Ás Mulheres Portuguêsas/Mulheres desnaturadas, mães desnaturadas
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ÉVULGAR encontrar-se na leitura diaria dos jornaes titulos assim alarmantes, sob os quais os reporters juntam á pressa meia dusia de adjectivos ferozes, na narração detalhada de qualquer crime, ou simples tentativa, de infanticidio.
Não ha muito ainda que dois jornaes dos que se dizem mais livres encimavam umas vulgares noticias do genero com os titulos que reproduzimos.
Numa, era a criada de servir que voltava da terra com o filho recem-nascido dentro duma canastra e que o atirára pela janela do vagon em que viajava, se um empregado não evitasse o medonho crime.
A outra era um simples caso de engeitamento, por miseria, tambem por parte duma criada de servir.
Ora quando jornaes avançados, que se dizem desprendidos da rotina e do preconceito, usam para tais casos de tão violentos epítetos, o que não dirão os outros, os arbitros triumfantes do convencionalismo burguês, os fartos interpretes duma sociedade hipocrita, que nas prégas do seu manto de pudicicia abriga crimes mais revoltantes do que os cometidos por esses monstros moraes descriptos com tanto asco!?
Mães desnaturadas, essas miseraveis, decerto! Mas com quanta desculpa a atenuar-lhes a brutalidade do delicto!
E a justiça a que aspirâmos, a justiça nobre e alta que é o objectivo supremo do nosso ideal de nova sociedade melhorada e feliz — quanto é licito ao homem sê-lo, sem cuidados de sobre-posse nem exigencias loucas — a justiça que não se cobre com leis, nem venda os olhos para não discernir, não póde castigar todos os casos pela mesma rigorosa interpretação dos codigos, não deve julgar sem atender ás determinantes e, sobretudo, ao gráu de responsabilidade do delinquente.
Poderemos, acaso, esperar do ignaro e rude trabalhador — que de sol a sol tira dos musculos o esforço que produz o pão do seu alimento e o dos filhos, e á noite, extenuado e brutificado, adormece pesadamente, até que novo sol lhe traga novas canceiras, e alegrias tambem, mas rudes e vulgares como a sua alma deseducada — poderemos, repito, exigir a esse a mesma visão clara, a mesma responsabilidade moral que deve existir no homem culto que no recesso da sua alma pesa e mede os seus actos, conhecendo leis, conhecendo direitos e deveres?!
Poderemos chamar a essas mulheres mães desnaturadas, porque abandonam um filho, que já fôra abandonado pelo pai? Um filho que não seria mais do que um tropeço para a sua vida de trabalho; que hôje lhes custaria a sustentar com a escassa soldada de criadas de servir e ámanhã lhes custaria mais, infinitamente mais, a vestir, a alimentar e a educar?!...
— «Queria matá-lo, sinistramente, arremessando-o á linha a toda a velocidade do comboio, por uma noite escura e tragica, como quem alija demasiado pêso na lucta de um naufragio, como quem num esforço se alevanta e sacode dos hombros um fardo com que não póde...
E não era esta exactamente a verdade? Quem ensinou a essas mulheres de vinte annos, abandonadas á propria sorte, pontapeadas pela sociedade, enganadas pelos homens, servindo quem as despresa e maldiz, só toleradas porque são uteis — bestas de carga para criarem e servirem os filhos alheios — quem lhes ensinou a ser mães?
Quem lhes ensinou sequer a ser mulheres, na acepção nobre e alta da palavra, e não tão sómente a femea brutalisada e despresada pelo homem, quando o saciamento matou o desejo carnal?
Quem lhes disse que o fructo que de seus efémeros amôres lhes ficou nas entranhas é um ente crédor a todo o seu respeito — já não digo ao seu afecto, que se não póde obrigar — de que são apenas as depositarias e sobre o qual não têm direito de vida ou de morte, embora da sua propria vida se alimente?!
Quem lho terá ensinado?
A lei, mandando-as depois do crime feito para um presidio ou para uma penitenciaria? Não, porque a lei não ensina os ignorantes, vinga nos culpados os sentimentos conservadores da sociedade que a fabricou.
A lei, cahindo rígida e inexoravel sobre a cabeça de um condemnado, que lhe não conhece o alcance, não converte um criminoso, cria um hipocrita ou um revoltado.
