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NÃO ha ninguem que não tenha ouvido, pensado, ou dito centenas de vezes — que o maior mal do nosso paiz é a ignorancia, que o analfabetismo é a causa mais flagrante da nossa decadencia moral.
E realmente a verdade, a triste verdade que nos envergonha e inferiorisa aos nossos proprios olhos.
Mas são sómente os governos os grandes responsaveis d'este atraso vexatorio do nosso paiz?
Não corresponde o desleixo em que os governantes têm deixado cahir a instrução publica , á criminosa indiferença individual dos governados por essa instrução geral, que é o orgulho dos paizes cultos?!
Não são os governos que fazem os povos, mas os povos que fazem os governos; e estes, forçosamente, hão de promulgar e cumprir as leis que a consciencia colectiva e fórte duma sociedade reclama, porque correspondem a uma necessidade ou a uma aspiração nitida da alma popular.
Assim o prova o pouco mais de interesse que a instrução do povo vae despertando entre nós, mercê das reclamações e lamentações que de ha poucos annos a esta parte se vem ouvindo, numa propaganda lenta, mas fructuosa, de alguns espiritos dedicados.
O governo deve auxiliar a iniciativa individual, deve, por assim dizer, sancioná-la e impulsioná-la; mas ser elle sómente o encarregado de nos dar todos os progressos e todos os melhoramentos, é inadmissivel para espiritos que aspiram a ser livres e desejam uma patria livre.
Nos paizes cultos, sob os governos mais inteligentes e progressivos, o que vêmos? A iniciativa particular realisar tudo ou quasi tudo, e os governos adoptarem os melhoramentos, auxiliarem-nos, serem como que o vigia dos actos individuaes, não o tutor, a Providencia, que nós pretendemos que seja, por preguiça de pensar e trabalhar.
Depois duma senhora fundar em Paris a Maternidade, a instituição que mais eleva o espirito altruista do nosso tempo, é que a municipalidade resolveu imitá-la, criando por seu turno outra casa similar.
Foi depois de miss Nytingale educar e apresentar as suas enfermeiras modelos, livres de todo o espirito de sectarismo e instruidas segundo todas as regras da higiene moderna, que o governo inglês as enviou á Crimeia, onde déram as suas primeiras e brilhantissimas provas, e as adoptou nos seus magnificos hospitaes, onde são exemplo para todo o mundo.
Por toda a parte se fundam institutos, se realisam obras de solidariedade, protectoras e pedagogicas, que os governos sancionam depois, que ajudam a manter e a espalhar, se o resultado corresponde aos sacrificios exigidos.
Decretar no papel sem que a prática mostre que a inovação está de harmonia com o caracter etnico do povo, corresponde a uma necessidade colectiva ou foi precedida duma propaganda inteligente e conscienciosa, dá o triste resultado que produzem no nosso paiz as reformas, em geral, e a da instrução em particular.
Senão vejâmos. Como todos sabemos, estão criadas escolas e decretada a instrução obrigatoria ha tempo bastante para que a actual geração fosse filha, e até neta, de gente sabendo lêr.
E o que sucede?
O numero de analfabetos é enorme, e os que sabem alguma coisa é tão pouco, e tão mal aprendido, que mais se póde dizer que igualmente nada sabem.
Isto porque o professor é, em geral, uma pessoa que arranja esse oficio como podia arranjar outro qualquer, sem vocação, sem comprehensão do que seja o ensino e da responsabilidade com que vai arcar, tomando sobre si o encargo de iniciar pequenos cerebros obscuros no luminoso cultivo intelectual.
É muito grave e delicado o oficio, e não sei de quem o possa tomar de ânimo leve, só com mira nos magros proventos.
O verdadeiro professor é o sacerdote das ideias, que levantam e comovem hôje a humanidade.
Por elle, a criança deveria ter do estudo a ideia prática e util que é a base de toda a educação moderna, mórmente se é dada a pobres, sem tempo para perderem em inutilidades e bonitos. Por elle, a criança deverá receber uma noção simples, mas geral, de tantissimas descobertas com que dia a dia se augmentam os conhecimentos humanos, e saberem a maneira de utilisarem pràticamente o que aprenderam.
Mas não sucede assim. Os professores, miseravelmente remunerados como são, sem coragem nem iniciativa para luctar, alguns educados por processos archaicos, sem uma feição prática e utilitaria no seu método; como hão-de ensinar o que não lhes foi ensinado e não podem aprender por si, pela carestia da vida, e até pela falta de pequenas bibliotécas de vulgarisação e ensino? Por isso elles se não interessam senão por um ou outro dos seus discipulos mais inteligentes, que irá a exame e lhe dará honra e lucro, se a familia é abastada.
