o caracter delicado e terno da filha amada e preferida para secretária e companheira dilecta do pai, homem de erudição, de espirito iluminado e coração afectivo.

Esta preferencia era o élo das afenidades, a recetividade das almas, o reflexo dos corações embelezando e ligando duas vidas de pai e filha na continuidade da virtude familiar.

Aquele exemplo de ternura conjugal cultiva na filha a ância de um lar cor de rosa.

Mas no outro lar em que se creou o futuro consorte, e que o egoismo perturba de dores, veem para a alma de outro filho exemplos contrários que serão amofinação e ultraje na casa onde a alegria não transporia o limiar dos sonhos irrealisados.

E' certo que a responsabilidade dêsse exemplo pertence a causas anteriores. O filho que recebe e assimila este exemplo, não é um culpado, é uma vitima interprete dos seus damnos.

Mas esse mal tem de ser combatido embora atacando a vítima dêle.

Neste caso esse mal existia na hereditariedade de caracter e de habitos legados ao consorte pelo seu progenitor.

Diz a Ex.ma Snr.a D. Maria Adelaide a paginas 14 e 15, depois de acentuar o seu desconsolo e desilusão ácêrca do caracter reservado e áspero que o destino poz ao seu lado:

«Mas isto é de familia.

O pai e o avô eram assim para as mulheres. O segundo, que foi sempre pouco equilibrado, não podia ver a mulher.

E ela era tão santa que até deixava as creadas terem em casa as filhas do proprio marido. Mas êle declarou no testamento que não queria ser enterrado ao pé dela.»

Feroz hostilidade!...

Que morbida disposição dos caracteres egoistas e rancorosos a retribuir a resignanda bondade de uma mulher que perdoa os delitos do adulterio e do despotismo!

Nem na sepultura a quer a seu lado! Realmente existe uma incompatibilidade frisante entre a bondade e a crueldade. Uma é positiva, outra é negativa. E' por isso que é sempre atraente a mulher bondosa — que encontra correspondencia na sua ternura. E' sempre antipatico o caracter cruel e duro que martirisa e repele.

Estão justificadas nesta hereditariedade a razão e a verdade das afirmativas da Esposa ferida, quando se queixa da frieza e do abandono do marido. E por esses mesmos antecedentes se conclue que a expiação que lhe é imposta com rigor, não é sómente a consequencia dos seus crimes, mas uma derivante de sentimentos e disposições de caracter herdados no sangue e acentuados por exemplos de ofensas usadas para com as esposas que foram as virtuosas avós do snr. Dr. Alfredo da Cunha.

Mas confirmando estas revelações de psicologia, diz a autora do livro a páginas 4:

«Já tinha reconhecido que os versos do Dr. Alfredo da Cunha, que tam apreciados foram por mim, eram mais pensados do que sentidos, porque emquanto alguns deles pareciam repassados de sentimento, este em nada se revelava no trato para comigo. Mas a minha opinião mais se confirmou vendo o seu pouco carinho pelo filho. Não era um pai como o meu, era um pai frio, severo, como tinha sido o dêle.»

A páginas 5 diz ainda:

«Dr. Alfredo da Cunha era muito rispido para seu filho, e castigava-o bastantes vezes.»

E a páginas 15:

«Quando o filho lhe desagradava em qualquer coisa, deixava de lhe falar, evitando mesmo vê-lo.».

E a páginas 6:

«Raro meu marido beijava o filho.»

Ponha-se agora em confronto a ternura da mãe para o filho.

Depois dos sofrimentos da maternidade, a mãe concentra todo o seu amor no filhinho do seu amor. Com a arte e engenho da sua vocação de estéta, são as suas mãos habeis, laboriosas que fabricam todas as suas roupinhas. Cria-o aos seus peitos com disvelos que são no coração das mães o perfume de aimas enternecidas, a fragrância ideal da ternura maxima. Velou-lhe o sono em vigilias de sobressalto aconchegando aos labios o tenro e roseo pedacito da sua carne, que era o sorriso da sua vida.

Chora quando o rigor do pai o castiga. Um dia, revoltada por ultrajes e humilhações, pensa no divorcio. Mas o pai do pequenino ameaça-a de tirar-lho. E a abnegação maternal prefere todas as afrontas à tortura da separação do filho das suas entranhas.

Mas, afinal, o filho faz-se homem, e o homem faz-se egoista pelo exemplo.

Numa soledade de afectos, irrompe a chama candente de uma paixão febril. E o filho esquece tanto amor e tanto desvelo e secunda os rigores do lado paterno, que lhe injectaram na alma fermentos egoistas, até abafar no coração do filho o coração amorável da mãe. Do lado do pae estava a fôrça, porque estava prestigio e dinheiro. Do lado da mãe a fraqueza, porque existiam apenas tesouros de amor no coração tam mal compreendido, lealdade no delicto e abandono de bens que só legitimamente solicita.

Em face dêstes contrastes, é legitimo estabelecer este paralelo de psicologias:

Do lado da mulher altruismo e Amor. Do lado do homem egoismo causando a Dôr. Ha entre esses dois contrastes o delicto de uma paixão? Mas ainda aí a mulher está no plano simpatico do amor que tem como origem excessos de afectividade reprimida, desconsolos de coração acumulados, e quem sabe quanto desprêzo por uma sociedade hipocrita e futil que enchera de adulação os salões da intelectual gentil, quando se recreava nas suas festas opulentas, e se põe agora ao lado do mais forte, conivente na derrota da perseguida, tão repugnantemente, quanto è repugnante a impostura, a ingratidão, a perfidia e o egoismo, que só busca as suas conveniencias e interesses.

Invocam-se direitos de honra que é afinal explosão e disfarce de ódio e vingança protegida pelos codigos penais e jurídicos? A honra é uma palavra vã, um orgulho vil, um mesquinho e ridiculo pretexto, quando os que a invocam a roubam anonimamente noutros lares, e se amesquinham profanando a mais santa das virtudes que enobrece o homem de bem, a quem cumpre amar com desvelo a mãe que o deu à luz. Porque acima de todas as conveniencias, é virtude esquecer a fragilidade dessa mãe, tam virtuosa afinal, nunca esquecendo o amor que lhe deve e o culto a que ela tem direito. Não é honra nem dignidade ajudar a torturar o seio que as dores da maternidade santificaram. E haja o que houver, nunca deve cessar a reverência a que teem jus legitimo e sagrado, as mães que no seu ventre dão a carne da sua carne, o sangue do seu sangue aos filhos que deverão amá-las, defende-las e protege-las, tanto mais quanto mais cruel fôr o seu destino.

Bem póde ser, é certo, que aquele que não beijava o filho em pequenino, o beije e câtive agora com interesse, para que num excesso de interesses tentem recusar os tristes alimentos á boca da mãe que durante nove mezes o nutriu no seu ventre e lhe deu o alento da vida na seiva purissima do seu leite. Lancemos um veu de tolerância sobre estas fraquezas morais a que está sujeita a fragil natureza humana, para não abalar o respeito que um filho deve incondicionalmente a um Pai que se impõe ao conceito público pela sua posição e méritos intelectuais.

Mas não hesitemos na defeza da maior vítima desta tragedia a quem se oferece esta expiação que comove e revolta ― A miseria, ou a carcere de loucos.