Quem ensinou essas desgraçadas que hôje choram no segredo do aljube, — não de remorso, que não podem sentir, mas de pavôr — que era um crime menor aos olhos da sociedade, que só cura de aparencias, em vez de abandonar ou matar um filho nascido, tê-lo desfeito misteriosamente, quando ainda mergulhado na noite da sua vida uterina, mas com tanto direito á luz e á existencia consciente como depois de nascido?!
É de presumir que tenham tentado primeiro esse crime como tantas que se vêem a braços com uma situação tão absurda e condemnada, quanto é vulgar e desculpavel.
Alguem lhes incutiu na consciencia essas simples noções de sã moral?
Certamente ninguem em tal pensou.
E se o que ellas praticaram, ou tentaram praticar, é um crime abominavel, o outro não o é menos. A diferença está em que um é conhecido, impõe-se pela brutalidade do facto; o outro é ignorado, não se prova facilmente e é praticado a sangue frio por muitas mulheres que se dizem honestas e para as quais a sociedade não ajunta pedras com que as lapíde, nem escancara aljubes onde as sepulte.
— «São peores do que as féras — dizem os moralistas que se não pejarão, talvez, de deixar outras mulheres na mesma situação embaraçosa — porque todas as femeas têm o instincto da maternidade e todas, em geral, se sacrificam pelos filhos.
Opinião já feita e que não representa mais do que uma vulgar figura de rétorica, que a sciencia desmente a cada passo.
O instincto não é igual em todos os seres, pois os mais infimos na escala zoologica como os mais superiores individualisam-se no seu modo de sentir.
Se ha caracteristicos proprios a uma certa raça, entre essa mesmo salientam-se individuos cujas qualidades e defeitos são uma negação de todas as regras.
E certo que o instincto da maternidade é um caracteristico de todas as femeas, e, no emtanto, ha muitas, entre os animaes, que matam e até comem os filhos.
Ha mulheres que fazem pelos filhos os mais inacreditaveis sacrificios, tudo lhes dando, tudo achando pouco para elles; como o pelicano, arrancam de si proprias as pennas com que lhes afôfam a existencia. São as instinctivamente mães aquellas que se deixariam matar antes do que vêr maltratar um filho. A javarda ama tanto as suas crias, que persegue até à morte o caçador atrevido que lhe rouba um bacorinho da ninhada; e, no emtanto, algumas ha que os comem, quando a próvida natureza lhes deu mais do que podem aleitar.
Estas tambem obedecem ao seu instincto, forçando a lei que nos dá, naturalmente, a seleção da especie.
E o que é o homem sem educação mais do que um animal de instinctos baixos, dotado de faculdades imitadoras para simular os gestos e a voz dos outros homens?!
A superioridade do ser humano não consiste em andar com a espinha direita e em poder erguer a cabeça para a luz, não! A sua superioridade está em comprehender a justiça e ter a consciencia do bem, coisas que sómente a educação póde incutir no espirito dos que não têm comsigo a bondade instinctiva dos doceis.
Condemnar sem defêsa nem atenuantes a mulher desprovída de recursos, exposta ao escarneo e ignominia da sociedade, quando abandona ou mata um filho, é impiedoso.
Se fosse uma criatura heroica poderia reparar o que se convencionou chamar falta, tirando do seu trabalho, miseravelmente pago, a sustentação do filho. Mas não é heroi quem o quer ser, e o egoismo individual é por vezes tão imperioso, que a criatura se ergue num desespero bruto de féra que quer viver, despedaçando tudo quanto lhe embaraça os movimentos e lhe pêa a satisfação das suas necessidades materiaes.
Sentimentos, afectos, inteligencia, tudo se obscurece e oblitéra perante as exigencias materiais da vida, que a sociedade, á força de querer melhorar, transformou em lucta sangrenta em que sucumbe a maior parte.
— «É preciso castigar — dizem ainda os moralistas, na velha teoria inquisitorial e barbara — é preciso dar o exemplo, atemorisar...
Mas, para quê, perguntâmos?!... Se o acto criminoso depende da tára fisiologica que dispõe determinada criatura á loucura do crime, como tornar um doente responsavel pelo seu mal?