Os outros, a turba-multa, quando o trabalho os reclama para fóra da escola, mal sabem soletrar, escrevem a custo os seus pobres nomes obscuros, e não chegam a comprehender que vantagem lhes pode advir d'esse favôr da sociedade.
E estes são ainda os que vão á escola, que a grande maioria, principalmente nos campos, nem sequer se incomoda a frequentá-la.
É verdade que ha leis que obrigam os pais a mandar os filhos á escola; mas que monta se essa mesma lei exige dos pequenos estudantes o uso de sapatos, e os pais, não tendo para comer, dispensam muito bem essa exigencia da civilisação?
Fazem-se leis obrigando os pais a mandar os filhos para as escolas; mas que importa isso se para aprenderem precisam de comprar livros , que são carissimos, e elles não têm que lhes sobre para pão?
Fazem-se leis obrigando os pais a mandar os filhos á escola; mas como poderão estar as crianças umas poucas de horas sem comer, visto que os pais lhes não podem dar merenda e cá por fóra sempre vão apanhando dez reisitos em troca de pequenos serviços, rebuscando, farejando, pedindo como cães vadios, mas comendo afinal?!
Fazem-se leis obrigando os pais a mandar os filhos á escola; mas de que serve isso se a escola é de dia como a oficina e a fabrica, e os pobres não podem dispensar o trabalho das crianças, já ganhando o seu pequeno salario, já ficando em casa com os irmãositos, emquanto as mães vão moirejar por fóra?!
Segue-se pois que a criança do povo está condemnada a uma eterna penitenciaria de ignorancia, se antes da escola não houver a créche, não houver o hospital para parturientes, e, antes do hospital, não houver a maternidade, que é a casa onde a mulher pobre passa com descanço salutar os ultimos mêses da gravidez; se, ao lado da escola, não houver a oficina escolar, o asilo modelo donde a criança, rapaz ou rapariga, sáia preparada para entrar desassombradamente na vida, sabendo ganhar a sua subsistencia pelo oficio que escolheu. Da escola, assim acompanhada, deverá a criança sahir sabendo lêr, escrever e contar, sabendo sobretudo trabalhar metodicamente e com nobre orgulho da sua profissão.
Ora é isto o que os governos, só por si, não pódem fazer se os não auxiliar a boa vontade e iniciativa particular, já fazendo propaganda entre o povo, já distribuindo livros gratuitamente, fundando escolas e bibliotécas, dando premios ás crianças aplicadas, contribuindo para tornar a casa de estudo artistica e agradavel, ensinando mesmo os professores e fornecendo-lhes maneira de se educarem nobilitando o ensino, por assim dizer.
É da iniciativa particular que devem partir as bôas ideias exequiveis, que o governo será obrigado a auxiliar e adoptar, quando a opinião pública as impônha.
É isto o que é preciso fazer e é isto o que esperâmos vêr realisado em breve no nosso paiz. Porque, ao lado de muitos que usam a caridade mirabolante como orchidea de fantasticas fórmas para espanto das gentes rastejantes, ha lucidos espiritos que fazem o bem pelo bem, como um dever, como um simples acto de justiça.
Porque dever, porque justiça, é pensar nos que têm fóme, nós que nunca lhe sentimos os tormentos; é pensar nos que são ignorantes porque não têm maneira de se educar, nós que nascemos num meio em que nos instruimos sem querer; é pensar nos que sofrem vendo os filhos fenecer e morrer por falta de alimentação e higiene, nós que podemos criar os nossos em melhores condições.
É pensar em todos os que sofrem, sem razão para sofrer, — só porque o acaso os faz nascer num pobre albergue em vez de casa rica ou remediada — mas não para lhes dar a esmola que deprime e desmoralisa, que habitúa o espirito aos favôres do acaso, e que é injusta porque obedece ao arbitrio individual, mas para dar sem distinção nem favôr, a todos, porque todos o merecem, a educação que enobrece, a luz que vivifica, o alimento, o ar, a agua, a casa, a saúde e a alegria emfim, a que todo o ser humano tem direito.
Não é o luxo, não é o superfluo, que é forçoso dar, é apenas o necessario, apenas o que é justo.
E se todos, principalmente as mulheres, puserem nesta campanha a energia do seu querer, a nobrêsa da sua dedicação, temos o direito de esperar uma hora breve de mais justiça e de mais alacridade para este miseravel povo português, amortecido pela ignorancia e pelo sofrimento.