Se o delicto fôr determinado ocasionalmente, pelas condições especiais da existencia, o mal tem remedio, e deve remediar-se, acabando com os factores que concorrem na sociedade para que tantas desgraçadas sofram o que essas pobres estão sofrendo agora.
Conheci uma criatura que, estando a servir, lançou um filho recemnascido numa cloaca, como quem, enojado, deita fóra um trapo imundo. O que a não impedia de que fosse uma pobre criatura humilde e inofensiva, e de ser para os outros filhos, senão uma bôa mãe no sentido completo da palavra — o que a ignorancia e a pouca inteligencia lhe não permitiam — pelo menos amoravel e dedicada, sacrificando-se para os alimentar e vestir.
O que determinou essa mulher a cometer tão repugnante crime? A circunstancia ocasional de estar bem numa casa donde não queria sahir e da qual seria fatalmente expulsa, conhecido que fosse o seu estado.
O instincto maternal existe, certamente, mas a miseria umas vezes, outras a educação, o egoismo e as exigencias brutais da vida, têm-no obliterado em grande parte das almas femininas. Como se explicaria por outro módo o horror ao filho, que existe, que é flagrante, em quasi todas as mulheres casadas?!
A alegria com que muitas proclamam não terem filhos que lhes dificultem e atropelem a existencia, estarem assim socegadas nos seus lares sem crianças, é uma bem clara próva. A indiferença com que a mulher pobre vê ir para o céo o filho que a sua incuria, quasi sempre, mata, é bem conhecida dos medicos para precisar ser mais frisada.
E isto não é um mal dos nossos dias nem da nossa sociedade, é hôje como hontem, como será sempre.
Á proporção que o individuo se civilisa, isto é: tem a noção mais clara do bem-estar que lhe póde advir não se sobrecarregando com responsabilidades, que nem sempre tem a certeza de cumprir, começa o horror ao casamento e consequentemente aos filhos que o embaraçam.
Isto que nos parece um facto peculiar dos nossos dias, e tanto sobresalta a França, já se deu na Grecia, já se deu em Roma, com maior intensidade ainda, não obstante todas as leis e costumes que compeliam o homem a constituir familia e a dar filhos á republica.
Apesar de tudo, o horror ao casamento manifestava-se, principalmente nas mulheres, que fugiam, pelo celibato, aos encargos da maternidade e ao captiveiro do lar.
Depois, se chamarmos a essas mulheres, que a ignorancia e a miseria desculpam, mães desnaturadas, que palavras achariamos no dicionario para as ricas e ociosas, que ao nascerem os seus filhos os atiram para os braços duma ama, que depois os entregam aos cuidados problematicos das criadas de acaso, e mais tarde os afastam do lar e do conchêgo da fami- lia, como espúrios, para a solidão moral do collegio; não para que estudem e se habituem cedo ao trabalho, mas para que as não incomodem com suas traquinices e turbulencias, nem as envelheçam aos olhos dos estranhos?!
Essas não os matam, porque a carnicería do acto repugnaria aos seus nervos susceptiveis e seria tão repulsivo, para os seus finos dedos scintilantes de joias, como matar uma galinha ou estripar um coelho, coisas no emtanto que as suas cosinheiras fazem com a maior indiferença. Alem disso, não lhes faz mingua o dinheiro para os alimentar e vestir, e mais tarde — passada a idade do garridismo pessoal — é um gosto continuar a figurar por elles e com elles.
Pobres filhos, os destas mães !...
Para as outras reclamariamos, em vez de cadeias, oficinas e casas honestas que as recolhessem com piedade, e as ensinassem com desvelo a amar os filhos que a sociedade tem todo o interesse em recolher e educar para a alegria de viver e de ser util, porque na terra não ha muito quem o seja e menos quem o saiba ser.
E esses pequeninos seres, que tanto pesam hôje ás pobres mães sem marido que lhes ajude a criar e educar, não arrastariam pela vida fóra a vergonha de não ter nome de pai, antes fariam recahir sobre o covarde que fugiu á responsabilidade dos seus actos todo o despreso das almas honestas.
Então, a sociedade, melhor orientada, não terá tanto despreso pela mulher iludida e atraiçoada no seu amôr, que a miseria e ignorancia tanta vez desculpa, como pela calculista maliciosa que procura o casamento como emprego, como posição, que a livre de situações equivocas, legalisando-lhe todos os desvarios.